Pouco a comemorar
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
O País recebeu com alívio alguns números apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mas há poucos motivos para comemoração. A violência persiste na sociedade. Serão longas ainda as batalhas para que o Brasil vença a criminalidade. Os dados sobre homicídios mostram que há muito a ser feito.
Em 2023, foram 46.328 assassinatos, uma taxa de 22,8 casos para cada 100 mil habitantes – queda de 3,4% ante o indicador do ano anterior. Trata-se do menor registro da série histórica do levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, iniciada em 2011. A taxa de homicídios no País, porém, é quatro vezes maior que a mundial, além de superar a de países vizinhos. Isso, por si só, expõe a dificuldade do Brasil no combate ao crime.
Para Renato Sérgio Lima, presidente do Fórum, “a boa notícia é que na maior parte dos países as mortes vêm caindo e, entre as grandes causas, há um componente demográfico importante, já que a população está envelhecendo”. A parcela de homens jovens – sobretudo os negros – concentra as vítimas de mortes violentas. Até a idade da população virou uma esperança para refrear as estatísticas.
Enquanto São Paulo (7,8 por 100 mil) e Santa Catarina (8,9) trazem os menores índices do País, as maiores taxas foram registradas no Amapá (69,9) e na Bahia (46,5), onde o Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV) disputam territórios para consolidar novas rotas de envio de cocaína por via marítima para o exterior. Nesses Estados, o crime organizado e a letalidade policial escancaram um cenário de embate constante com consequências trágicas.
As polícias do Amapá e da Bahia, na avaliação de Lima, atuam de forma tumultuada. Não à toa, no topo do ranking, os dois Estados alcançam as taxas de letalidade policial de 23,6 e 12 mortes por 100 mil habitantes, respectivamente, revelando uma distância superlativa em relação a Rondônia (0,6) e Minas Gerais (0,7).
Além de migrar pelo País, o crime também migrou para o mundo virtual, para infortúnio dos cidadãos. Os bandidos têm preferido dar golpes virtuais a cometer crimes nas ruas, aproveitando-se do Pix, de aplicativos e de jogos online. Enquanto houve queda em furtos e roubos – inclusive de celular –, há alta no número de estelionatos, o que impõe às polícias o dever de aperfeiçoar seus recursos tecnológicos.
A violência contra as mulheres também preocupa. Houve crescimento nos números de estupro, importunação sexual e feminicídio. A tipificação de novos crimes, como stalking (perseguição), e campanhas para reduzir a subnotificação explicam parte da alta, mas o aumento generalizado acende o alerta de que ações para reverter esse quadro devem ser prioritárias.
O anuário mostra um crime organizado que se antecipa facilmente à inteligência dos órgãos de investigação e repressão e aos sistemas de defesa privados. Há claramente uma migração da delinquência para o ambiente virtual – que, se reduz a letalidade dos criminosos, por outro lado aumenta substancialmente os prejuízos e dá ainda mais poder financeiro às quadrilhas, contrastando com a excruciante lentidão do Estado.
Estados atrasam investimentos e podem ‘desperdiçar’ R$ 370 milhões de fundo de segurança pública
Por Guilherme Caetano O ESTADÃO DE SP
BRASÍLIA - A seis meses do fim do ano, os 26 Estados e o Distrito Federal correm o risco de perder R$ 370 milhões repassados pela União, desde 2019, por atraso na aplicação da verba em políticas de segurança pública. O valor corresponde ao saldo em conta dos repasses, feitos por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), cujo prazo vence em dezembro. São R$ 131 milhões empoçados referentes ao repasse feito em 2019 (houve 93% de execução do total repassado desse ano) e mais R$ 239 milhões do total repassado no exercício de 2020 (do qual, 84% foi executado).
O orçamento transferido do FNSP aos Estados deve ser usado para custear políticas para segurança pública, com base em critérios definidos pelo governo federal. As prioridades devem ser a redução de homicídios, combate ao crime organizado, defesa patrimonial, enfrentamento à violência contra a mulher e melhoria da qualidade de vida das forças de segurança.
