Consciência democrática - Catarina Rochamonte
Recentemente, um grupo de possíveis candidatos a presidente da República divulgou documento intitulado Manifesto pela Consciência Democrática, no qual se constata que —três décadas após a reunião de forças políticas em torno do movimento das Diretas-Já e da eleição de Tancredo Neves— a democracia brasileira está sob ameaça.
O diagnóstico é correto, mas merece o adendo de que a chegada ao Planalto de um populista de direita resultou da rejeição desse ciclo político que se iniciou nos anos oitenta. Não se pode confundir a democracia que vale a pena defender com o mecanismo nefasto mantido por políticos que a defendem apenas retoricamente.
No quadro de crises permanentes que caracteriza a Nova República, marcada por práticas patrimonialistas e estruturada em um presidencialismo problemático que convive com um sistema loteado por partidos desacreditados que se multiplicam ao sabor de uma legislação permissiva que os engorda com fundos bilionários em relação aos quais mal prestam contas, a Operação Lava Jato deixou à mostra a real engrenagem da nossa perversa política, de modo geral, e do Partido dos Trabalhadores (PT), em particular: a captura do Estado em esquema sistêmico e gigantesco de corrupção por meio de conúbio entre grandes empreiteiras, burocratas estatais e líderes políticos autointitulados democratas.
Bolsonaro ser um desastre pandêmico não torna Lula menos corrupto. Importa repisar isso quando começamos esse estranho abril, no dia da mentira, assistindo à amistosa entrevista concedida por Lula ao autor do “País dos Petralhas” e, nessa mesma Folha, lendo Mario Sergio Conti clamar pelo messianismo de um Lula ressurreto. Até Luiz Felipe Pondé, avesso à corrupção lulopetista, chegou a ponderar que, em caso de segundo turno entre Alien e o Predador, o menos traumático seria o Predador Lula, dotado de uma forma mais humana. Não há, porém, carma coletivo que nos condene novamente a tão trágico dilema eleitoral.
FOLHA DE SP
MUNDO AINDA TEM PAÍSES SEM UMA ÚNICA DOSE DE VACINA
David Ehl / ÉPOCA
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 600 milhões de doses de vacina contra a covid-19 já foram aplicadas em todo o mundo. Mas a discrepância entre países é alta: enquanto, por exemplo, quase 100% da população de Gibraltar já foi vacinada, países como a Nicarágua ainda aguardam as primeiras doses.
Uma situação descrita pelo secretário-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, como um absurdo: recentemente, ele apelou para que a produção global fosse aumentada, e as vacinas, distribuídas de forma justa para enfrentar a fase aguda da pandemia.
No mapa global de vacinação, ainda há uma faixa inteira de países africanos aguardando a chegada de doses - da Líbia a Madagascar. Esses países não figuram sequer nas estatísticas de vacinação da OMS. O quadro é semelhante na Ásia Central, assim como em países como Coreia do Norte, Cuba e Bósnia-Herzegóvina. Isso não significa, no entanto, que estes países não tenham recebido absolutamente nenhuma vacina até o momento. A Bósnia deverá receber sua primeira grande entrega direta no final de maio, mas já teve acesso a algumas doses doadas pela vizinha Sérvia.
PAÍSES AFRICANOS SEM VACINA
"Com relação à África, temos a boa notícia de que 44 países já receberam o fornecimento de vacinas. Mas, ao mesmo tempo, isso também significa que dez países não receberam até agora nenhuma vacina", diz Clemens Schwanhold, da ONG de combate à pobreza ONE.
Madagascar, Burundi e Eritreia estão entre em que os governos acreditavam que o vírus poderia ser combatido por outros meios. A Tanzânia, entretanto, passou por uma mudança de opinião após a morte repentina do presidente John Magufuli, um negacionista da ciência, após rumores não confirmados de uma infecção pela covid.
Schwanhold acredita que o governo liderado pelo sucessor de Magufuli, o presidente Samia Suluhu Hassan, provavelmente encomendará vacinas nas próximas semanas. "Ainda vai levar alguns meses, talvez algumas semanas, até que algo chegue", comenta.
