Fora da lei, prefeituras não têm transparência
Grande parte das prefeituras brasileiras exibe em seus portais na internet verdadeiras peças de ficção a fim de burlar a legislação que as obriga a prestar contas com transparência aos cidadãos. Tanto no que se refere à administração das taxas e impostos que arrecadam quanto ao detalhamento orçamentário e execução de obras.
O engodo fere frontalmente a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, e lei complementar subsequente de 2009 que obrigam as prefeituras, assim como os estados e a União, a disponibilizar documentos e demais informações, em tempo real e de forma minuciosa, sobre a execução orçamentária.
Levantamento recente da ONG Transparência Brasil sobre o tema revelou que, mesmo entre as capitais, três em cada quatro apresentam níveis "regular" ou "ruim" de transparência em aspectos como execução de emendas parlamentares, andamento de obras públicas e valores pagos, entre outros.
Assim, cerca de 21,4 milhões de pessoas —o equivalente à população de Minas Gerais— vivem em capitais com índices inadequados de livre acesso a dados públicos.
A pesquisa mostrou que apenas Vitória, no Espírito Santo, alcançou classificação "ótimo" no ranking, com nota 98,6 (em escala de 0 a 100). Nos últimos anos, o estado capixaba notabilizou-se como exemplo para o país no que se refere ao ajuste das contas públicas e a boas práticas administrativas.
São Paulo, a maior cidade brasileira, obteve 78,9 pontos e ficou em terceiro lugar, antecedida por Recife (79) —ambas com a classificação "bom". As seis piores ("ruim") estão no Norte e Nordeste: Natal, Rio Branco, Boa Vista, Belém, Teresina e Macapá.
Outro levantamento abrangente sobre a qualidade dos portais das prefeituras realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), entre 2021 e 2022, avaliou 2.376 municípios em oito estados.
Nada menos que 66% dessas cidades não possuíam ferramenta adequada. E muitas das que as tinham não proporcionavam o direcionamento para dados ou informações de contratos, tal como a legislação exige, apenas conduziam o usuário do site a notícias da imprensa sobre o município.
Apesar de realizar outros trabalhos para estimular as prefeituras a divulgar informações de forma sistemática, o TCU reconheceu que há muitos desafios a serem enfrentados, à época do extenso levantamento de 2021-2022.
Em ano de eleição municipal, é fundamental que o tema seja abordado com seriedade pelos órgãos de fiscalização como o TCU e os tribunais de contas estaduais e municipais, além das câmaras de vereadores, assim como nos debates entre os candidatos.
Atores interpretam médicos para vender produtos que prometem resultados milagrosos, diz Cremesp
O Ministério Público de São Paulo instaurou um procedimento investigatório criminal sigiloso para apurar a veiculação de anúncios de venda de produtos que prometem resultados milagrosos e suplementos nas redes sociais e na internet, após ofício enviado pelo Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo).
Nos anúncios, atores interpretam médicos e, em alguns casos, usam registros profissionais verdadeiros para vender os produtos. Dentre eles há receitas para alívio de sintomas da menopausa, um "Ozempic natural" para perda de peso e até mesmo um "pozinho que cura cegueira", aponta o ofício, ao qual a Folha teve acesso.
Em documento enviado também à Polícia Civil, o Cremesp pede a abertura de um inquérito policial após ser informada "de possível exercício ilegal da medicina, estelionato, charlatanismo e curandeirismo".
Os atores dos vídeos costumam se apresentar como médicos experientes e, na sequência, fazem a propaganda de produtos com supostas propriedades terapêuticas. Alguns não incluem informes de que se trata de encenação.
"Nós temos isso como um problema sério, grave, porque nós não sabemos o alcance", diz Angelo Vattimo, presidente do Cremesp. "Não faz parte da atuação médica anunciar nenhum produto, médico não vende nada", acrescenta.
Os vídeos chegaram ao conselho por meio de seu canal de denúncias. Em um deles, um homem que se identifica como médico endocrinologista Ricardo Bruno fala sobre uma bactéria que "acumula gordura corporal enquanto você dorme". Ele, então, anuncia o Night Slim, produto "para emagrecer" que diz ser "totalmente aprovado e regulamentado pela Anvisa".