O fundo foi criado em 2018, sob o governo de Michel Temer, para apoiar projetos na área de segurança pública e prevenção à violência. Administrado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), o dinheiro do fundo deve ser destinado a programas de reequipamento, treinamento e qualificação das Polícias Civis e Militares, Corpos de Bombeiros e Guardas Municipais, sistemas de informações, de inteligência e investigação, modernização da Polícia Técnica e Científica e programas de policiamento comunitário e de prevenção ao delito e à violência.
Assim, essa verba não pode ser usada para pagar salários e benefícios e nem transferida para outros Estados e entidades do terceiro setor, por exemplo. Uma equipe técnica do MJSP analisa a destinação dos recursos antes de aprová-la.
De 2019 a 2023, a União repassou R$ 4,4 bilhões, dos quais quase metade (R$ 2,8 bilhões) ainda está em saldo para executar. Em 2024, a previsão é de que o repasse seja de R$ 1,1 bilhão.
Se os Estados não usarem os recursos até dezembro, os R$ 370 milhões referentes aos anos de 2019 e 2020 terão de ser devolvidos e irão para o pagamento da dívida pública. Agora, o MJSP articula para estender esse prazo e dar maior tempo para os governadores executarem 100% desse dinheiro.
O empoçamento desses valores se tornou uma das preocupações da nova diretora do fundo, Camila Pintarelli, que assumiu o posto em março. A pasta identificou que as secretarias estaduais de Segurança Pública vinham apresentando dificuldades técnicas para fazer esse gasto de forma eficiente.
Nomeada pelo ministro Ricardo Lewandowski, Camila criou a Rede Interfederativa do FNSP, que consiste em reforçar o diálogo e o apoio aos gestores estaduais, para ajudá-los na execução da verba. São feitas reuniões mensais com as autoridades competentes de cada Estado em que são tiradas dúvidas a respeito do processo.
“Pode parecer bobo, mas isso tem um efeito prático transformador. Ao colocar todos na mesma mesa, eles percebem que conseguem aprender com a experiência uns dos outros. Com essa rede, a gente consegue tirar dúvidas em escala”, diz Camila.
Desde que foi implementada há quatro meses, essa rotina de acompanhamento ajudou os Estados a destravarem cerca de R$ 800 milhões dos R$ 2,8 bilhões repassados – que estão reservados pelos governos estaduais para execução.
A ideia da Secretaria Nacional de Segurança Pública, sob o comando de Mario Sarrubbo, é permitir que os Estados consigam, daqui em diante, usar com mais facilidade esse orçamento, de modo a livrá-los da necessidade de um acompanhamento constante como o que está sendo feito.
“A gente tinha muito problema com entraves burocráticos para que esses investimentos pudessem ser feitos. Nossa missão é deixar políticas estruturantes, que sirvam para sempre, qualquer que seja o governo que assuma aqui”, afirma Sarrubbo.
Existe uma discrepância na execução dessa verba entre os Estados: enquanto uns investiram quase todo o montante recebido, outros pouco o usaram. São Paulo aparece no topo do ranking, tendo executado 85% dos R$ 168,8 milhões transferidos de 2019 a 2022. Em seguida vêm Rio Grande do Sul (85% dos R$ 130,9 milhões) e Paraná (71,4% dos R$ 132,6 milhões).
Na outra ponta, Santa Catarina ocupa a última posição, tendo gasto apenas 34,2% dos R$ 100,9 milhões recebidos nesse período. Questionada da razão no atraso desses investimentos, a Secretaria de Segurança Pública catarinense informou, por meio de nota, que “dificuldades como a mudança da lei de licitações, onde todos os processos em Santa Catarina haviam ficado suspensos até readequação, já foram superadas e, neste ano de 2024, os recursos referidos estão em vias de contratação e execução em sua totalidade”.
Desequilíbrio de Poderes
Por Merval Pereira / O GLOBO
A democracia, não apenas no Brasil, está passando por momentos tormentosos que prenunciam um futuro inquietante. Em consequência, os Poderes da República ganham tons políticos que não se coadunam com o equilíbrio teoricamente imaginado por seus criadores. À medida que os Poderes se envolvem com ações políticas que sempre foram consideradas imorais, até ilegais, elas se transformam em normais, e fica-se com a sensação de que trabalham em comum acordo — um acordo político muito semelhante àquele proposto pelo hoje lobista Romero Jucá, que prenunciou um pacto “com o Supremo, com tudo” para “estancar essa sangria”, referindo-se à Operação Lava-Jato.