MAIORIA DAS DOSES NAS MÃOS DE UE E EUA
"Nenhum de nós é seguro até que todos estejamos seguros" é um mantra sobre a covid-19 - e é a ideia por trás do programa Covax de proporcionar acesso global à vacinação. Os Estados-membros da OMS foram divididos em dois grupos. Um é formado por 98 países mais ricos, que estão financiando o fornecimento subsidiado ou gratuito de vacinas para os 92 países mais pobres.
"O problema é que não há muito mais doses de vacinas disponíveis porque a UE e os Estados Unidos já asseguraram a grande maioria delas", diz Sonja Weinreich, responsável pelas questões de saúde na organização Brot für die Welt (pão para o mundo), uma agência de assistência administrada pelas igrejas protestantes na Alemanha. "Portanto, este mecanismo não vem sendo capaz de se impor adequadamente porque essa solidariedade simplesmente não existe".
Uma grande coalizão de organizações de ajuda e outros grupos tem exigido a renúncia às patentes de vacinas da covid para ajudar a enfrentar este problema. "Isso permitiria que os países mais pobres - ou todas as empresas em todo o mundo - que são capazes de produzir vacinas, fizessem exatamente isso. Isso simplesmente teria que caminhar de mãos dadas com a transferência de tecnologia relevante", diz Weinreich.
Brot für die Welt é uma das organizações por trás desta demanda. Um argumento, diz ela, é que as vacinas foram parcialmente desenvolvidas e produzidas com fundos públicos: "Não é aceitável que algo seja financiado publicamente e, em seguida, os lucros sejam privatizados", comenta.
A indústria farmacêutica, por outro lado, argumenta que a patente não é o ponto. Nathalie Moll, diretora-geral do grupo de lobby da indústria, a Federação Europeia das Associações e Indústrias Farmacêuticas (EFPIA), disse à DW no final de março: "Se uma empresa entra em contato com outra para expandir a produção de vacinas, muito know-how técnico tem que ser transferido, para que as vacinas possam ser produzidas com segurança e eficiência nas quantidades necessárias. Trata-se de muito mais do que propriedade intelectual". Segundo ela, 250 licenças já haviam sido distribuídas em todo o mundo para expandir a capacidade de produção.
COVAX, UMA INICIATIVA REALISTA?
A Índia - vital para o fornecimento mundial de vacinas - recentemente restringiu a exportação. O governo quer manter os suprimentos no país, que está atualmente registrando níveis recordes de infecção. Os EUA também não exportaram praticamente nenhuma vacina, enquanto a União Europeia tem permitido o envio de suprimentos para países mais pobres.
Mas tanto Sonja Weinreich quanto Clemens Schwanhold estão otimistas quanto ao fato de que o principal objetivo do programa Covax pode ser alcançado. O objetivo é vacinar pelo menos 20% da população de todos os 92 países beneficiários até o final de 2021, incluindo grupos de alto risco e pessoal médico.
"Acho que isso é viável", diz Weinreich. "Na Europa, a implementação da vacinação está começando a ganhar velocidade, e muito mais vacinas devem estar disponíveis", acrescenta ela.
A UE encomendou mais de quatro vacinas per capita de vários fabricantes, embora apenas duas, no máximo, sejam necessárias. O Canadá já encomendou mais de oito. Clemens Schwanhold explica que as questões de responsabilidade ainda precisam ser resolvidas antes que tal excesso de vacinas possa ser repassado aos países em necessidade.
Os fabricantes repassaram sua responsabilidade à maioria dos Estados que compram seus produtos devido ao tempo extremamente curto de entrega. "E é compreensível que a UE não queira ser responsabilizada por nenhuma reclamação em potencial se repassar doses de vacina", explica Schwanhold.