Procurada, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) negou que haja medicamento registrado com o nome Night Slim.
Além disso, o número profissional e o nome usados por ele são de um médico ginecologista que atua no Rio de Janeiro.
Procurada, a Meta, que controla a tecnologia do Facebook e do Instagram, diz que atividades que tenham como objetivo enganar, fraudar ou explorar terceiros não são permitidas nas plataformas e recomenda que os usuários denunciem quaisquer conteúdos que acreditem ir contra os padrões e diretrizes das comunidades.
COMO EVITAR CAIR EM GOLPES DO TIPO
O Cremesp diz ser proibido que médicos façam propagandas sensacionalistas de medicamentos e suplementos e aconselha que os pacientes usem o Guia Médico, disponível no site do conselho, que permite checar, pelo nome ou CRM, se o profissional é realmente médico e se possui especialidade registrada.
É indicado ainda pesquisar o produto antes da compra e checar o site e a empresa vendedora no Reclame Aqui.
Caso o médico identifique que seus dados estão sendo usados por terceiros, o conselho recomenda que o profissional comunique o Conselho Regional de Medicina e registre um boletim de ocorrência.
Javier Milei, um presidente ‘quase judeu’ na Argentina do Papa Francisco
Por Jack Nicas (The New York Times) e Daniel Politi (The New York Times) O ESTADÃO DE SP
O presidente Javier Milei da Argentina é um católico que lidera o país natal do papa Francisco.
Ele também estuda regularmente a Torá, participa do jantar de Shabat e disse que talvez seu conselheiro mais importante seja seu rabino. Ao longo dos anos mais recentes, Milei demonstrou um interesse intenso e, entre a maioria dos líderes mundiais, incomum pelo judaísmo.
Ele publicou versos hebraicos da Torá nas redes sociais, viajou internacionalmente para se encontrar com rabinos, chamou Moisés de inspiração e disse que, se não fosse pelos desafios de observar o sábado judaico enquanto servia como presidente, ele se converteria ao judaísmo.
Apoio a Israel
A sua crescente devoção à fé judaica também começou a informar a política argentina. A nação se tornou o mais feroz defensor de Israel na América Latina, declarando o Hamas, o grupo militante palestino, uma organização terrorista. Milei prometeu transferir a embaixada da Argentina em Israel para Jerusalém. E nomeou seu rabino pessoal, Shimon Axel Wahnish, como embaixador da Argentina em Israel.
Ele também prometeu esforços renovados para buscar justiça para as 85 vítimas do atentado a bomba de 1994 contra um centro comunitário judaico em Buenos Aires. O 30º aniversário desse ataque foi na quinta feira, 18.
“Não estamos aqui para fazer mais do mesmo. Estamos aqui para propor uma ruptura com o que vários governos fizeram” em resposta ao atentado, disse Milei na noite de quarta feira, 17, em um evento memorial em Buenos Aires. O ataque tem sido uma ferida aberta para a comunidade judaica argentina porque ninguém jamais foi legalmente responsabilizado por ele.
Os tribunais argentinos concluíram que o Irã estava por trás do ataque e que o grupo militante libanês Hezbollah o executou. Os tribunais nomearam pessoas específicas, mas os suspeitos permaneceram foragidos apesar dos avisos de detenção da Interpol. Os tribunais argentinos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos também concluíram que antigas autoridades argentinas dificultaram as investigações a respeito do atentado.
Em abril, quando um tribunal superior da Argentina reafirmou as conclusões anteriores a respeito do papel do Irã, o gabinete de Milei saudou a decisão, dizendo que “pôs fim a décadas de atrasos e acobertamentos”.
Abordagem
A ligação crescente de Milei com o judaísmo como líder de uma nação esmagadoramente cristã reflete sua abordagem pouco ortodoxa para a política, que ajudou a levá-lo à presidência no ano passado.
Milei foi eleito depois de dizer aos argentinos que eles deveriam suportar mais dor para resolver a crise econômica do país. E embora isso até agora tenha se mostrado verdade – pelo menos a parte dolorosa, bom o aumento da pobreza e o colapso do peso argentino – as suas taxas de aprovação permaneceram altas, em torno de 50%.
