Apenas a regulação robusta disciplinará plataformas digitais
Por Editorial / O GLOBO
À medida que cresce a dependência de grandes plataformas digitais, também aumenta a urgência de maior transparência em seus serviços. Isso é particularmente verdade no Brasil, de acordo com estudo recente do NetLab, laboratório vinculado à Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O estudo avaliou as plataformas por meio de dois índices. O primeiro mediu a transparência no fornecimento de dados, o segundo na exibição de publicidade. Submetidas à avaliação, as principais plataformas apresentaram resultados sofríveis. Nenhuma alcançou o nível ideal. No Índice de Transparência de Dados, o YouTube obteve melhor pontuação (63,2 pontos na escala de 0 a 100), patamar apenas satisfatório. Facebook (53,6) e Instagram (52,1) apresentaram desempenho regular. O WhatsApp recebeu uma pontuação mínima de 1,5 ponto, revelando grave falta de transparência. No Índice de Transparência de Publicidade, a Meta — dona de Instagram, Facebook e WhatsApp — obteve melhor pontuação (49,8), mesmo assim nível apenas regular. Em seguida, Telegram (22,8), Linkedin (18,3) e Google (8,2) apresentaram nível precário.
Uma das preocupações mais significativas destacadas no estudo são as dificuldades para acesso a informações. Os pesquisadores do NetLab criticam as restrições cada vez maiores nas Interfaces de Programação de Aplicativos (APIs) das plataformas, ferramentas essenciais para coleta de dados. Mencionam especificamente o término abrupto da ferramenta CrowdTangle, da Meta, que antes permitia acessar informações de Facebook e Instagram. A restrição, além de impedir a pesquisa independente, permite às plataformas liberar seletivamente dados incompletos ou inconsistentes. Os pesquisadores defendem critérios semelhantes aos exigidos pela lei europeia.
O estudo critica, ainda, a falta de transparência em torno das práticas de moderação de conteúdo. Faltam, segundo os pesquisadores, detalhes nas informações fornecidas nos relatórios de transparência das plataformas. Ainda que divulguem o número de postagens removidas por violar as regras, geralmente não fornecem informações sobre os tipos específicos de violação ou sobre os critérios usados para tomar as decisões de remoção.
Os pesquisadores fazem várias recomendações: adoção de APIs robustas e interfaces fáceis de usar para acesso a dados; relatórios de transparência aprimorados para incluir mais detalhes sobre as práticas de moderação de conteúdo; inclusão de ações tomadas em resposta a solicitações governamentais ou ordens judiciais.
A falta de dados limita a capacidade de entender questões críticas como disseminação de desinformação ou discriminação pelos algoritmos. A esta altura, já ficou claro que as plataformas não têm vontade de implantar mecanismos de regulação satisfatórios. Seu desdém pelas consequências do que publicam ficou mais uma vez demonstrado pelo atentado em Brasília na semana passada — cujo autor se alimentava de desinformação nas redes sociais e as usou para anunciar planos e fazer ameaças.
Para salvaguardar os valores democráticos e garantir um futuro digital justo, as plataformas devem ser mais transparentes e responsáveis. É exatamente o que exige o Projeto de Lei das Redes Sociais, infelizmente parado na Câmara. Passou da hora de os parlamentares retomarem essa discussão.
Tumores no Orçamento público
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
Todo poder emana do povo. Todo dinheiro também. É direito elementar dos cidadãos saber quem gasta os recursos públicos, onde e como. Mas seus representantes se comportam como se fossem donos do Estado e a prestação de contas fosse só uma concessão inconveniente.
Em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a execução das emendas parlamentares (verbas da União destinadas por congressistas a Estados e municípios) até a adoção de mecanismos que garantam sua transparência e rastreabilidade. Logo depois, representantes dos Três Poderes firmaram um acordo traçando diretrizes para esses mecanismos. No início do mês, a Câmara aprovou um projeto de lei que agora foi aprovado pelo Senado com alterações menores e ainda sem os destaques que podem mudar o texto final.