Ele diz que o sucesso da promessa da Covax depende de "todos os participantes se unirem quando se trata de financiamento e do fornecimento de matérias-primas". O bom, argumenta, é que "a Covax não tem que fazer tudo isso sozinha". A União Africana também encomendou significativamente mais de 500 milhões de doses de vacinas, diz ele: "Estou relativamente confiante de que teremos vacinado muito mais de 20% até o final deste ano".
CPI da Pandemia: senador a favor da ampliação diz que apuração sobre estados e municípios é questão de 'coerência'
Bruno Góes / o globo
BRASÍLIA - O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que apresentou um requerimento pedindo que a CPI da Pandemia estenda a investigação também para estados e municípios, defende que a ampliação é uma questão de "coerência".
Nesta terça-feira, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), vai ler o requerimento de instalação da comissão. O possível aumento no escopo dos trabalhos ainda será tema de análise pelos senadores.
Relembre:CPI da Pandemia não é a primeira determinada pelo STF; confira outros casos
Como foi a reação ao pedido de ampliação do escopo da CPI da Pandemia?
Levando em consideração a manifestação de vários colegas, imagino que não haja qualquer dificuldade em fazer a ampliação do escopo. Muita gente gritou alegando que não concordava com uma CPI que iria apurar apenas a esfera federal. Eu acho, por uma questão de coerência, que é preciso ter uma oportunidade de apurar fatos conexos com o inicial, que tenham repercussões estaduais e municipais, uma vez que as responsabilidades são compartilhadas no Sistema Único de Saúde.
Essa ampliação pode suscitar o questionamento de que não há mais fato determinado? Isso pode inviabilizar a CPI?
Não faz o menor sentido, porque a leitura e a instalação da CPI ocorrerão com base do requerimento original. Tem muita gente que trabalha hoje num nível de sectarismo tão grande, em que só vale qualquer iniciativa se for contra o adversário do momento. Eu não trabalho assim. Em investigações, você não trabalha focado numa pessoa, num alvo político. Investigações têm que ser feitas sobre fatos. Eu não tenho dúvida de que vai haver potencial responsabilização na esfera federal. Os fatos apontam neste sentido.
Há críticos, como o senador Randolfe Rodrigues, que dizem que essa ampliação servirá para que não se investigue nada. Como vê isso?
Digamos que eu tenha uma experiência a mais do que o Randolfe no tocante a investigações. E a questão da ampliação foi debatida no momento da coleta de assinaturas, em plenário, meses atrás. Não tem problema, a gente faz a instalação e depois discute a ampliação de escopo, desde que sejam fatos conexos, porque é muito óbvia a conexão das esferas. Eu entendo a posição do Randolfe, respeito. Mas acho que temos que respeitar a sociedade, que quer a garantia de que a apuração seja isenta de cores ideológicas.
Como se dará o aval para esse pedido? Já conversou com o presidente Rodrigo Pacheco?
Ele dá o encaminhamento. O aval não é individual. Esse encaminhamento deve ser feito, e se já estiver instalada a comissão, vai para o presidente da comissão. O presidente da comissão, então, faz a leitura e discute com o colegiado. Ou, se o presidente Pacheco quiser colocar em plenário, também não há problema.
Há senadores que não acham adequado o funcionamento virtual, em modelo híbrido, da CPI. Como vê esse obstáculo?
Em alguns casos, me parece desconhecimento. Em outros, uma tentativa de juntar desculpas. A gente tem a possibilidade de fazer por sistema remoto, híbrido. A Justiça vem funcionando dessa forma, fazendo oitivas, interrogatórios, audiências. Nós estamos votando até alterações à Constituições por sistema remoto. Mas, se alguém, por excesso de preciosismo, ou ilusão de que há dificuldades, entender que tem que ser presencial, o Senado tem espaço mais do que suficiente para acomodar os onze membros. A gente não está falando de mil pessoas. Estamos falando de onze membros da CPI. Eventualmente, seus suplentes. O interrogado, o seu advogado, com todo distanciamento e medidas sanitárias. Então, a turma tem que melhorar a qualidade das desculpas.