Alguns fatos preocupantes mostram que estamos vivendo não mais numa República, ou quase isso, no limite de um governo disfuncional em que, dependendo do momento, um dos três Poderes se impõe e é acobertado pelos outros dois, o que pode ser indicativo de um regime autoritário à vista.
Está acontecendo a mesma coisa nos Estados Unidos, agravada pelo triste hábito de resolver as pendências políticas à bala. Lá, um juiz achou normal que o ex-presidente Trump levasse para casa documentos secretos do governo e anunciou sua decisão às vésperas da convenção que o indicará como o candidato republicano à Presidência. Também lá a Suprema Corte deu recentemente uma interpretação mais flexível a uma lei anticorrupção, admitindo que funcionários públicos podem receber presentes ou dar assessoria a empresas.
Aqui, Bolsonaro acha normal ligar para o chefe da Receita Federal para falar sobre um filho que é investigado. O presidente da ocasião pode escolher o secretário da Receita Federal, mas não tem o poder de interferir nas investigações, especialmente para defender um filho. Isso acontece com realezas das antigas, em que a família do rei é intocável, e não é o que a República pede.
Nas realezas modernas, a intocabilidade já está bastante limitada pela ação dos paparazzi, da imprensa livre e da sociedade, cada vez mais atenta aos abusos. A vontade de normalizar qualquer deslize vai longe, na visão de direita ou esquerda. O presidente Lula acha que pode interferir na Petrobras, que pode indicar políticos aliados para órgãos estatais. Não é o que uma verdadeira democracia pede de seus dirigentes. A tendência de achar que o presidente pode qualquer coisa é anacrônica, fora do que exige uma democracia moderna.
O mesmo acontece com o Supremo Tribunal Federal (STF), que exorbita de suas funções, achando que tem poderes para dirigir as investigações do ponto de vista da maioria eventual naquele momento — sempre uma maioria relativa, dependente da tendência do presidente que nomeia os ministros, entre progressistas, conservadores, de direita ou de esquerda.
Não é possível que os mesmos ministros votem de maneiras distintas sobre o mesmo caso. É preciso um mínimo de coerência para que o cidadão se sinta garantido pela mais alta instância da Justiça brasileira. Um exemplo inquietante é o caso do ministro Alexandre de Moraes, que, a partir do belo serviço prestado na presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em defesa da democracia, convenceu-se de que é intocável — e não apenas ele.
Uma desavença num aeroporto no exterior com uma família de brasileiros transformou-se em caso de segurança nacional. O encarregado da investigação, que considerou o caso de menor gravidade e o arquivou, foi substituído por outro, que viu na discussão em solo estrangeiro um caso sério, a ponto de o procurador-geral da República ter denunciado por calúnia e injúria os membros da família, com base em “expressões corporais”, pois o vídeo não tem áudio.
Não é aceitável, numa democracia, que se ataque fisicamente uma autoridade, mas também é impensável que uma investigação que já fora encerrada mude de direção sem que tenha surgido fato novo. O Congresso, que teoricamente representa o povo brasileiro, tem interesses próprios para tratar com urgência, como a anistia aos partidos que desrespeitaram a legislação que eles mesmos aprovaram. Assim la nave va, desgovernada.
* Na coluna de terça-feira, me referi a uma licitação cancelada como do Ministério das Comunicações, mas o problema ocorreu na Secretaria de Comunicação.
O medo das urnas
Por Merval Pereira / O GLOBO
Mesmo que Maduro não fosse seu candidato preferido, o presidente Lula estaria agora mais empenhado do que nunca na sua vitória, para não ter que enfrentar o dilema de quem se mete a apoiar ditadores: evitar o “banho de sangue” prometido pelo ditador venezuelano em caso de derrota. Caso ela venha, o que não parece impossível a esta altura, o presidente brasileiro, que se diz um democrata, terá que intervir para que a Venezuela não se torne uma ditadura escancarada.