Milei chegou mesmo a sugerir que o judaísmo poderia fornecer as respostas para resolver a confusão econômica da Argentina. “O rabino que me ajuda a estudar diz que eu deveria ler a Torá do ponto de vista da análise econômica”, disse ele ao El País no ano passado.
Os argentinos se habituaram à turbulência econômica, mas não estão tão habituados a um líder que parece ter uma ligação mais forte com o judaísmo do que com o cristianismo, a fé que quase 80% do país diz seguir.
Carlos Menem, presidente da Argentina de 1989 a 1999, foi criado como muçulmano, mas se converteu ao catolicismo ao ingressar na política argentina. Milei foi criado como católico, mas chamou Francisco de “imbecil” e “esquerdista sujo”. Mais tarde, ele se desculpou.
Em abril, ao receber o prêmio de “embaixador da luz” em uma sinagoga hassídica perto de Miami, Milei disse que herdou seus “valores judaicos” de um avô que, pouco antes de morrer, descobriu que era judeu.
O rabino Wahnish disse que conheceu Milei em 2021 para uma breve conversa que acabou durando horas. Eles falaram a respeito de textos e valores judaicos, e isso rapidamente repercutiu em Milei.
“Era como se ele já conhecesse aquilo, mas simplesmente não soubesse que era judaísmo”, disse o rabino Wahnish. Os dois agora conversam com frequência, com Milei chamando o rabino de seu “conselheiro espiritual” e levando-o em viagens internacionais, inclusive para conhecer o bilionário Elon Musk.
Milei divide comunidade judaica
A Argentina, uma nação de 46 milhões de habitantes, tem a maior população judaica da América Latina, com cerca de 200.000 pessoas no país identificadas como judias. Chegando em ondas de imigração iniciadas no final do século XIX, muitos buscaram refúgio durante a Segunda Guerra Mundial. A Argentina também se tornou um refúgio para nazistas fugitivos.
A adesão de Milei ao judaísmo foi recebida com reações diversas por parte da comunidade judaica da Argentina.
O rabino Alejandro Avruj, que lidera uma sinagoga conservadora em Buenos Aires, disse que Milei foi uma mudança bem-vinda. Quando terroristas bombardearam a Embaixada de Israel em Buenos Aires em 1992 e o centro comunitário judaico dois anos depois, disse ele, “não havia nenhum presidente que quisesse falar sobre o judaísmo e Moisés”.
Ele disse que a defesa de Israel por Milei após o ataque do Hamas em 7 de outubro o deixou “orgulhoso – não como judeu, mas como argentino”.
Alguns outros judeus argentinos discordam. O chefe do museu de Anne Frank em Buenos Aires temeu publicamente que as críticas de Milei ao Hamas pudessem novamente tornar a Argentina um alvo. O Hamas disse que a Argentina designou o grupo como terrorista para justificar “genocídio e limpeza étnica” na Faixa de Gaza.
Outros observam que Milei se alinhou com um setor particularmente ortodoxo do judaísmo. Em sua primeira viagem ao exterior como presidente eleito no ano passado, ele foi a Nova York para visitar o túmulo do rabino Menachem Mendel Schneerson, um influente líder hassídico conhecido como Rebe.
E alguns acusam Milei de se interessar pelo Judaísmo porque se vê na imagem de Moisés como um libertador dos oprimidos.
“O judaísmo permite a ele ver-se como alguém apoiado pelas ‘forças dos céus’, enviado para salvar a Argentina”, disse Pablo Gorodneff, líder do Apelo Judaico Argentino, um grupo judaico de esquerda.
“Forças dos céus” foi uma espécie de slogan de campanha para Milei. Ele também chamou Moisés de “o maior libertador de toda a humanidade” e uma de suas referências mais importantes.
Na quinta feira, Milei participou de um serviço memorial pelo 30º aniversário do atentado ao centro comunitário, a Asociación Mutual Israelita Argentina, ou AMIA. O governo de Milei está defendendo um projeto de lei que daria luz verde aos julgamentos à revelia dos cidadãos libaneses e iranianos que os tribunais argentinos disseram estarem envolvidos no ataque. Os esforços anteriores para aprovar julgamentos à revelia não conseguiram ser aprovados no Congresso da Argentina, e alguns na Argentina questionaram se esta seria a medida certa.
