Presidência do Brasil no G20 enxugou o gelo de uma ordem mundial em derretimento
Por Vinícius Rodrigues Vieira* / O ESTADÃO DE SP
Enxugar gelo: numa metáfora simples, é assim que se pode resumir o papel do Brasil na liderança do G-20, que reúne os mercados nacionais mais relevantes do mundo, além da União Europeia (UE) e União Africana.
Não se trata, porém, do resultado de erros da diplomacia brasileira sob o atual governo. Qualquer país com o mesmo status que o Brasil desfruta no sistema internacional — uma potência média, com certa influência regional, mas sem presença em escala global — sofreria as mesmas limitações numa era em que grandes potências, que possuem poderio econômico-militar, pensam acima de tudo em si. Todos “First”
Não estamos apenas no mundo do America First, disponível a partir de 2025 em versão reloaded e com aditivos sob a direção de Donald Trump. China First, Russia First, UE First: cada um olha para o próprio umbigo em vez de tentarem estabelecer o mínimo de coordenação entre si em temas como aquecimento global, comércio e segurança internacional. Não reside, infelizmente, sobre os ombros de potências médias a capacidade de sentar-se à mais nobre das relações internacionais para falar grosso com o restante do mundo.
Ainda assim, potências regionais podem, sim, influenciar elementos pontuais das relações entre países e, portanto, da ordem global. Comparado à presidência da Índia no G20 no ano anterior, Brasil apresenta avanços notórios em questões sociais, pois colocou em pauta a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, o que está em linha com a Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 1 (erradicação da pobreza) e 2 (fome zero e agricultura sustentável).
Sob comando brasileiro, também ganhou ainda mais prioridade o debate sobre combate a mudanças climáticas, com ênfase na otimização dos fundos voltados para esse desafio global, dos quais ganha destaque a ideia a ser apresentada no Rio de Janeiro de formar um fundo para combater a disseminação de desinformação no setor.
Esses pontos contrastam com a falta de avanço nos debates acerca das mais que necessárias reformas da governança global. Justamente neste ponto é que reside o maior alerta para o Brasil e demais membros do G20 que não são grandes potências: lembrando Garrincha na Copa de 1958, pode-se dizer que falta combinar uma vitória com os russos — e os americanos, chineses e europeus.
Com o retorno de Trump à Casa Branca, Moscou em guerra contra a Ucrânia e Pequim às voltas com problemas econômicos internos, apenas a UE — pelo menos enquanto não for capturada por forças de ultradireita — tende a demonstrar o mínimo de boa vontade para aderir a uma agenda de ações globais.
Nacionalismos obscurecem aliança global
Isso se não houver ainda mais mudanças nos interesses das grandes potências em função das ações de Trump 2.0. Por exemplo, numa era de crescente nacionalismo, qual a razão para se apoiar uma aliança global para combater a fome e a pobreza se os países buscam soluções unilaterais ou bilaterais, fazendo parcerias com aliados regionais ou com os quais há maior afinidade ideológica?
A China, que pela dimensão econômica poderia ocupar o vazio deixado pelos Estados Unidos no multilateralismo, tampouco demonstra interesse em exercer o papel de articular a provisão de bens públicos globais. A UE e outros atores políticos europeus, notadamente o Reino Unido, terão de destinar mais recursos para sua própria segurança.
Isso porque Trump já demonstrou ser favorável a um entendimento com a Rússia na guerra contra a Ucrânia — o que pode encorajar Vladimir Putin a reivindicar mais territórios no Leste Europeu — e procura reduzir os compromissos americanos no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), pressionando, assim, os europeus a colocar mais dinheiro em despesas militares.
Legado superficial no clima
Na questão climático-ambiental, qualquer que seja o legado brasileiro no G20, o risco de superficialidade é ainda maior — novamente por causa de mudanças à vista na configuração do jogo de poder entre as grandes potências e os interesses de outros membros do bloco. Por exemplo, é certo que Trump vai novamente retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris, o que deve anular qualquer efeito da parceria sobre transição energética que Lula vai assinar com Joe Biden durante a reunião do G20.
Ademais, a Índia — que flerta com o status de grande potência por ter armas nucleares e crescimento econômico robusto nos últimos anos — depende essencialmente de combustíveis fósseis e não dá o menor sinal de deixar isso de lado. Raciocínio idêntico se aplica a outras potências regionais do G20, como a Indonésia e o México.