Consultores do Senado analisaram em que medida o projeto atende às exigências do STF e às diretrizes do acordo. A conclusão é devastadora. A proposta não responde a praticamente nenhuma das exigências colocadas por essas duas fontes normativas: de 14 parâmetros identificados, só 3 serão atendidos, e, ainda assim, dois já constam das regras vigentes.
A nota observa que restam desatendidas as “duas lacunas fundamentais” apontadas nas decisões do Supremo: a identificação da autoria das emendas coletivas (de comissão e de bancada) e o destino das transferências especiais.
As emendas de comissão se tornaram sucessoras do chamado “orçamento secreto”, declarado inconstitucional pelo STF. Em teoria, esses repasses são votados coletivamente. Na prática, são negociados pelos caciques do Legislativo, e os reais patrocinadores são desconhecidos. Pelo projeto, todo o processo decisório seguirá oculto. Além disso, pelas diretrizes do acordo, estas emendas deveriam ser destinadas a projetos de interesse nacional, definidos de comum acordo por Executivo e Legislativo, mas a proposta permite que praticamente toda a alocação seja classificada como “interesse nacional”.
As transferências especiais (“emendas Pix”) são repasses aos caixas dos entes subnacionais para que seus governantes gastem como bem entenderem. Neste caso, sabe-se qual congressista destinou os recursos, mas não para qual finalidade. Pelas diretrizes acordadas, esses repasses deveriam estar condicionados à priorização de obras inacabadas; apresentação prévia por parte dos beneficiários de plano de trabalho e informações sobre onde, como, quando e por que os recursos serão empregados; e, por fim, prestação de contas ao Tribunal de Contas da União. Nenhum dispositivo atende a essas exigências.
Em outras palavras, o projeto é puro ilusionismo, areia nos olhos dos cidadãos para manter tudo como está. E este “tudo” não é pouca coisa. São cerca de R$ 50 bilhões, um quarto das despesas discricionárias da União, uma proporção sem paralelo no mundo. A Controladoria-Geral da União (CGU) tem oferecido biópsias deste corpo podre. Uma auditoria com as dez ONGs que mais receberam emendas desde 2020 constatou que sete não tinham estrutura para executar os serviços. Dos R$ 300 milhões empenhados, R$ 15 milhões foram desviados ou desperdiçados por problemas que vão de superfaturamento a gastos não previstos nos projetos.
Outra auditoria com os 30 municípios que mais receberam emendas entre 2020 e 2023 mostrou que 39% das obras não foram iniciadas e 5% estão paralisadas. São apenas pequenas amostras do grau de degradação a que está submetido o Orçamento público. Isso sem falar dos danos à governabilidade e à competição eleitoral.
A decisão do STF se restringe quase que exclusivamente a exigir transparência nos repasses. Mas o fato de que nem isso os congressistas estão conseguindo, ou melhor, querendo entregar, sugere que o buraco pode ser mais embaixo do que se imagina.
Do modo como estão sendo traficadas, as emendas ofendem não só o princípio da publicidade, mas, em algum grau, todos os outros princípios constitucionais da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência. Longe de reverter estas ofensas, o Parlamento as está sacramentando sob uma espessa cortina de fumaça. Mas – espera-se – ainda há juízes em Brasília.
Idas e vindas no ajuste fiscal
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, escolheu a dedo a palavra para reabilitar o pacote de redução de gastos, que vinha caindo em descrédito após duas semanas de expectativas frustradas e demonstrações públicas de divisão no governo sobre a medida. O anúncio ainda terá de esperar o término do G-20, no próximo dia 22, mas será um corte “expressivo”, garantiu Haddad, salientando o termo que criou uma nova perspectiva para o esforço de contenção de despesas públicas.
Para refrear o pessimismo do mercado – e os consequentes efeitos sobre os juros e o câmbio –, a equipe econômica fez circular informações sobre mudanças no cálculo de correção do salário mínimo, que, desde o ano passado, tem reajuste calculado pela inflação do ano anterior mais a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos antes. A nova proposta é adequá-lo à regra prevista no arcabouço fiscal, que permite um aumento real, mas limitado a um porcentual entre 0,6% e 2,5% ao ano acima da inflação.