Amos Linetzky, atual presidente da AMIA, disse que a organização se opôs historicamente à abordagem porque preferia ver os responsáveis punidos, e não apenas condenados à revelia. No entanto, ele saudou os esforços de Milei para buscar justiça.
“Milei demonstrou total disposição e preocupação e desejo de priorizar a questão”, disse ele.
Em fevereiro, Milei visitou o papa Francisco no Vaticano. Os dois argentinos, apesar das tensões anteriores, se abraçaram e passaram uma hora juntos. Mais tarde, o Vaticano chamou a reunião de “cordial”. Milei disse à televisão italiana: “Sou católico, embora seja quase um praticante do judaísmo”.
Milei também trouxe vários conselheiros para se encontrarem com o papa. Entre eles estava seu rabino. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Funcionários que empurram cadeiras de ministros do STF e distribuem cafezinho ganham R$ 6,4 mil
Por Gabriel de Sousa / O ESTADÃO DE SP
Perfilados atrás de onde se sentam os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), 11 assistentes aguardam a entrada dos magistrados durante cada sessão presencial. Além de prestar apoio administrativo, esses funcionários puxam as cadeiras dos juízes e os acomodam enquanto eles se ajustam nas poltronas de cor bege desenhadas pelo arquiteto e designer Jerzy Zalszupin. O salário mensal de cada uma desses auxiliares é de R$ 6,4 mil.
Além de puxar as cadeiras dos ministros do Supremo, os 11 assistentes de plenário são responsáveis pelo atendimento às ordens feitas pelos magistrados durante as sessões colegiadas. São eles que servem café, ajustam as togas vestidas pelos magistrados e carregam documentos jurídicos durante os julgamentos da Corte.
Em dias em que não há sessões no plenário do STF, esses servidores também são encarregados de organizar os livros dos ministros em estantes, arquivar memoriais e providenciar cópias de pareceres e petições.
Assim como os ministros, eles também possuem uma vestimenta regimental. Os 11 assistentes usam terno, gravata e uma capa de cetim preto. Diferente da toga dos magistrados, as peças cobrem até metade das costas. Por isso, eles são conhecidos informalmente dentro da mais alta Corte do País como “capinhas”.
Segundo o STF, cada ministro tem direito a um “capinha”, que realiza diariamente serviços de secretariado. Eles são servidores terceirizados e recebem, mensalmente, R$ 6,4 mil.
Mesmo sendo agentes que passam despercebidos durante as sessões do colegiado, a rotina dos “capinhas” viralizou nas redes sociais no último dia 19 de junho. A cena em questão foi a dos assistentes dos ministros puxando as poltronas para que eles pudessem se sentar antes do julgamento sobre a reforma da Previdência de 2019. Apenas Alexandre de Moraes se acomoda na poltrona sem o auxílio dos terceirizados.
De acordo com Mariana Atoji, gerente de projetos da Transparência Brasil, a atuação dos assistentes de plenário é fundamental para o bom andamento das sessões presenciais, porém, a atribuição de puxar cadeiras antes do início dos julgamentos é desnecessária.
“Faz sentido só em casos muito específicos, como o do ex-ministro Joaquim Barbosa, que tinha um problema de coluna e precisava trocar de cadeira com certa frequência nas sessões. Ou, se muito, em ocasiões solenes como posses e início de ano judiciário. De resto, os ministros são perfeitamente capazes de se alocarem sozinhos”, afirmou Atoji.
Para o economista Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas, a necessidade de auxiliares ajustarem os magistrados nas cadeiras aparenta uma necessidade de demonstrar a existência de um “poder supremo”. “Os ministros são cidadãos comuns, com braços e pernas. É o cúmulo da prepotência e da vaidade. Louvo os ministros que não se utilizam desse hábito esdrúxulo e medieval”, disse.