Não que Lula não apoie ditaduras, como mostra seu comportamento com Cuba, ou Nicarágua. Esses três exemplos, aliás, são de países que fizeram revoluções de esquerda para afastar governos autoritários de direita, presumidamente para defender o povo explorado. No que foram apoiados entusiasticamente em determinado momento histórico. Agora são eles os ditadores de esquerda que exploram o mesmo povo. De heróis passaram a vilões, e colocam governos como o de Lula em uma enrascada: como dizer-se um democrata quando os amigos se tornam ditadores?
Lula, sem ter o que dizer diante da ameaça de Maduro de que sua derrota poderá gerar “um banho de sangue”, saiu-se com essa: “Eles que elejam quem eles quiserem”. Como assim, se os principais líderes oposicionistas da Venezuela estão presos ou impedidos de disputar a eleição presidencial? Mesmo assim, o oposicionista que sobrou, Edmundo Gonzales, tem chances reais de vencer as eleições, e por isso Maduro espalha suas ameaças dias antes do pleito.
O assessor especial de Lula para assuntos internacionais, Celso Amorim, que hoje assume o papel que um dia já foi de Marco Aurelio Garcia quando Amorim era o chanceler brasileiro, tentou amenizar a fala de seu malvado preferido, dizendo que Maduro se expressou mal ao falar em “banho de sangue”, quando queria se referir à luta de classes. Mesmo que tivesse sido um ato falho, revelaria o que Maduro pensa da “luta de classes”, uma associação da guerra como a continuidade da política por outros meios, como já disse Clausewitz.
Fica cada vez mais difícil para o governo brasileiro sustentar que na Venezuela há “democracia até demais”, como já disse Lula. Uma frase como a dita por Maduro elimina qualquer possibilidade de classificá-lo como “um democrata”, ou seu governo como uma “democracia”. O “banho de sangue” prometido, quando as pesquisas eleitorais mostram a oposição com praticamente 60% dos votos, pode vir a ser uma desculpa para adiar as eleições do dia 28, o que escancararia o caráter simplesmente simbólico da ida às urnas, pois o resultado contrário ao governo não seria aceito.
Já o fato de não ser possível a Maduro organizar uma eleição em que ele não correria chance de perder, como fazem outras ditaduras pelo mundo, já é sinal de sua fraqueza política. Se saberá qual a fortaleza militar quando se aproximarem as eleições, e as pesquisas continuarem a prever uma vitória da oposição longe de um empate técnico.
É certo que o pragmatismo na política externa é incontornável, por isso a chamada maior democracia do mundo, os Estados Unidos, se submetem a uma relação assimétrica com a Arábia Saudita, por exemplo, tendo dado imunidade ao ditador Mohammad bin Salman, acusado pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi.
Mas, pelo menos, os órgãos de inteligência dos Estados Unidos desvendaram o caso e divulgaram relatórios, e nunca nenhum dirigente americano garantiu que a Arábia Saudita era uma democracia. É compreensível que o governo brasileiro, qualquer governo que se guia pelas regras internacionais, precise manter sua liderança na América do Sul, mas para tal não é preciso assumir as vergonhosas ações das ditaduras.
The Economist: Com Lula, Brasil caminha no ‘lado selvagem’ da economia
Por The Economist / O ESTADÃO DE SP
No ano até meados de junho, a moeda do Brasil, o real, teve queda de 17% em relação ao dólar, o pior desempenho entre todas as moedas importantes durante este período. A Bolsa de Valores de São Paulo perdeu 8% do seu valor, mesmo com a recuperação de outros mercados emergentes. As razões para essa crise não são difíceis de adivinhar: os investidores duvidam do compromisso de Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente de esquerda, com políticas fiscais e monetárias responsáveis, e desconfiam do seu flerte renovado com um Estado grande.
As preocupações deles parecem agora ter sido levadas em conta, pelo menos parcialmente. Este mês, tanto Lula como sua mulher, Rosângela “Janja” da Silva, politicamente influente, fizeram de tudo para apoiar Fernando Haddad, o ministro da Fazenda, e os seus esforços para reduzir o déficit fiscal. Os mercados responderam: o real ganhou cerca de 5% desde o seu mínimo no início do mês, e o mercado de ações também teve alta.