Receita Federal adia para 31 de maio prazo para entrega de declaração de Imposto de Renda
A declaração de Imposto de Renda 2021 poderá ser entregue até o dia 31 de maio. A decisão da Secretaria da Receita Federal de estender o prazo, que antes era 30 de abril, foi publicada em "Diário Oficial da União" nesta segunda-feira (12).
Na semana passada, o Senado havia aprovado um projeto de lei com o mesmo objetivo, mas, como o texto sofreu alterações, teria que voltar para a Câmara.
A prorrogação do Imposto de Renda já aconteceu no ano passado, mas por decisão da própria Receita Federal e pelo prazo de 60 dias.
A decisão, segundo a Receita, foi promovida como forma de suavizar as dificuldades impostas pela pandemia de Covid-19.
"A medida visa proteger a sociedade, evitando que sejam formadas aglomerações nas unidades de atendimento e demais estabelecimentos procurados pelos cidadãos para obter documentos ou ajuda profissional", informou a Receita em nota.
Também foram prorrogados para 31 de maio os prazos para entrega da Declaração Final de Espólio e da Declaração de Saída Definitiva do País, assim como, para o vencimento do pagamento do imposto relativo às declarações.
Bolsonarismo, conservadorismo e liberalismo
12 de abril de 2021 | 03h00
Jair Bolsonaro, em sua eleição, conseguiu encarnar a força do antilulopetismo, congregando em torno de si três correntes de ideias que, naquele então, apareceram juntas na luta contra um inimigo comum: a extrema direita, os conservadores e os liberais. Compareceram amalgamados, unidos, mesmo indistintos, prometendo uma regeneração nacional, contra a corrupção e os políticos que a ela tinham aderido.
A concepção propriamente de extrema direita, embora já presente, foi progressivamente ganhando forma, exercendo forte influência graças à família presidencial e à captura de ministérios importantes. Os conservadores, bem delineados, surgiram na defesa de valores morais, tendo como representantes principais os evangélicos. Os liberais apresentaram-se, principalmente, sob a pauta do liberalismo econômico e menos sob a forma do liberalismo político.
No entanto, nestes mais de dois anos transcorridos, as diferenciações e divergências internas foram se tornando mais nítidas, embora algumas ainda não se tenham configurado completamente. Por exemplo, o liberalismo econômico já foi praticamente deixado de lado, apesar de o ministro da Economia continuar no poder como figurante de um governo de extrema direita, afeito a intervenções em empresas públicas, abandono das reformas, irresponsabilidade fiscal e ausência de privatizações. Sobra apenas um fiapo de discurso e práticas liberais.
No que diz respeito ao conservadorismo, ele continua ainda aderido à extrema direita, apesar de fissuras se fazerem cada vez mais presentes. Os evangélicos prezam a solidariedade, a compaixão, os valores morais, são reconhecidos como pessoas que reverenciam as virtudes e o trabalho, logo, não podem compactuar com o tratamento que o bolsonarismo dispensa à morte, à doença, o seu desprezo pela vida. Quando a morte e a doença batem à porta, pelo descaso e pela inépcia governamentais, um limite está sendo ultrapassado. Não há nenhuma gracinha na “gripezinha” e nos efeitos da vacina criando caudas de jacaré. O que há, sim, é um completo menosprezo por valores religiosos e morais.
Os traços principais da extrema direita no poder são: 1) A concepção da política baseada na distinção entre amigos e inimigos. Todo aquele que não segue as ordens do clã presidencial é considerado inimigo efetivo ou potencial, seja ele real ou imaginário. Afirma-se, assim, o ódio ao próximo. 2) A sociedade e o mundo em geral são vistos pelo prisma de uma teoria conspiratória, com inimigos invisíveis urdindo um grande complô internacional, sendo o atual governo o bastião de “valores”, evidentemente os seus. 3) O presidente considera-se investido de uma missão de caráter absoluto, como se tudo por ele proferido devesse ser simplesmente acatado, no estilo ele manda e os outros obedecem. 4) Deduz-se daí um culto à personalidade, particularmente presente em sua apresentação de si como se fosse um mito, uma espécie de messias, numa deturpação dos valores religiosos. 5) A destruição e a morte tornam-se traços principais dessa arte de (des)governar, com as instituições representativas, liberais, sendo atacadas e dando livre circulação ao coronavírus, com atrasos, incompetência e tergiversações sobre vacinas, apregoando o contágio por aglomerações e ausência do uso de máscaras. A morte pode circular livremente!