Assim, salvo um milagre, a presidência brasileira do G20 — alardeada como instrumento para demonstrar a capacidade de o Brasil ter um papel ativo na reformulação da ordem global no século 21 — deve-se encerrar com resultados limitados, pois outros membros do bloco fazem ouvidos moucos para com o desejo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em liderar o mundo do desenvolvimento.
Lula, aliás, sequer conta com o apoio do principal parceiro histórico do Brasil que também integra o G20, a Argentina. Sob o comando do direitista Javier Milei, Buenos Aires rejeita tudo que o Brasil defende. Se não conseguimos sequer liderar nosso entorno, reivindicar um papel ativo na formulação da ordem global para além de temas específicos é pura quimera. Estamos enxugando gelo.
Cúpula do G20 antecipa dificuldades de Lula com Trump
Grandes reuniões internacionais tendem a servir mais ao anfitrião do que à coletividade global. Cabe ao país que as sedia garantir uma agenda positiva, seja para consumo externo, doméstico ou ambos.
É o paradoxo do multilateralismo —muita gente reunida dificilmente chega a consensos que não se baseiem em platitudes. A alternativa, o "diktat", é pior.
Por certo interessa ao Brasil ver uma declaração final consensual na reunião do G20 ora em curso pela primeira vez no país. Logo, poupar a autocracia russa acerca da Guerra da Ucrânia, por exemplo, faz sentido pontual.
Para Moscou, seus aliados chineses e simpatizantes em Nova Déli e outras capitais, a vantagem é outra. A todos interessa, cada um a seu modo, demonstrar musculatura ante o Ocidente.
Que isso traia a dificuldade de o Brasil encaixar um discurso sobre a guerra é dano colateral. Assim como, na mão inversa, o malabarismo para criticar o conflito no Oriente Médio sem melindrar os EUA, fiadores de Israel.
Restaria ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aproveitar a oportunidade, algo que terá também no ano que vem, quando, depois de presidir de forma rotativa o grupo das principais economias ricas e emergentes, estará à frente do Brics e receberá a reunião ambiental COP30.
Com o foco na agenda ambiental, ajudado pela ida do americano Joe Biden à Amazônia, e a inserção de uma versão global de suas preocupações com a fome, o líder petista parecia caminhar na direção correta.
Mas a realidade se interpôs e, de largada, o G20 tem servido como mostra dos percalços que esperam o brasileiro com a volta do republicano Donald Trump à Casa Branca, a partir de janeiro.
O argentino Javier Milei fez valer a alcunha de "meu presidente preferido" que recebeu de Trump. A Argentina assumiu no encontro, como já havia feito na COP29, o papel de representante do trumpismo no ocaso de Biden.
Trouxe dificuldades à negociação do texto final, nada muito diferente daquilo que Washington fará na próxima gestão. De todo modo, é algo precificado.
O que estava fora do roteiro ocorreu por graça e obra da primeira-dama brasileira, Rosângela da Silva, Janja, que ocupou um inexplicável protagonismo.
Gratuitamente, ela ofendeu o bilionário Elon Musk com um termo chulo em inglês. A diatribe pode fazer sucesso em nichos das redes sociais, mas tem implicações. Goste-se ou não, Musk será figura importante na administração da maior potência global.
Sua reação foi também inapropriada, pregando a derrota eleitoral do PT em 2026 —além de futura autoridade, Musk controla a rede social X, outrora Twitter.
Mas o ônus maior fica com Janja e seu marido, cujas referências pretéritas a Trump já o colocavam em posição vulnerável, não menos pela proximidade do americano com Jair Bolsonaro (PL). Se deseja relações amistosas com os EUA, Lula começa mal.
Itaipu precisa de meio-termo entre tarifa e desenvolvimento, diz presidente do Paraguai
Nem a menor tarifa possível, nem gasto elevado com obras socioambientais. O presidente do Paraguai, Santiago Peña, 46, defende um meio-termo para o uso dos recursos da hidrelétrica binacional de Itaipu. O tema está na mesa de negociação: neste momento, Brasil e Paraguai discutem a revisão do chamado Anexo C, parte do acordo que traz os critérios da gestão financeira da usina.
Com o fim do pagamento da dívida pela construção de Itaipu, que consumia cerca de US$ 2 bilhões (cerca de R$ 11,4 bilhões) por ano, os parceiros não aplicaram a redução máxima desse valor para abaixar a tarifa. Canalizaram parte dos recursos para obras e projetos socioambientais.