Mas os sinais são confusos. O governo Lula está gastando muito, e ele muitas vezes parece relutar em controlar isso. Lula tem se intrometido em empresas controladas pelo Estado. Ele criticou frequentemente Roberto Campos Neto, o presidente do Banco Central, que é formalmente independente desde 2021. O mandato de Campos Neto termina este ano, juntamente com o de dois dos outros oito membros do conselho do banco. O governo poderá substituí-los, caso o Senado aprove. Isso significa que seis dos nove membros do conselho terão sido indicados por Lula.
A preocupação imediata é fiscal. Após dois anos de excedentes primários (ou seja, antes do pagamento de juros), o FMI avalia que o Brasil tenha acumulado um déficit primário de 2% do PIB em 2023, o primeiro ano de regresso de Lula ao cargo (ele foi presidente de 2003 a 2011). O fundo acredita que isso cairá para 0,7% este ano.
O problema é que, como a política fiscal tem sido frouxa, para controlar a inflação a política monetária deve ser restritiva. Isto, por sua vez, significa que o déficit global — que inclui pagamentos de juros — aumentou para 9,4% nos 12 meses até junho, em comparação com 5,8% para esse período em 2022-23, segundo o Goldman Sachs. Isso está fazendo a dívida pública aumentar, passando de 60% do PIB em 2011 para 85% hoje e podendo atingir 95% em 2029, segundo o FMI.
Parte do aumento do déficit em 2023 pode ser atribuído a Jair Bolsonaro, o antecessor populista de extrema-direita de Lula. Durante a sua gestão, o Congresso obteve mais poderes para gastar, distribuindo subsídios a interesses especiais e dinheiro federal para campanhas eleitorais. Para tentar ganhar a reeleição em 2022, Bolsonaro eliminou os impostos sobre combustíveis e aumentou os pagamentos da Previdência social.
Ele também adiou o pagamento de precatórios, pagamentos ordenados judicialmente em disputas envolvendo impostos ou pensões. Desde o final de 2023, o governo teve de pagar quase R$ 90 bilhões (US$ 16 bilhões, ou 0,8% do PIB) em precatórios.
Mas a maior parte do aumento do déficit não é herdada. Os gastos até agora neste ano aumentaram 13% em termos reais em comparação com o mesmo período do ano passado. Isso exclui pagamentos de juros. Lula expandiu ainda mais as transferências para os pobres do Brasil. Ele aumentou em mais do que a inflação o salário mínimo, ao qual estão ligadas muitas pensões e benefícios sociais do Estado. Os gastos com a segurança social aumentaram 10% em termos anuais, impulsionados por um aumento suspeito no número de requerentes por invalidez.
O governo alterou as regras para vincular os gastos com educação e saúde ao aumento das receitas federais, e não à inflação. Sozinha, essa mudança aumentou os gastos com saúde em R$ 50 bilhões no ano passado, de acordo com Marcos Mendes, do Insper, uma universidade de São Paulo.
As inundações catastróficas no Sul do País também aumentaram os gastos. Lula também anunciou novas políticas industriais que deverão custar R$ 1,3 bilhão cumulativamente até 2026, cerca de um décimo do PIB. Ele nomeou um aliado para dirigir a Petrobras, a empresa de energia controlada pelo Estado, levantando temores de um retorno à má gestão do passado.
Para estabilizar a dívida, no ano passado o ministro da Fazenda de Lula, Fernando Haddad, estabeleceu um novo arcabouço fiscal que limita o aumento dos gastos do governo a 2,5% em termos reais por ano (excluindo pagamentos de juros). Ele prometeu eliminar o déficit primário este ano e registar excedentes primários de 0,5% do PIB em 2025 e 1% em 2026. Mas, em abril, após ter deixado claro que a despesa estava superando o crescimento das receitas, Haddad pediu ao Congresso que afrouxasse as metas. Os investidores temem que o governo não leve a sério o equilíbrio das contas.
Esses receios foram amplificados pelas críticas de Lula ao Banco Central. No mês passado, o seu Partido dos Trabalhadores moveu uma ação contra Campos Neto, para impedi-lo de fazer declarações políticas. A ação foi movida depois que Campos Neto jantou com Tarcísio de Freitas, o governador conservador do Estado de São Paulo e potencial adversário de Lula nas próximas eleições presidenciais.