A tese ganhou contornos de medida já definida quando Haddad, ao ser questionado se todas as despesas deverão ser incorporadas às normas do arcabouço fiscal, confirmou que devem seguir a mesma regra “ou alguma coisa parecida com isso”. Foi o suficiente para melhorar os ânimos.
Agora, a cifra que circula no mercado, e que o Ministério da Fazenda teria indicado às lideranças da Câmara e do Senado, é que as medidas como um todo, e que vão além do salário mínimo, poderiam gerar uma economia em torno de R$ 70 bilhões nos próximos dois anos, dos quais R$ 30 bilhões já em 2025.
Pode ser de fato um avanço controlar a evolução do piso salarial. Afinal, como está destacado no projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa), cada R$ 1 a mais no salário mínimo gera um aumento de despesas de R$ 422 milhões no Orçamento. Uma das bandeiras levantadas por Lula da Silva, a política de valorização do salário mínimo, em pouco tempo, demonstrou não ter sustentabilidade ao não prever de onde sairão as receitas para custeá-la. É simples assim o planejamento orçamentário que o lulopetismo teima em não aceitar.
Pode-se dizer que a perspectiva de mudar o cálculo para o aumento do mínimo traz algum alívio, já que a fórmula atual tende a criar uma progressão difícil de ser contida. Imagine-se em 2026, o último do atual mandato de Lula, com o PIB de 2024 (dois anos antes) ficando de fato em torno de 3% e a inflação de 2025 em cerca de 4%, como mostram as projeções atuais. Hoje, essa conta parece impagável.
Mas ainda há outro fator estrutural que o governo resiste em abordar: a indexação do reajuste do mínimo aos benefícios previdenciários e assistenciais. Não há lógica atuarial que aceite aumentos de pagamentos de benefícios futuros sem lastro na arrecadação. A correção do mínimo impacta aposentadorias e pensões da Previdência Social e também o seguro-desemprego, o abono salarial e até o Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda, mesmo que nunca tenham contribuído para a Previdência.
BPC não é salário e tampouco aposentadoria, é um benefício assistencial. Sua distribuição é uma medida justa de auxílio a pessoas vulneráveis, mas deveria ter uma fórmula própria de correção, e não seguir o piso dos trabalhadores em atividade. Ademais, parece injusto dar a este auxílio o mesmo tratamento das aposentadorias de quem contribuiu durante toda a vida ativa para ter direito ao benefício mínimo. A visão populista eleitoreira de Lula da Silva impede que a desindexação nem sequer entre em pauta.
Aliás, tampouco está certo se o governo trocará o indexador do PIB pelo teto do arcabouço, o que mudaria a dinâmica dos ganhos daqui para a frente. Protelar é a especialidade do governo federal, na esperança de que o tema seja esquecido ou que seja substituído por outro menos incômodo. No caso do reequilíbrio fiscal, no entanto, tanto adiamento tem custado caro e impactado as expectativas de inflação, a cotação do dólar e a curva futura de juros. A pressa, portanto, deveria ser do governo.
G-20 no Brasil começa ameaçado por ‘fator Trump’, Milei e divergência insolúvel sobre guerras
Por Felipe Frazão, Beatriz Bulla e Carolina Marins / O ESTADÃO DE SP
ENVIADOS AO RIO - O encontro de chefes de Estado que fazem parte do G-20 começa nesta segunda-feira, 18, no Rio de Janeiro, sob a sombra da influência do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, e da divergência entre os países a respeito das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio. O evento era uma das principais apostas do governo Lula para o Brasil assumir protagonismo global no terceiro mandato do petista, mas tende a ser ofuscado pela perspectiva de enfraquecimento do multilateralismo a partir do ano que vem e pelos conflitos geopolíticos. O risco, neste momento, é ter uma declaração final anódina como resultado, dadas as diferenças entre os países.
Após dias de negociação que avançaram a madrugada, diplomatas chegaram, no domingo ao rascunho de um texto comum, ainda pendente de acertos entre os chefes de Estado que estarão no Rio. O documento, se aprovado por todos, será assinado pelos chefes de Estado na terça-feira, 19. O G-20 precisa chegar a um consenso para aprovar um comunicado.