Escândalo seletivo
Por Notas & Informaçõe / O ESTADÃO DE SP
A defesa dos direitos das minorias, em tese, é universal. Todos, sem exceção, devem respeitar mulheres, negros, homossexuais, indígenas e outros tantos grupos, conforme preconizam as cartilhas de direitos humanos e os manuais de bom comportamento. Os ativistas da chamada esquerda “identitária”, aquela que superou a luta de classes e investe na afirmação política de grupos ultraminoritários, são particularmente dedicados a essa defesa, exercendo o papel de vigilantes do discurso alheio para flagrar o que, em sua opinião, fere a sensibilidade desses grupos.
Ninguém escapa da fúria censória desses zelotes. Apenas um cidadão brasileiro está livre do “cancelamento”: é o presidente Lula da Silva.
Diga a barbaridade que disser – e como ele diz! –, Lula não será repreendido pelos esquerdistas. Parece ter salvo-conduto para dar declarações machistas, homofóbicas e capacitistas à vontade. A última do demiurgo petista foi num evento no Palácio do Planalto, em que ele, a propósito de uma pesquisa segundo a qual a agressão doméstica a mulheres aumenta em dias de jogos de futebol, declarou que, “se o cara (que agride mulher) é corintiano, tudo bem”.
Mal se ouviram críticas de petistas a essa blague lamentável; as escassas reprimendas vieram na forma de sussurro obsequioso. Afinal, Lula é uma ideia.
As grosserias de Lula são tratadas por seus devotos como “gafes” ou “deslizes”. Desrespeitou a própria mulher, Janja, ao dizer que ela poderia atestar o vigor sexual que comprovaria sua disposição para seguir na política apesar da idade. Afirmou, ao anunciar medidas de socorro ao Rio Grande do Sul, que uma máquina de lavar roupa é “muito importante” para as mulheres. A uma beneficiária do Minha Casa Minha Vida que aos 27 anos tem cinco filhos, Lula perguntou: “Quando é que vai fechar a porteira?”. Numa cerimônia dedicada a pessoas com deficiência, o presidente disse que Janja o instruiu a escolher bem as palavras porque “essa gente tem a sensibilidade aguçada”.
Noutra ocasião, declarou que “afrodescendente gosta de um batuque de um tambor”. E tudo isso apenas neste ano.
Nada disso é trivial ou desimportante. Lula é presidente da República e, como tal, representando o Estado brasileiro, deve servir de exemplo de compostura e respeito. Ainda estão frescas na memória as inúmeras declarações ultrajantes de Jair Bolsonaro, na condição de presidente, a respeito de diversas minorias, e isso mereceu justa condenação. Recorde-se ainda a enorme proporção que teve o movimento “Ele Não”, liderado por mulheres, para protestar contra a candidatura presidencial de Bolsonaro, em 2018, em razão de suas seguidas ofensas.
Não se trata, aqui, de avaliar o grau de desfaçatez de um e de outro, como se Lula e Bolsonaro estivessem a disputar um certame de cafajestagem. Ambos merecem a mesma admoestação por parte de todos os que prezam a civilidade, mas sobretudo daqueles que fazem da defesa das minorias a causa de suas vidas. Ou então a causa não vale nada.
Quem aconselha Lula? Saiba com quem, além de Janja, o presidente discute os rumos do País
Por Vera Rosa / O ESTADÃO DE SP
A primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, é uma das pessoas que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mais ouve sobre todos os temas. A socióloga gosta de discutir com Lula assuntos que vão da política à economia, como ele mesmo contou. A confissão de que tudo passa pelo crivo de Janja despertou uma curiosidade no meio político: além dela, com quem o presidente se aconselha na solidão do poder?
O ministro da Casa Civil, Rui Costa, se aproximou muito de Lula nos últimos tempos e ampliou sua influência sobre o governo. Considerado mal-educado e até rude por vários colegas, Costa tem vencido quedas de braço importantes e tenta fazer um contraponto ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Os dois são pré-candidatos à cadeira do presidente, em 2030, e reeditam a velha disputa entre a Fazenda e a Casa Civil, como a que marcou o primeiro mandato do petista, com o duelo protagonizado por Antônio Palocci e José Dirceu. Como mostrou o Estadão, no entanto, o duelo da vez tem ingredientes diferentes e Costa não tem apoio do PT como tinha Dirceu.