"Existem duas grandes teorias ou visões. Uma visão é de que Itaipu já cumpriu seu objetivo, pagou a dívida e agora deve ser apenas um centro de custos. Outra em que fomenta desenvolvimento apenas através de outros projetos. Eu acredito no meio-termo", afirma.
Em entrevista à Folha durante o encontro de líderes do G20, no Rio de Janeiro, Peña defendeu ainda que o Mercosul é o único caminho para negociação de acordos comerciais com outros países. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O presidente da Argentina, Javier Milei, defendeu recentemente um acordo comercial de seu país com os Estados Unidos. O Mercosul não permite negociação independente. O que acha desse pleito argentino?
Eu acredito que o Mercosul é um bloco econômico muito importante, que precisamos fortalecer. É com ele que temos de negociar acordos de livre comércio com outros países, incluindo os EUA.
Permitir que países negociem acordos de livre comércio de maneira independente simplesmente não funciona, nem para o Mercosul nem para o país que assinar o acordo. Dou o exemplo da China: o Uruguai tentou promover um acordo de livre comércio com a China, mas a China afirmou que nunca assinaria um acordo de livre comércio com o Uruguai porque, na realidade, os interesses da China são o Brasil e a Argentina.
Nós administramos o que herdamos. Eu disse ao presidente Lula: temos a grande responsabilidade de levar o Mercosul a um nível superior. Isso requer liderança do Brasil, um Brasil que hoje atua nas grandes ligas, em nível mundial, mas que não pode esquecer os seus vizinhos.
Como seria isso?
Trabalhar mais dentro do Mercosul. Brasil e Argentina hoje tentam participar de fóruns como o G20 ou o G7, ou dos grandes debates sobre o desenho da nova arquitetura mundial —o que é muito bom. Mas o que temos hoje de forma concreta é o Mercosul, uma união aduaneira muito forte.
Devemos pensar que 60% de toda a proteína do mundo é produzida no Mercosul. A hidrovia Paraguai-Paraná, que conecta cinco países, é uma das maiores do mundo. Temos a maior integração energética, com Itaipu e Yacyretá [hidrelétrica binacional no rio Paraná entre Argentina e Paraguai] e toda uma produção de energia sustentável.
Acredito que o Brasil será um ator cada vez mais importante em nível mundial se também fortalecer o Mercosul. O Paraguai quer isso. Não tenho dúvidas de que a Argentina também precisa de um Mercosul mais forte. As políticas de acesso ao mercado e de liberalização econômica que estão sendo implementadas exigem um mercado comum cada vez maior.
O Paraguai pediu para postergar a negociação do Anexo C do Tratado de Itaipu ou está certo que a negociação termina em dezembro? O que há na mesa de importante?
Não [pedimos o adiamento]. Acredito que há uma visão comum. Itaipu é um sucesso da diplomacia, um sucesso da engenharia e um sucesso da integração de dois povos que estiveram separados por uma guerra muito dura, mas que Itaipu uniu em um futuro comum. O que vamos fazer para que, dentro de 50 anos, as pessoas pensem que o que fizemos também foi um sucesso?
Existem duas grandes teorias ou visões. Uma visão é de que Itaipu já cumpriu seu objetivo, pagou a dívida e agora deve ser apenas um centro de custos. Outra em que fomenta desenvolvimento apenas através de outros projetos. Eu acredito no meio-termo. Digo isso porque minha proposta há um ano era que tínhamos um excedente de US$ 2 bilhões por ano para o pagamento da dívida. Esse é um fluxo constante e permanente que podemos alavancar pelos próximos 50 anos.
A ideia é fixar um valor para investimentos? Em qual patamar?
Repotenciar as 20 turbinas, por exemplo. As turbinas de Itaipu atualmente geram 700 megawatts. Pode-se aumentar [em] até 40% com novas turbinas, utilizando a mesma água. Precisamos lembrar que os eventos climáticos estão cada vez mais adversos, e as secas cada vez mais intensas. Precisamos investir para melhorar a eficiência de Itaipu.
Temos a possibilidade de gerar 5 gigawatts no reservatório instalando painéis solares. A bateria de Itaipu é o reservatório. Com geração solar, podemos utilizar energia durante o dia e elevar o nível do reservatório para ter sua "bateria" para produzir energia. Podemos quase dobrar Itaipu se instalarmos painéis solares no reservatório.