Representante de posições compartilhadas com Trump, o argentino Javier Milei ameaça constranger o Brasil e não aceitar uma declaração final conjunta. Há ainda a perspectiva de se optar por um comunicado fragmentado, destacando os temas de oposição da Argentina. Isso já foi usado no G-20 durante o governo Trump. Os dois cenários, no entanto, significariam para um fracasso diplomático. A tendência é que a declaração final da Cúpula de Líderes G-20 no Rio não cite Israel e Rússia, dois dos países envolvidos e militarmente mais poderosos nas duas guerras em andamento. A palavra “guerra” também não é mencionada na mais recente versão do texto, ainda passível de mudanças. O termo usado agora é “conflito”.
Este é o principal assunto a ser resolvido no Rio e sobre o qual não há acordo. O Itamaraty afirma que o recado principal do G-20 deve ser a busca da paz. A discussão é um dos temas mais complexos do G-20, porque opõe membros do G-7 - aliados da Ucrânia - e o Sul Global - que, ou se inclinam claramente em favor da Rússia, ou se colocam como “neutros”. O assunto travou os trabalhos nas duas últimas edições do G-20, em 2022 (Bali, Indonésia) e 2023 (Nova Délhi, Índia). Entre as cúpulas indonésia e indiana, a declaração do grupo sobre a guerra no Leste Europeu foi abrandada em favor da Rússia.
A escalada na guerra da Ucrânia na madrugada deste domingo dificulta ainda mais a tentativa de acordo entre os países. Após a Rússia lançar um ataque massivo contra Kiev, o governo Biden autorizou que a Ucrânia utilize mísseis americanos de longo alcance com a Rússia. Até então, os EUA haviam autorizado apenas o uso de seus lançadores de foguetes HIMARS. O temor é que o uso de armas americanas na Rússia levem o presidente russo, Vladimir Putin a considerar como um ataque direto da Otan e a retaliar seus membros.
O americano Joe Biden estará presente na cúpula. Já o presidente russo, Vladimir Putin, não veio ao Brasil. Ameaçado por uma ordem de prisão internacional, Putin desistiu de participar, até mesmo por videoconferência. Ele será representado pelo ministro das Relações Exteriores, Serguei Lavrov. O governo Lula rejeitou apelos de Kiev para que convidasse o presidente Volodmir Zelenski ao Rio. A reunião de líderes no Rio terá ao todo 55 delegações, entre países membros, convidados e organizações internacionais. Cerca de 2,3 mil jornalistas e profissionais de imprensa estão credenciados.
A novidade desta edição do G-20 é a guerra na Faixa de Gaza, que começou após a edição de 2023, em Nova Délhi, na Índia. Ainda ocorrem tentativas nas negociações diplomáticas de inserir palavras mais críticas a Israel, sem mencionar o país, junto à necessidade de garantir assistência humanitária ao território palestino. A pressão vem da Arábia Saudita, Egito e países árabes, além da África do Sul. Esse bloco conta com mais simpatia do Brasil, que abertamente critica a ação militar de Israel. Outra iniciativa é a tentativa de inserir no parágrafo as repercussões dos ataques israelenses no Líbano, em frente de batalha contra o Hezbollah.
Divergências climáticas
A Cúpula do G-20 (grupo dos 20) reúne as 19 maiores economias do mundo, a União Europeia e, a partir deste ano, a União Africana. Como anfitrião e presidente do G-20, o Brasil estabeleceu os três pilares de discussão pelas lideranças internacionais: combate à fome e à pobreza; reforma dos organismos de governança internacional; e transição energética e desenvolvimento sustentável.
O primeiro tópico da agenda tende a ser o único que terá avanço concreto, com o anúncio das adesões à Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. A tendência é de resultados tímidos nas duas outras frentes.