Lula gosta de estimular conflitos na equipe para arbitrar os embates e dar a última palavra, que leva em conta a opinião de Janja até mesmo para campanhas publicitárias do governo. A primeira-dama tem prestigiado Haddad, a quem chama de “meu amigo”, e, recentemente, gravou com ele um vídeo para comemorar a regulamentação da reforma tributária pela Câmara.
“A Janja é o meu farol, aquele farol que guia”, afirmou o presidente, em janeiro. “Quando tem coisa errada, ela me chama a atenção. Às vezes, ela fala uma coisa para mim que a minha assessoria não fala. E isso, obviamente, me ajuda.”
Na semana passada, depois de uma série de gafes cometidas por Lula em pronunciamentos, a primeira-dama pediu que o marido tomasse cuidado com as palavras e lesse o discurso no encerramento da 5.ª Conferência dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Janja conseguiu, ao menos naquele dia, o que nenhum assessor consegue: desde o primeiro mandato de Lula, quem produz os seus discursos reclama que ele deixa os escritos de lado para falar de improviso. Mesmo assim, sempre quer ter os papéis à mão. Para despachar com o petista no gabinete, ministros devem levar todas as informações impressas.
Embora muitas vezes pareça jogar bola nas costas de Haddad, como quando disse que precisava ser convencido da necessidade do corte de gastos – anunciado depois em R$ 15 bilhões –, o presidente tem grande apreço pelo ministro. Em 2022, foi aquele ex-prefeito de São Paulo quem levou a ele a inimaginável ideia de convidar o antigo adversário Geraldo Alckmin para vice da chapa. Deu certo.
‘Quando vocês batem no Haddad, é em mim que estão batendo’
A portas fechadas, Lula pediu a dirigentes do PT que parassem de atacar o chefe da equipe econômica e concentrassem as críticas no presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
“Quando vocês batem na política econômica do Haddad é em mim que vocês estão batendo porque essa política é minha”, disse o presidente, de acordo com relatos de dois integrantes da Executiva petista. “Ele não faz nada sem me consultar.”
Na prática, ao fustigar as altas taxas de juros do País, Lula adota um discurso que “fala” com a classe média, “ativo” importante neste ano de eleições municipais. Quando o assunto é eleição em São Paulo, aliás, os nomes mais consultados por Lula estão fora do governo: trata-se de Rui Falcão, integrante da coordenação política da campanha de Guilherme Boulos (PSOL) à sucessão paulistana, lançada neste sábado, 20, e do prefeito de Araraquara, Edinho Silva, cotado para assumir a presidência do PT, em 2025.
A última resolução política do Diretório Nacional do PT, aprovada na quinta-feira, 18, e antecipada pelo Estadão, deu uma “trégua” a Haddad, apesar das críticas internas ao ministro. O documento não chamou mais o arcabouço fiscal de “austericídio” e focou a artilharia em Campos Neto, sustentando que o presidente do BC usa a autarquia como “um bunker para sabotar a economia do país e uma plataforma de articulação político-partidária” bolsonarista.
“Fizemos um desagravo a Haddad, que está sob ataque”, observou o deputado Jilmar Tatto, secretário de Comunicação do PT. “Esses memes contra ele são choro de bolsonarista e já avisamos que, se o governo precisar de dinheiro, vamos taxar os super-ricos.” Campos Neto tem dito que as críticas à condução da política monetária e à autonomia do Banco Central por parte de Lula e de seu partido atrapalham o controle da inflação. Mas não é essa a avaliação do Palácio do Planalto.
No fim de junho, por exemplo, Haddad foi anfitrião de um jantar, em São Paulo, que reuniu Lula e alguns economistas, como o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e o ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) Luciano Coutinho, com quem até hoje o chefe do Executivo se aconselha. Todos pediram a ele cautela nos ataques ao Banco Central para não piorar a crise.
Lula ouviu e, segundo um dos convidados, mostrou extrema irritação com o mercado, que, no seu diagnóstico, age contra o governo. Depois, acabou terceirizando para o PT o bombardeio mais pesado contra Campos Neto.
Quem conhece bem o presidente, no entanto, garante que o seu estilo é o de manter o controle do jogo até o fim. Com isso, muitas vezes ele dá sinais trocados para testar auxiliares: conta determinado fato de um jeito para um e fala sobre o mesmo tema para outro, mas de forma diferente. Assim, quando o assunto sai na imprensa, dependendo da versão publicada, sabe quem foi o “vazador”.