Neste jantar, foi alegadamente oferecido a Campos Neto o cargo de ministro da área econômica se Tarcísio se tornar presidente (embora ele negue). Essa pressão externa torna mais difícil para o Banco Central baixar a taxa de juros, atualmente em 10,5%, conforme a inflação diminui (está em torno de 4% ao ano). Em termos reais, esta é uma das taxas de juros mais elevadas do mundo.
Os defensores de Haddad dizem que ele está fazendo o seu melhor para manter as contas públicas em ordem, apesar da hostilidade do seu próprio partido. Mas, até agora, ele conseguiu isso aumentando as receitas, que aumentaram 10% em termos reais este ano. Ele tributou fundos de investimento offshore, aumentou tarifas sobre veículos importados e restabeleceu impostos sobre combustíveis. Em 3 de julho, Haddad se sentou com o presidente e pareceu tê-lo convencido a desistir de atacar Campos Neto.
O ministro disse que passará um “pente-fino” nos pagamentos da Previdência social, o que poderá levar a uma economia de R$ 25 bilhões no próximo ano. Em 22 de julho ele deverá anunciar cortes orçamentários. Para manter o diluído arcabouço fiscal no caminho certo, estes devem chegar a pelo menos US$ 23 bilhões, diz Mendes. Haddad apresentou a ideia de vincular os gastos com educação e pensões à inflação. Lula rejeitou. “O que é importante é que a economia esteja crescendo, o emprego esteja crescendo, os salários estejam crescendo”, disse ele esta semana.
O risco não é de uma crise financeira imediata. O Banco Central tem US$ 360 bilhões em reservas, o que o torna resiliente aos choques globais. Quase toda a dívida pública está em moeda local. As reformas trabalhista, previdenciária e fiscal aprovadas nos sete anos mais recentes estão proporcionando algum impulso ao crescimento, que, embora modesto, superou as previsões. Para o bem ou para o mal, os brasileiros são mestres absolutos em viver à beira do abismo fiscal.
Mas não há espaço para complacência. A população está envelhecendo e a conta das pensões, que já absorve 44% dos gastos federais, aumentará ainda mais. A produtividade está estagnada, a educação é deficiente e a infraestrutura é de má qualidade. Tanto o presidente como o Congresso parecem apegados à noção de que os elevados preços das matérias-primas, o dinheiro barato dos bancos estatais e os subsídios às empresas favorecidas irão reavivar o Brasil. Há poucas evidências indicando que estejam corretos./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Fé, pesquisa e internet: qual é o legado de Padre Cícero 90 anos após sua morte?
Um personagem polêmico do sertão gera fascínio entre muita gente, de devotos a pesquisadores. Padre Cícero Romão Batista ainda guarda enigmas 180 anos após seu nascimento e 90 anos após sua morte, tanto no Ceará quanto em outros Estados do Nordeste, mas deixou legados importantes na fé popular, na política, na educação e no meio ambiente, além de chegar à internet por meio da divulgação de influenciadores.
Um personagem polêmico do sertão gera fascínio entre muita gente, de devotos a pesquisadores. Padre Cícero Romão Batista ainda guarda enigmas 180 anos após seu nascimento e 90 anos após sua morte, tanto no Ceará quanto em outros Estados do Nordeste, mas deixou legados importantes na fé popular, na política, na educação e no meio ambiente, além de chegar à internet por meio da divulgação de influenciadores.
Nascido em 24 de março de 1844, no Crato, o sacerdote viveu até 1934. Por complicações de saúde, em 20 de julho, faleceu em Juazeiro do Norte, cidade que ajudou a fundar e da qual foi o primeiro prefeito.
Para Maria de Fátima Pinho, doutora em História Social, professora da Universidade Regional do Cariri (Urca) e pesquisadora da vida do “Padim Ciço”, o clamor popular pelo padre continua porque, ao longo dos seus mais de 60 anos de sacerdócio, “ele soube acolher o povo pobre”.
“O Nordeste no século XIX era um lugar onde o braço do Estado não atingia. Não havia escolas públicas nem atendimento de saúde pública. O que havia era muito precário e para poucos. Tínhamos uma população mais de 90% analfabeta. Então, imagina um padre que faz parte de uma elite tratar sertanejos e sertanejas pobres como ‘meus amiguinhos e minhas amiguinhas’”, explica.