Na questão climática, assim como na geopolítica, também fica clara a divisão entre os membros do G-7 e do Brics. Há disputa porque os países ricos, que jamais cumpriram a promessa de financiar a descarbonização, apontam o dedo para os atuais maiores poluidores, como China e Índia, e exigem que os países em desenvolvimento também paguem a conta da transição energética e mudança climática. Isso é considerado inaceitável por eles e pelo Brasil.
Países desenvolvidos têm pressionado as nações em desenvolvimento a apresentarem metas climáticas mais ambiciosas e os emergentes, como China e Brasil, a compartilharem o financiamento da descarbonização global. É o que tem travado conversas em Baku, no Azerbaijão, onde acontece a COP-29. O debate, segundo diplomatas, foi transportado para o Rio de Janeiro.
A perspectiva de que Trump irá retirar novamente os EUA do Acordo de Paris e se recusar a assumir compromissos ambientais, segundo negociadores, esvazia em parte o debate e faz com que a tendência seja a de ter um comunicado de chefes de Estado pouco ambicioso quanto ao financiamento climático.
Fator Trump
A vitória de Donald Trump na eleição americana, no início deste mês, é um balde de água fria entre os defensores de consensos multilaterais criados em fóruns como o G-20. Trump adere ao isolacionismo internacional e econômico, com a política externa que batizou de “América Primeiro” e despreza os organismos de governança global. Em sua última participação em um G-20, em Osaka, em 2020, os EUA se recusaram a ratificar os compromissos ambientais previstos no Acordo de Paris, de 2015, e a saída foi fazer uma declaração final fragmentada. Trump é abertamente contra as pautas centrais da cúpula no Brasil como mudanças climáticas e taxação de super-ricos.
Embora a reunião ocorra ainda sob a presidência de Joe Biden, a adesão à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, proposta pelo governo Lula, e o futuro dos acordos e decisões são incertos sob o segundo governo do republicano nacionalista. “Biden está chegando ao G-20 como um super pato-manco, ou seja, um presidente que já não será mais presidente em janeiro. Portanto, não se pode esperar muito da visita ele”, observa Sarang Shidore, diretor do Programa Sul Global do Quincy Institute.
“É um cenário em que qualquer tipo de grande negociação de liberalização comercial e facilitação de comércio vai ficar muito enfraquecida. E claro que Trump não quer nem ouvir falar na possibilidade de maior participação de países como a China e a Rússia nesse tipo de organização multilateral”, afirma o cientista político e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha Mauricio Santoro.
Após desistir de acompanhar Biden em uma viagem a Manaus para conhecer a Amazônia, Lula receberá o presidente americano para um almoço de trabalho na terça-feira, no Rio.
Em Manaus, Joe Biden anunciou a destinação de outros US$ 50 milhões (cerca de R$ 290 milhões) ao Fundo Amazônia. Mesmo com os US$ 50 milhões anteriores que já havia anunciado, o valor fica aquém da promessa de US$ 500 milhões para Floresta. Além disso, o montante ainda precisa ser submetido ao Congresso dos EUA, que terá as duas casas de maioria republicana a partir de 2025.
O presidente argentino, Javier Milei, tende a ser, na cúpula deste ano, o representante da nova ordem global que emergirá no ano que vem após a posse de Donald Trump. Sob o comando do ultraliberal Milei, a Argentina passou apresentar pedidos de rediscussão de temas, recuou no apoio dado antes à proposta de taxação dos super-ricos, e indicou que pode mais uma vez barrar acordos isoladamente na reta final da Cúpula de Líderes. Milei abriu ao menos cinco frentes de embate: multilateralismo, gênero, desenvolvimento sustentável, tributação de grandes fortunas, clima e meio ambiente.
Se insistir em não aderir a pontos do documento costurado pela diplomacia brasileira, o caminho pode ser o de uma declaração fragmentada, a exemplo da de Osaka, que contou com o adendo norte-americano sobre a rejeição ao ponto climático estabelecido pelos demais países. Isso significaria um fracasso diplomático e para o multilateralismo. O presidente da França, Emmanuel Macron, viajou à Argentina na véspera do G-20 para tentar convencer Milei a abandonar a postura de bloqueio dos acordos em discussão no Rio.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Gueterres, clamou neste domingo, 17, que os países tenham “bom senso”, para que cheguem a um consenso em torno dos temas coletivos, como os que integram a Agenda 2030, que determina os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). “Peço a todos os países para que tenham espírito de consenso e bom senso”, declarou. Gueterres lembrou que o mundo “já tem tantas divisões geopolíticas”. “Se o G20 se divide, o G20 perde relevância”, alertou.