Sua mensagem sobre Itaipu é então não focar no custo baixo?
O melhor legado que podemos deixar é aumentar a produção de energia sustentável. Um dos temas do G20 é a transição energética, e brasileiros e paraguaios já fizeram isso 50 anos atrás.
É preciso considerar o equilíbrio. Se você focar apenas no custo, como, por exemplo, limitar a US$ 10 [a tarifa, Itaipu] não terá capacidade de investir. Imagine se o governo precisar ir ao Congresso e solicitar um aumento da dívida do Tesouro brasileiro para investir em Itaipu.
Hoje, a energia de Itaipu é contratada por Brasil e Paraguai a 50%-50%. A ideia é mudar esse arranjo?
É manter o 50-50. Mas o Paraguai consome cada ano mais [de Itaipu]. A demanda de energia do Paraguai aumenta de 8% a 10% por ano.
Mas o sr. entende por que o Brasil prefere o custo mínimo, certo? Por que, no modelo 50-50, nós pagamos mais.
Mas o ganho é muito pequeno. Se você fizer as contas, o benefício econômico para intermediários e beneficiários é muito pequeno e não tem capacidade de gerar investimentos para melhorar a qualidade de vida. O progresso tecnológico não depende apenas da tecnologia disponível, mas da disponibilidade de energia. Qualquer pessoa pode ter CPU [computador], mas nem todos podem ter energia de fontes sustentáveis.
O Paraguai pediu para vender energia de Acaray para o Brasil, mas não há conexão de transmissão entre os dois países, exceto via Itaipu. A única maneira seria descontratar a energia de Itaipu ou discutir uma mudança na divisão pela negociação do Anexo C. Vocês pretendem reduzir o volume de energia que vendem ao Brasil via Itaipu para poder vender no mercado livre?
Não, não, não. Está muito claro que a energia que vendemos não é de Itaipu. É energia de Acaray.
Precisa de uma linha de transmissão. Técnicos brasileiros dizem que não passa pela linha de Itaipu.
Os técnicos paraguaios dizem que passa. Será energia do Paraguai que entra em outro ciclo.
O Brasil tem um desafio com novo governo nos Estados Unidos, porque há dificuldades de comunicação por questões ideológicas. O senhor conhece Marco Rubio, que será Secretário de Estado dos EUA. O sr. se vê numa posição de poder fazer uma ponte entre os dois governos?
Posso contar a minha experiência. A relação que temos com o presidente Lula é um exemplo de como devemos priorizar os interesses de nossos países.O presidente Lula é um líder que vem das lutas dos trabalhadores. Eu sou parte da burocracia pública. Trabalhei no Banco Central, me formei em universidades americanas. Somos de gerações diferentes, e seria muito fácil nos rotularmos: ele como um presidente de esquerda e eu como um presidente de direita.
No entanto, acho que nossa excelente relação é amplamente conhecida. Temos uma relação pessoal excelente e uma relação de trabalho muito boa —e foi o que eu disse ao presidente Javier Milei. Tivemos essa mesma conversa. Ele fez declarações muito ofensivas ao presidente Lula. Inclusive, não foi a Assunção para a cúpula do Mercosul apenas para não se encontrar com Lula. E eu disse: "Presidente, lembre-se do que estou dizendo: você vai a Rio para a reunião do G20". Ele respondeu: "não, não vou". Agora, Milei está aqui. Então, faço esse trabalho. Quero que o Paraguai desempenhe um papel cada vez mais importante como centro de integração.
RAIO-X
Santiago Peña, 46, do partido Colorado, foi ministro da Economia do Paraguai entre 2015 e 2017. Também trabalhou no Banco Central de seu país. Ganhou as eleições em 2023.
TCU investiga gastos com festival impulsionado por Janja no G20
Ana Pompeu / folha de sp
O TCU (Tribunal de Contas da União) abriu nesta segunda-feira (18) dois processos para investigar eventuais gastos públicos relacionados ao evento Aliança Global Festival Contra Fome e a Pobreza, chamado informalmente de Janjapalooza. A promoção do evento teve o apoio da primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja.