Além de acolher negros e negras recém-libertos da escravidão - o Ceará foi o primeiro Estado a abolir esse sistema, em 1884 -, ele orientou a população mais carente a desenvolver as próprias lavouras e a se organizar em associações.
Um personagem polêmico do sertão gera fascínio entre muita gente, de devotos a pesquisadores. Padre Cícero Romão Batista ainda guarda enigmas 180 anos após seu nascimento e 90 anos após sua morte, tanto no Ceará quanto em outros Estados do Nordeste, mas deixou legados importantes na fé popular, na política, na educação e no meio ambiente, além de chegar à internet por meio da divulgação de influenciadores.
Nascido em 24 de março de 1844, no Crato, o sacerdote viveu até 1934. Por complicações de saúde, em 20 de julho, faleceu em Juazeiro do Norte, cidade que ajudou a fundar e da qual foi o primeiro prefeito.
Para Maria de Fátima Pinho, doutora em História Social, professora da Universidade Regional do Cariri (Urca) e pesquisadora da vida do “Padim Ciço”, o clamor popular pelo padre continua porque, ao longo dos seus mais de 60 anos de sacerdócio, “ele soube acolher o povo pobre”.
“O Nordeste no século XIX era um lugar onde o braço do Estado não atingia. Não havia escolas públicas nem atendimento de saúde pública. O que havia era muito precário e para poucos. Tínhamos uma população mais de 90% analfabeta. Então, imagina um padre que faz parte de uma elite tratar sertanejos e sertanejas pobres como ‘meus amiguinhos e minhas amiguinhas’”, explica.
Além de acolher negros e negras recém-libertos da escravidão - o Ceará foi o primeiro Estado a abolir esse sistema, em 1884 -, ele orientou a população mais carente a desenvolver as próprias lavouras e a se organizar em associações.
O ‘MILAGRE DE JUAZEIRO’
Os indícios de liderança de Cícero se mostraram desde cedo. Aos 28 anos, ele conquistou os moradores do povoado de Juazeiro, então distrito do Crato. O padre “de estatura baixa, pele branca, cabelos louros, olhos azuis e voz modulada”, como recorda seu memorial no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), decidiu fixar residência ali, em meio a um pequeno aglomerado de casas de taipa.
As pregações fervorosas, os conselhos e as visitas domiciliares que promovia o tornaram conhecido na região. A “fama” de Padre Cícero foi crescendo, assim como Juazeiro, mas o estopim para seu reconhecimento ocorreu em 1º de março de 1889: durante uma missa, a hóstia ministrada por ele se transformou em sangue na boca da religiosa Maria de Araújo.
A incapacidade de médicos e técnicos explicarem o fato contribuiu para fortalecer no povo a tese do “milagre de Juazeiro”. Contudo, a posição contrária do bispo Dom Joaquim José Vieira e da própria Santa Sé, em Roma, levou à suspensão definitiva do sacramento da Ordem de Cícero - o que gerou revolta entre a população.
Proibido de celebrar missas, ele enveredou na política e contribuiu para a emancipação política de Juazeiro do Norte, ocorrida em 22 de julho de 1911. Primeiro intendente (então cargo de prefeito) do novo município, ocupou o cargo por 12 anos. Em 1913, também acumulou a função de vice-presidente da província do Ceará. Tempos depois, em 1926, assumiu mandato de deputado federal.
Sob seu comando, Juazeiro do Norte se tornou uma cidade próspera: o sacerdote estimulou a expansão da agricultura, escolas, artesanato, associações comerciais e capelas, além de ter socorrido a população durante secas e epidemias.
A fama de “coronel”, contudo, não se justifica pela leitura de Fátima Pinho. Ele não tinha guardas particulares nem era mandatário de uma fazenda, por exemplo. Na verdade, essa construção se deu principalmente na imprensa da época a partir de rivalidades despertadas pela entrada do religioso na vida política. “O padre Cícero era um sujeito político, isso é preciso dizer. Ele assumiu um partido político, se filiou, foi eleito”, resume a pesquisadora.
Independente das rixas, a morte do “Padim”, em 20 de julho de 1934, gerou comoção popular e levou milhares de fieis ao velório. Até hoje, uma grande multidão de romeiros de todo o Nordeste visita seu túmulo na Capela do Socorro, nessa mesma data, e no Dia de Finados, em 2 de novembro.