Guterres respondia justamente a questionamento sobre discordâncias da Argentina. A mudança de posição dos representantes do governo do presidente argentino Javier Milei tem prolongado as discussões em torno do comunicado final de líderes da cúpula do G20, no Rio de Janeiro. “A agenda 2030 é um instrumento que tem consenso de todos os países do mundo e é um caminho claro para enfrentar tremendas desigualdades e tremendas injustiças que existem pelo mundo”, afirmou Guterres, em coletiva a jornalistas no centro de imprensa da cúpula de líderes, no Rio.
Fome, clima e governança global
Na segunda-feira de manhã, durante a abertura das reuniões, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva irá anunciar a lista de países e organizações que integrarão a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. A criação do mecanismo já foi aprovada antes e angariou novos integrantes nas últimas semanas. A expectativa do governo Lula é receber adesão de 100 membros. O objetivo é acelerar a redução da pobreza e eliminar a fome, até 2030. A aliança funcionará por cinco anos, a partir de 2025, com um secretariado sediado na FAO - Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - em Roma, na Itália.
Além de obter doações de recursos, uma das intenções da aliança é mobilizar fundos já existentes para programas que reconhecidamente funcionam, como os de transferência de renda condicionada, agricultura familiar, merenda escolar e cadastro único. Os países que desejam receber dinheiro devem se comprometer a adotar um dos programas.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por exemplo, aderiu à Aliança e anunciou que vai alocar até US$ 25 bilhões em financiamentos aos seus países-membros para garantir a implementação de políticas e programas de combate à pobreza e à fome entre 2025 e 2030. O banco também irá trabalhar com o Brasil em uma revisão de meio de período para avaliar o progresso da iniciativa.
A reforma da governança global - ONU, instituições multilaterais financeiras, como FMI e Banco Mundial, e Organização Mundial do Comércio - será tema de debate entre os chefes de Estado na segunda-feira à tarde. Lula tem repetido que os organismos não têm conseguido assegurar a paz ao redor do mundo, e que isso impede que os países se concentrem nos temas de desenvolvimento econômico e social.
Já na terça-feira, o principal tema em debate é o desenvolvimento sustentável e a transição energética. Há um embate entre quem deve pagar a conta, entre países ricos e pobres. A expectativa da conclusão do fórum na terça-feira será quanto a possibilidade ou não de um documento conjunto assinado neste cenário desafiador.
Benefício tributário em excesso degrada contas públicas
Tal como o processo orçamentário em geral, que foi degradado nos últimos anos e precisa de ajuste urgente, também houve perda de controle e razoabilidade na concessão de benefícios fiscais em favor de grupos de interesse.
Segundo estudo elaborado pela Fundação Getulio Vargas e pelo Tax Expenditures Lab, o montante dos chamados gastos tributários —designação genérica que inclui renúncias de receitas que beneficiam contribuintes específicos ou configuram exceção em relação às regras tributárias— deve atingir assustadores 6,9% do Produto Interno Bruto em 2024.
A cifra inclui benesses concedidas por União (em torno de 4,5% do PIB) e governos estaduais (2,4% do PIB), que foram multiplicadas nas últimas duas décadas —em 2006 eram 2,4% do PIB.
A alta de 4,5 pontos percentuais desde então decorre de inúmeros novos subsídios, que não guardam relação com análises de impacto nem, em sua maioria, tem prazo de validade. No caso dos estados, boa parte se relaciona à guerra fiscal em torno de renúncias do ICMS, prática que deve terminar com a implementação da reforma em curso dos tributos indiretos.
O aumento dos números também pode decorrer de avanço na contabilização, sobretudo nos estados, muitos dos quais não divulgavam informações. Mesmo assim, ainda não se trata de detalhamento exaustivo, também pela não inclusão de municípios. Não seria surpresa se o total de benefícios regionais atingisse algo como 4% do PIB.