Os pedidos para os procedimentos foram feitos pelos deputados federais Ubiratan Sanderson (PL-RS) e Gustavo Gayer (PL-GO). O primeiro terá relatoria do ministro Jorge Oliveira, e o segundo será relatado pelo ministro Walton Alencar Rodrigues.
Ainda não há decisão do tribunal nos processos, e os documentos não estão públicos. Como os dois procedimentos tratam do mesmo tema, é provável que sejam unificados e tramitem com apenas um gabinete.
O festival ocorreu entre quinta-feira (14) e sábado (16) na região do Pier Mauá na cidade do Rio de Janeiro, como parte da programação do G20.
No pedido encaminhado ao TCU, Sanderson argumenta que o uso de recursos públicos em um evento, em um contexto de crise econômica no país, é incompatível com os princípios de legalidade que regem a administração pública.
O Aliança Global Festival Contra Fome e a Pobreza teve o patrocínio de empresas estatais, como Banco do Brasil, BNDES, Caixa, Itaipu e Petrobras, como mostrou a Folha.
As estatais têm sido usadas pelo governo Lula para reforçar o custeio de eventos relacionados ao G20, o grupo que reúne os principais países desenvolvidos e emergentes do mundo e que neste ano está sob a presidência brasileira.
Além do festival da Aliança, houve recursos das estatais para o financiamento da cúpula de líderes, realizada nestas segunda (18) e terça (19), e o encontro com a sociedade civil que ocorrerá poucos dias antes. Apoiaram ainda o evento a prefeitura do Rio, a Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia) e o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).
Quando divulgou o festival, o governo Lula disse que a ideia era inspirada em "concertos internacionais como o Live Aid 1985 e o Free Nelson Mandela Concert 1988, ambos em Londres, na Inglaterra".
Janja foi a mestre de cerimônias do festival. A intenção, de acordo com a organização, foi promover engajamento e discussão sobre o combate à fome no mundo.
O apelido do festival foi dado em referência ao Lollapalooza, mas a primeira-dama demonstrou irritação na sexta (15), quando uma pessoa na plateia gritou "Janjapalooza" no momento em que ela fazia um comentário sobre os shows, durante evento do G20 Social. "Não, filha, é Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, vamos ver se consegue entender a mensagem", disse.
'Crise de lençol': IJF tem acompanhantes em papelão, cirurgias suspensas e falta de 270 tipos de remédios
A precarização de serviços, a falta de medicamentos e insumos básicos, a suspensão de cirurgias e até a demora na distribuição de comida são alguns dos cenários que marcam o atual momento do Instituto Dr. José Frota (IJF), o maior hospital municipal de Fortaleza, especializado no tratamento de traumas de alta complexidade. É o que apontam relatos de usuários, sindicatos e profissionais que atuam na unidade ouvidos pelo Diário do Nordeste.
O panorama de deficiências contrasta com a importância da unidade de referência para a saúde pública cearense, gerido pela Prefeitura de Fortaleza, e que atende pacientes da Capital e do interior do Estado.
A reportagem conversou com alguns acompanhantes e cuidadores que convivem no IJF, durante uma visita ao local, na manhã da última quinta-feira (14). Os depoimentos têm pontos em comum: inexistência de medicações e itens essenciais, como fraldas e lençóis, cancelamento de cirurgias, falta de estrutura para acompanhantes e demora na entrega das refeições.
Um dos relatos mais graves foi recebido pelo Sindicato dos Médicos do Ceará (SIMEC-CE). Uma denúncia confidenciou para a entidade que, durante uma neurocirurgia de urgência, uma paciente precisou ficar três horas com o crânio aberto porque o hospital não tinha dreno. O procedimento só foi finalizado depois que o item – que custa cerca de R$ 30 – foi enviado do hospital Santa Casa da Misericórdia de Fortaleza, por meio de uma moto de aplicativo.
Diante do caos que se arrasta desde o começo do ano, publicizado pelo Diário do Nordeste em junho, e tem se intensificado nos últimos meses, o Ministério Público do Ceará (MPCE) ingressou com Ação Civil Pública (ACP), em 7 de novembro, para que a gestão municipal resolva a situação do abastecimento de remédios e insumos.
As denúncias recebidas pelo MPCE apontam que 279 dos 375 medicamentos estariam com estoque zerado no Instituto. Ao mesmo tempo, 263 insumos médicos, como agulhas, sondas, drenos, fios de sutura, entre outros, não estariam disponíveis – do total de 513 itens.