DEVOÇÃO NA INTERNET
Com o tempo, a religiosidade também se reinventa. Afilhada de batismo do “Padim”, a professora Gil Landim dedica um perfil de internet a ele. Em vídeos de humor no @humormeupadim, ela fala com uma estátua do padre pedindo conselhos e intercessões ou mesmo jogando conversa fora - não, sem antes, pedir-lhe “a bença”.
Segundo ela, o conceito da página surgiu há três anos, após um sonho com o sacerdote. Naquele momento, ela também havia descoberto uma doença rara no pâncreas que a deixava incapacitada, mas mesmo assim levou a ideia a cabo. No começo, a recepção de parte do público não foi positiva.
Tempos depois, um diagnóstico médico chegou a suspeitar que Gil tinha câncer. Somente um exame poderia tirar a dúvida. A professora, mais uma vez, pediu auxílio a seu intercessor pessoal.
“Fiquei louca porque tenho dois filhos pequenos. Eu disse a ele: Padim, eu não fujo da cruz, mas se o senhor me der a oportunidade de criar meus filhos, eu agradeço. Se não tiver com câncer, eu nunca vou tirar seu nome do meu perfil e seus vídeos vão estar sempre presentes”, rezou.
Resultado: não tinha tumor. Hoje, com medicação, Gil se sente bem melhor. Ainda que mescle suas esquetes entre a vida docente e causos do interior, numa espécie de resgate cultural, ela cumpre a promessa e continua gravando as interações com padre Cícero.
“Minha lição aprendida com ele é ajudar o mais empobrecido, essa relação com o simples. Ele veio para uma terra que não tinha nada e construiu muita coisa. Não baixou a cabeça para o que não acreditava porque tinha dignidade e caráter”, acredita.
PROCESSO DE BEATIFICAÇÃO
Padre Cícero faleceu afastado da Igreja e sem o reconhecimento dos milagres atribuídos a ele, mas sua reconciliação com o Catolicismo ocorreu em 2015, quando o Vaticano decidiu perdoar as punições impostas a ele.
Já em agosto de 2022, foi autorizada a abertura do seu processo de beatificação. Neste ano, a Igreja espera concluir a fase de estudos locais. Depois, todos os documentos colhidos com relatos de milagres, graças e atos serão enviados para análise do Vaticano.
O padre Laércio de Lima, administrador da Casa-Museu Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, aponta que “a causa é de profunda esperança”. Segundo ele, ainda em vida, o próprio padre não teria pregado pressa nesse processo. “No seu tempo oportuno, a minha Igreja fará da forma certa”, teria dito.
O religioso também percebe que a figura de Cícero já extrapolou o Nordeste. Atualmente, chegam a Juazeiro diversos visitantes do Sudeste, do Sul e até de outros países, especialmente após o decreto de servo de Deus e de divulgações na internet.
A professora Maria de Fátima Pinho, da Urca, também acredita que a Igreja deve canonizar Padre Cícero. Primeiro, “pela insistência” de milhares de sertanejos e sertanejas que nunca desistiram de ir a Juazeiro apesar da desaprovação do Catolicismo. Depois, pelo turismo religioso que o fato pode estimular.
“É muito importante hoje, para a Igreja Católica, tornar o Padre Cícero santo, apesar de todas as polêmicas e questões políticas em que ele foi envolvido. Ele era um homem de convicções fortes, que sustentava aquilo em que acreditava. Foi assim, por exemplo, quando o bispo pediu para ele negar o milagre. Ele disse que não podia negar porque ele presenciou e ele acreditava. E pagou com o preço da cassação das ordens sacerdotais”, finaliza.
PROGRAMAÇÃO DOS FESTEJOS
Os fieis celebram, neste sábado, o fim da programação da romaria de 90 anos de vida eterna do sacerdote, sob o tema “Servo de Deus Padre Cícero Romão, o missionário do Sertão”. A programação para este sábado (20) no Horto, em Juazeiro do Norte, inclui:
- 7h - Terço mariano
- 7h30 - Santa Missa
- 8h30 - Apresentação cultural
- 9h - Santa Missa
- 10h30 - Santa Missa
- 19h - Santa Missa pela causa de beatificação e canonização