Cifras tão expressivas são alarmantes, pois revelam pouco ou nenhum planejamento ou avaliação. Enfraquece-se, ademais, a credencial democrática do processo orçamentário, em que cada despesa é aprovada anualmente com transparência.
Quanto à União, é verdade que gastos tributários são apresentados nas leis orçamentárias anuais, com estimativas de seu impacto. Mas nem todas as renúncias são detalhadas a contento pela Receita Federal.
O Congresso, ademais, muitas vezes não cumpre a exigência legal de definir medidas compensatórias em benefícios de sua iniciativa.
Modernizar o processo orçamentário constitui tarefa complexa, mas um começo é a exigência de análises de impacto, em vigor desde 2019 com a criação de um conselho de monitoramento e avaliação vinculado ao Ministério do Planejamento.
Desde então já foram publicados 34 relatórios de avaliação de subsídios, nos quais se incluem os gastos tributários. Até aqui, porém, há pouca ação por parte do Executivo e do Congresso.
Quanto aos incentivos estaduais, ao menos está no horizonte seu término —até 2032, segundo o texto da reforma tributária. A redução do caos normativo e o fim da guerra fiscal estão entre os efeitos mais importantes da criação do imposto sobre valor agregado cobrado no local do consumo, cuja regulamentação precisa ser concluída o quanto antes.
Bastidores: xingamento de Janja prejudica tentativa de Lula de estabelecer elo com Trump
Por Felipe Frazão / O ESTADÃO DE SP
RIO - O xingamento proferido pela primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, ao bilionário Elon Musk prejudica a tentativa do governo Luiz Inácio Lula da Silva de estabelecer um elo com o futuro presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. A declaração se choca com a tentativa do Palácio do Planalto de minimizar divergências e abrir canais com o futuro ocupante da Casa Branca, agindo de forma menos ideológica e mais “pragmática”.
Sem razão aparente, Janja ofendeu não apenas um apoiador e financiador de Trump, empresário com negócios no Brasil, mas um futuro integrante do governo norte-americano, indicado por Trump para liderar o Departamento de Eficiência Governamental, órgão que o republicano pretende criar.
O Estadão procurou a assessoria da primeira-dama para ouvi-la sobre o caso. A resposta chegou na manhã deste domingo, dia 17. Não haverá qualquer comentário.
Embaixadores brasileiros ficaram constrangidos ao serem indagados sobre o episódio. Por receio de serem retaliados no governo, eles jamais aceitam falar publicamente e mesmo assim são muito cautelosos. “É a nova diplomacia”, ironizou um deles, que acompanha os preparativos do G-20 no Rio. “Com essas palavras?”, reagiu outro espantado. A definição de um terceiro diplomata foi: “Contraproducente”.
Um secretário do Itamaraty disse que a eleição de Trump “mudou o mundo como a gente conhece”. “Será inacreditável”, afirmou ele, chocado com as escolhas de Trump para a montagem de governo e com o impacto que a eleição já tem nas discussões do G-20 e nos fóruns multilaterais. Para ele, todas as reações são compreensíveis, embora não devessem ser verbalizadas.
A ofensa de Janja e a resposta de Musk
Neste sábado, dia 16, Janja participava de uma mesa de debates com o influenciador Felipe Neto sobre combate à desinformação no Cria G-20, um dos eventos paralelos à Cúpula de Líderes, que ocorre nos dias 18 e 19 de novembro, no Rio. Ao fim do painel, ela pediu a palavra para destacar a dificuldade de aprovação de leis para regulamentar plataformas de mídias sociais e reforçou seu impacto em tragédias climáticas por causa da disseminação de informações falsas.
Então, sem razão aparente, abaixou-se por causa do que parecia ser um ruído no ambiente onde estava. Ela interrompeu o discurso e disparou: “Acho que é o Elon Musk. Eu não tenho medo de você. Inclusive, fuck you, Elon Musk”, disse Janja. O bilionário reagiu em seu perfil no X momentos depois, indicando por meio da sigla “lol” que estava dando risadas do ocorrido. Ao comentar outro post na plataforma, Musk afirmou que “eles”, em indicação ao governo atual, vão perder as próximas eleições.