Em resposta, o Tribunal de Justiça do Ceará determinou, na última terça-feira (12), que os envolvidos – Prefeitura, Secretaria de Saúde e IJF – têm 72 horas para manifestarem-se após a notificação, que deverá ser feita de forma presencial, o que pode acarretar datas diferentes nos possíveis retornos.
Acionada pelo Diário do Nordeste na última quinta-feira, sobre o assunto, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Fortaleza repassou a demanda para a assessoria do próprio IJF. Por sua vez, a equipe do hospital não respondeu aos questionamentos da reportagem.
RELATOS DO CAOS
Um dos casos que evidenciam a situação do IJF é da Maria (nome fictício), de 41 anos – que preferiu não se identificar, – acompanhante da mãe, de 61 anos, que está internada há quatro meses no hospital, à espera de uma cirurgia no fêmur. Ela conta que o procedimento já chegou a ser marcado duas vezes, mas foi suspenso por uma série de carências, que vão de insumos a profissionais.
“Segundo eles, tinha que ter uma equipe preparada para fazer essa cirurgia da minha mãe, mas só que já tá com muito tempo e ela não fez nenhuma. Falta medicação, falta gaze, falta seringa, falta tudo”, desabafa a mulher.
Ainda segundo ela, há dias em que faltam medicamentos básicos, como tramadol e dipirona – utilizados no alívio da dor. “Ontem mesmo tive que comprar [tramal] lá para outra paciente do mesmo quarto que o médico deu a receita [mas não tinha]”, falou a usuária, em depoimento dado no dia 14 de novembro.
‘CRISE DE LENÇOL E FRALDA’
“Já tivemos plantão aqui de não ter nem um pacote de fralda e a gente, na hora que o paciente estava inundado de xixi, sem poder higienizar porque não tinha fralda, simplesmente [não dava para] tirar a fralda urinada e trocar o lençol e deixar o paciente sem nada, a não ser que a família tivesse”, evidencia uma técnica em enfermagem que trabalha no hospital – que não será identificada por questões de segurança.
Segundo a profissional, a lista de insuficiências abrange até mesmo itens importantes para o dia a dia nos leitos. “Tem plantão também que tem ‘crise’ de lençol, de não ter lençol porque a empresa não [manda], eu não sei o que é que acontece. Não sei se o hospital que não paga a empresa. Sei que já teve dias de também não vir lençol”, comenta.
Uma outra enfermeira, de 44 anos – que também não será identificada por questões de segurança – confirmou os relatos sobre a falta de itens básicos e medicamentos no hospital. Em conversa com a reportagem, na saída do IJF, a profissional comenta que é preciso estar “se virando” para fazer curativos, por exemplo.
UMA ESPERA SEM RETORNO
Luiz, de 39 anos, veio de Paraipaba, na Região Metropolitana de Fortaleza, e deu entrada no IJF em 8 de novembro, após sofrer uma fratura na clavícula e uma pancada na cabeça. Desde então, ele espera a visita de um neurologista, sem ter retorno ou previsão de quando o especialista virá. É o que conta Bruna, de 29 anos, que acompanha o irmão na saga para conseguir o tratamento adequado.
“Meu irmão está precisando de cetoprofeno [utilizado para o tratamento de inflamações e dores] e não tem, está sendo medicado com apenas dipirona. (..) Não estamos em leito, estamos em uma sala com macas uma em cima da outra e uma cadeira de plástico, inclusive, até quebrada”, denuncia Bruna.
Francisco (nome fictício), de 20 anos, é outro acompanhante que lida com a rotina do hospital. Ele está junto com o pai, de 52 anos, que fraturou a tíbia. Os dois não sabem quando voltam para General Sampaio, município onde moram na região do Vale do Curu.
REPOUSO E ALIMENTAÇÃO SÃO DESAFIOS
No atual cenário, que escancara uma série de dificuldades, o papelão pode ser o suporte mais acessível para fugir das longas horas em uma cadeira de plástico. Essa é a forma que Francisco encontrou para dormir, já que a unidade não disponibiliza poltronas ou espreguiçadeiras, por exemplo. Ele conta que funcionários do próprio hospital arranjam o material à noite.
“Nem pode entrar lençol, nem dão. Aí você tem que dormir no papelão no chão, você não pode nem usar um lençol que sobra a mais para você forrar o papelão, você também não pode, aí fica complicado a situação, até para você acompanhar a pessoa”, revela.