Do início do ano para cá, Lula tem feito acenos frequentes na direção de Rui Costa, desafeto de Haddad. Quando a empresária Cristiana Prestes Taddeo afirmou, em acordo de delação premiada, que Costa estava envolvido em fraude na compra de respiradores para enfrentar a Covid, à época em que era governador da Bahia, Lula não só ignorou a denúncia como o elogiou.
Em abril, ao inaugurar uma estação de abastecimento de água em Pernambuco, o presidente apresentou o auxiliar como “primeiro-ministro” do governo. Antes, em março, já havia dito que Rui Costa era sua “Dilma de calças”, numa referência à ex-presidente Dilma Rousseff, que foi titular da Casa Civil.
Nos bastidores, Costa atribui o vazamento das denúncias contra ele, consideradas “absurdas”, ao time de Haddad. Na Fazenda, porém, o chefe da Casa Civil é visto como um “brucutu”.
O presidente deixa o “fogo amigo” atingir altas temperaturas e demora para tomar decisões. No início deste mês, para ira do grupo de Haddad, Lula disse que o trabalho de Costa o fazia “dormir tranquilo” toda noite.
“Nenhum ministro conta uma mentira para mim que o Rui e a Miriam (Belchior, secretária-executiva da Casa Civil) não desmintam. E é por isso que muitas vezes vocês ouvem que há divergência entre o Rui e os outros ministros”, afirmou ele durante ato em Feira de Santana (BA).
Em maio, Haddad perdeu para o titular da Casa Civil o cabo de guerra na Petrobras. Naquele mês, Lula anunciou a demissão do presidente da estatal, Jean Paul Prates, que era defendido pelo ministro da Fazenda. O último round da briga, que se estendeu por quase um ano e meio, foi vencido por Costa e pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. Os dois queriam a cabeça de Prates, sob a alegação de que ele não fazia o que o governo planejava.
Mesmo sem ter traquejo político, Rui Costa foi escolhido por Lula para ser o interlocutor do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que chamou o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, de “incompetente”.
Costa também se reconciliou com o deputado Elmar Nascimento (BA), líder do União Brasil, nome vetado por ele para integrar o ministério, no início do governo. Elmar é o favorito de Lira para sua sucessão ao comando da Câmara, em fevereiro de 2025, e agora tem o apoio do ministro da Casa Civil.
Responsável pela articulação politica com o Congresso, Padilha não fala sobre o assunto, sob o argumento de que o Planalto não vai se intrometer nessa disputa. Sabe-se, porém, que aliados de Padilha veem Elmar como “longa manus” de Lira e preferem Antônio Brito (PSD-BA) à frente da Câmara.
O seleto grupo dos ministros mais ouvidos por Lula inclui, ainda, amigos desde que ele era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, como Luiz Marinho (Trabalho) e Ricardo Lewandowski (Justiça). Foi Marinho quem convenceu Lula, com muito custo, a ir à casa do ex-prefeito Paulo Maluf, em 2012, e se deixar fotografar no jardim, apertando a mão do rival. A exigência foi feita por Maluf para apoiar Haddad à Prefeitura.
Agora, foi Lewandowski quem aconselhou Lula a não dividir o Ministério da Justiça, após a saída de Flávio Dino, que assumiu uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). Na campanha de 2022, o então candidato do PT propôs que a segurança pública fosse uma pasta separada. “Isso não é tão simples como tirar o paletó”, disse-lhe Lewandowski, o ex-presidente do STF que comanda o Ministério da Justiça desde 1.º de fevereiro.
Lula avalia, atualmente, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enviada pelo Ministério da Justiça para dar mais poder ao governo federal na área de segurança pública, hoje a cargo dos Estados, e no combate ao crime organizado. Janja, por sinal, aprova a atuação de Lewandowski e sempre o elogia.
Na temporada de disputas municipais, a segurança aparece em todas as pesquisas como uma das principais preocupações dos eleitores, à frente até mesmo do desemprego. É mais um desafio para o PT, que sempre teve dificuldade em acertar o tom desse discurso.