Lula: “não temos que xingar ninguém”
Como o Estadão antecipou, a diplomacia brasileira trabalhava em prol de um telefonema entre Trump e Lula. O Palácio do Planalto não tinha canais de diálogo com Trump e seu entorno, muito ligados ao bolsonarismo. A tarefa coube à embaixada brasileira em Washington, que nos últimos meses cultivou laços com integrantes do Partido Republicano, como congressistas, e assistiu a eventos da campanha de Trump.
A esperança do governo brasileiro era que Lula e Trump pudessem conversar por telefone dentro de semanas após a eleição. O próprio Lula reconheceu rapidamente a vitória de Trump e, numa mensagem pública nas redes sociais, indicou estar aberto ao “diálogo” com o republicano. A intenção era deixar para trás declarações de campanha em que ambos apoiaram candidatos adversários - Jair Bolsonaro e Kamala Harris - e fizeram comentários pejorativos um sobre o outro.
A chave era a montagem do próximo governo trumpista. A partir das indicações, figuras-chave, como o senador Marco Rubio, próximo secretário de Estado dos EUA, deveriam ser buscadas pelo governo Lula. Embora prenunciem um embate duro de políticas e prioridades, com reforço de linhas anti-imigração e negacionistas na equipe de Trump, figuras centrais no governo Lula passaram a pregar a necessidade de dialogar e não pré-julgar.
“Temos que respeitar os processos (democráticos) de todos os países. Vamos ver como as coisas evoluem. Outro dia alguém me perguntou o que eu acho dos nomes. Eu não julgo nomes, julgo atos, julgo ações. Depois de ver como evoluem essas ações é que a gente vai dizer”, afirmou na sexta-feira, dia 16, o assessor especial Celso Amorim, ex-chanceler e principal conselheiro internacional de Lula. “Na política, o que interessa é o resultado. Vamos esperar que mesmo na busca do seu interesse, da America Great, o presidente Trump também ajude. Fiquei contente de ver Elon Musk conversar com o embaixador do Irã. A conversa e o diálogo podem trazer paz ao mundo, não as reafirmações de princípios individuais.”
O maior sinal de reprovação a Janja veio do próprio Lula. Horas depois da fala de sua mulher, ele a desautorizou em público, embora sem fazer uma menção direta a ela. “Eu queria dizer para vocês que essa é uma campanha em que a gente não tem que ofender ninguém, não temos que xingar ninguém”, afirmou o presidente, no encerramento do festival de música para promover a Aliança Global Contra a Fome a Pobreza, na zona portuária do Rio.
A série de shows havia sido elaborada pelo governo sob medida para a própria Janja. A primeira-dama irritou-se com o apelido “Janjapalooza” dado ao festival. Ela teve grande exposição, apresentando atrações no palco e participando de debates paralelos à Cúpula de Líderes do G-20.
Críticas à Argentina
Em um discurso prévio, Janja também jogou contra esforços diplomáticos ao criticar abertamente as atitudes da Argentina, sob o comando do libertário Javier Milei, também aliado de Trump. O presidente ultraliberal - rival do petista e com quem também não há diálogo - converteu-se em um obstáculo ao sucesso do G-20 por ter ordenado oposição ampla à agenda de debates. Em socorro à diplomacia brasileira, o presidente francês Emmanuel Macron se dispôs a viajar a Buenos Aires para tentar fazer Milei ceder, enquanto Janja reclamava da diplomacia argentina por vetar a agenda de gênero.
O caso do xingamento a Musk pode gerar ainda danos políticos internos. A oposição já agiu no Congresso e pretende levar o chanceler Mauro Vieira para dar explicações sobre as consequências da ofensa na Câmara dos Deputados. Um pedido de convocação foi protocolado pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS). O ex-presidente Jair Bolsonaro, aliado de Trump e Musk, disse que o governo contratou “mais um problema diplomático”.