Há momentos em que nem cadeiras estão disponíveis, aponta a técnica em enfermagem – citada no início da reportagem –, já que as quebradas não são substituídas. Com isso, o número vai diminuindo, deixando mais acompanhantes em pé e sem nenhum tipo de local para repouso.
Além disso, todos os relatos ouvidos pela reportagem dão conta do atraso da entrega das refeições, que em maior grau tem prejudicado a alimentação dos acompanhantes. Já houve dias em que o almoço para eles chegou após às 15h. Em alguns casos, o atraso também atingiu a refeição dos pacientes, como comenta a técnica de enfermagem que, no dia que falou com a reportagem, o lanche da tarde só chegou próximo às 17h.
JUDICIALIZAÇÃO DO CASO
O cenário de precarização do Instituto Dr. José Frota está no radar da Justiça. O Ministério Público cearense ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP), em 7 de novembro, a partir da 137ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, após os problemas de abastecimento de remédios e insumos na unidade persistirem desde o início do ano.
Em maio, o IJF e o MPCE fecharam um acordo que previa uma solução para o caso em até três meses. À época, já eram apontados prejuízos no fluxo de atendimento, aumento do tempo de internação e adiamentos de cirurgias. As carências não foram resolvidas, culminando na ACP.
Em 11 de novembro, a ACP do Ministério Público teve o primeiro desdobramento: os envolvidos têm 72 horas para apresentar manifestação após serem notificados.
Por conta da transição entre o governo Sarto e Evandro Leitão (PT), prefeito eleito de Fortaleza, a ação requer também que o abastecimento tenha uma autonomia de 60 dias. Nesse sentido, o MP faz uma exigência: a retomada do estoque não deverá ocorrer à custa da retirada de materiais de outros hospitais da rede – um prática comum em outros momentos, segundo Uchoa.
Percentual de déficit no estoque de insumos médicos do IJF, de acordo com denúncias recebidas pelo MPCE
Entre outras cobranças, o MPCE solicita a criação de um comitê para acompanhar todo o processo, incluindo questões ligadas aos recursos necessários.
‘DESMONTE E PRECARIZAÇÃO’
A situação do maior hospital municipal de Fortaleza também é vista com preocupação pelo Sindicato dos Médicos do Ceará (SIMEC-CE). “A palavra que melhor define é desmonte”, enfatiza o médico Leonardo Alcântara, que é secretário-geral da entidade.
Em uma visita ao setor de emergência do IJF (salas vermelha e laranja), além de verificar que vários corredores tinham pacientes em macas, o SIMEC recebeu relatos de falta de antibióticos básicos, cetoprofeno e morfina para analgesia, além da carência de vasopressores essenciais, como a vasopressina.
Alcântara conta que as principais queixas são o desabastecimento com falta de insumos, condições desumanas de trabalho e atraso de pagamentos de médicos que prestam serviços através de cooperativas. O diretor relatou, ainda, duas denúncias de cirurgias que foram canceladas por falta de insumos ou de equipamentos.
“Durante uma neurocirurgia de urgência, uma paciente precisou ficar 3 horas com o crânio aberto pois não havia dreno no hospital para finalizar a cirurgia. Tiveram que pedir um dreno da santa casa que foi enviado por um UBERmoto. Este dreno custa aproximadamente R$30. O segundo caso foi na enfermaria de pediatria onde as crianças ficaram chorando de madrugada pois não havia dipirona para aliviar a dor. Um médico de plantão foi na farmácia comprar o medicamento para que as crianças conseguissem dormir sem dor”
Representando profissionais de nível médio e técnico que atuam na área, o Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Ceará (Sindsaúde/CE) é outra entidade que acompanha o cenário de insuficiências por meio do relato de colaboradores do hospital.
A diretora do Sindsaúde, Marta Brandão, conta que, para além das carências envolvendo remédios e insumos, as maiores queixas envolvem o subdimensionamento da equipe de saúde. Com isso, os profissionais têm uma maior sobrecarga de trabalho, o que motiva maiores índices de afastamento.
“Se você já tem uma escala de profissionais reduzida, que o quantitativo já não era suficiente, ele vem é diminuindo cada vez mais por conta do absenteísmo, do adoecimento das pessoas, sobretudo relacionado à depressão e transtorno de ansiedade dos trabalhadores da saúde, dos técnicos, dos auxiliares que vêm se afastando, apresentando atestado médico, porque não suportam mais essa sobrecarga de trabalho e essas condições de trabalho sem garantias do mínimo para que eles possam assistir à população”, salienta Brandão.
AMEAÇA DE SUSPENDER SERVIÇOS
O momento caótico vivenciado pela unidade de referência pode ser agravado. Isso porque profissionais da Cooperativa de Clínica Médica do Ceará (COOPCLINIC) e da Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas do Ceará (COOPANEST) ameaçam suspender os serviços, caso a situação financeira referente aos pagamentos não seja regularizada, conforme divulgado pelo Sindicato dos Médicos na semana passada.
A COOPCLINIC deu um prazo até 1º de dezembro para que a paralisação seja evitada, desde que o problema seja contornado. A entidade denuncia que os faturamentos não têm sido realizados mensalmente, resultando em um tempo excessivo entre a prestação dos serviços e o recebimento dos valores devidos.
Por sua vez, a COOPANEST requer que os pagamentos dos anestesiologistas que atuam no IJF sejam regularizados até 20 de novembro. Caso não haja solução, os profissionais cooperados podem iniciar uma greve.
“O Sindicato dos Médicos vem acompanhando a situação do IJF com bastante preocupação. A cada dia que passa os problemas se intensificam, prejudicando não apenas os profissionais, com relação aos atrasos de pagamentos, mas à população, que não está recebendo o atendimento adequado”, destacou o médico Luigi de Morais, presidente interino do SIMEC-CE.
Reforma tributária deveria ser aproveitada para atacar isenções
Por Editorial / O GLOBO
O sistema tributário brasileiro é repleto de meandros e exceções. A proliferação de gastos tributários — termo técnico que identifica isenções ou cortes de impostos a setores ou grupos de interesse específicos — representa dreno significativo de recursos públicos. A conta foi apresentada com precisão em estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV): nada menos que 7,2% do PIB foram despendidos no ano passado em benefícios como Simples Nacional, Zona Franca de Manaus, isenções de imposto de renda, subsídios a setores automobilístico, farmacêutico e dezenas de outras rubricas. A previsão é que, neste ano, o total fique em 6,9%.
A novidade do estudo é que, pela primeira vez, a estimativa também inclui os gastos tributários dos estados, e não apenas os federais, normalmente já identificados em relatórios periódicos (eles foram de 4,78% do PIB no ano passado). Os pesquisadores usaram parâmetros consistentes com o padrão adotado internacionalmente pela organização Council on Economic Policies (CEP), que permite comparações internacionais.
Todo país concede subsídios ou isenções. A dificuldade está em avaliá-los periodicamente para cortar o que é desperdício ou injustiça. Em 2019, foi instaurado o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP), com o objetivo de avaliar o impacto de subsídios e gastos tributários, para reduzi-los a 2% do PIB como determina a Constituição. Desde então, o CMAP já realizou 34 avaliações, mas nenhuma recomendação resultou em revisão dos gastos tributários. “Até hoje não vimos nenhum gasto tributário efetivamente aprovado ou revisado em função dessa necessidade de atingir esse novo teto”, diz o economista Manoel Pires, do Ibre/FGV, um dos autores do estudo.
De acordo com ele, a reforma tributária em andamento apresenta uma oportunidade para abordar os problemas do intrincado sistema de gastos tributários do Brasil. As recomendações do estudo são sensatas. Primeiro, é necessário estabelecer uma definição clara, capaz de abranger todas as isenções fiscais, independentemente de sua finalidade ou justificativa declarada, que seja aplicada de forma consistente em todos os níveis de governo. Em seguida, padronizar metodologias de cálculo com base nos padrões internacionais. Depois, criar um banco de dados unificado, incorporando todos os níveis de governo. Por fim, fortalecer mecanismos de avaliação como o CMAP, para reduzir e racionalizar os gastos tributários existentes.
Como parte da reforma tributária, isso já deverá acontecer no caso dos impostos que serão extintos, como ICMS ou IPI. Mas os maiores gastos — Simples e Zona Franca — foram preservados, e novas isenções e exceções foram criadas.
Ao implementar as recomendações, o Brasil teria um sistema tributário mais eficiente, equânime e transparente. A reforma tributária atual oferece uma oportunidade crítica rumo a impostos mais justos para o país.