Ora, o conservadorismo no Brasil, fortemente ancorado em valores morais de cunho religioso, está baseado no amor ao próximo, e não em sua exclusão ou potencial eliminação. Sua expressão política na representação parlamentar se faz pelo diálogo e pela negociação, o outro não podendo ser tomado como inimigo. Mais precisamente, não haveria como aceitar o culto à personalidade, muito menos ordens a serem simplesmente acatadas, pois, nesse caso, o poder laico estaria adotando uma forma religiosa. E conforme assinalado, a vida é algo sagrado, não pode ser tratada com incúria e desprezo. Torna-se nítido que o conservadorismo começa a distanciar-se do bolsonarismo, embora sua imagem continue atrelada a ele.
Quanto ao liberalismo, se o seu componente econômico já está sendo relegado a uma posição secundária, se não irrelevante, outro valor seu começa a ser contaminado, a saber, a sua feição propriamente política. Vocações autoritárias do bolsonarismo são inadmissíveis para um liberal. A política enquanto distinção amigo/inimigo é o contraponto de tudo o que essa concepção defendeu no transcurso de sua história. O culto à personalidade lembra tanto o stalinismo quanto o nazismo e o fascismo, com a glorificação e a santificação do líder máximo. A distinção dos Poderes, tão cara, está sendo cotidianamente testada, como se as instituições representativas fosse um obstáculo ao exercício do poder que devesse ser eliminado.
Eis alguns aspectos que serão centrais nas próximas eleições e para o destino do País, cujas distinções aparecerão mais claramente numa abertura para o futuro – isso se algumas dessas correntes não optarem por um jogo de esconde-esconde, do qual o bolsonarismo sairá vencedor.
Mais vale prevenir do que remediar.
PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS. E-MAIL: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
Lockdown é o fetiche da esquerda, assim como a cloroquina é o da direita
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP. / FOLHA DE SP
Estamos acostumados a pensar em negacionistas grosseiros tais quais os zumbis bolsonaristas. Gente que defende cloroquina. Mas também existem negacionistas chiques, como bolsas Prada.
Esses negacionistas com credenciais citam diplomas e termos técnicos e o senso comum acredita neles. Cada dia se especula mais diante da ignorância crassa acerca da peste. Diante das câmeras, se diz qualquer coisa pra manter a bola quicando. Mas a verdade é que não sabemos muito mais sobre ela do que se sabia sobre a gripe espanhola em termos epidemiológicos ou sanitários. Esse negacionista nega a sua ignorância, no entanto.
Aliás, o mundo era mais sexy antigamente. Pegar a gripe espanhola tinha um quê de sensual. Imagine se disséssemos “peguei a gripe chinesa” em vez de “peguei a Covid-19”.
Hoje, contudo, quero refletir sobre o negacionismo com marca de luxo. Os negacionistas chiques não são tão óbvios quanto os zumbis. Darei dois exemplos. Seguramente, se você lê jornais, tem um negacionista de luxo ao lado, ou ainda no seu próprio espelho.
Ambos são fenômenos que circulam entre pessoas de classe média pra cima, com razoáveis condições financeiras, um repertório de viagens ao exterior invejável, acesso a informação de qualidade, digamos, e até hábito de leitura acima da média miserável do país. Assim como existem zumbis bolsonaristas que têm apartamento em Miami, existem negacionistas chiques que mantêm apartamento em Lisboa.
O primeiro exemplo são os negacionistas alternativos. Gente que toma cúrcuma pra fortalecer o organismo contra o coronavírus. Gente que acha que os efeitos da vacina da Pfizer podem ser comparados a casos como a da talidomida, que levou uma geração dos anos 1950 e 1960 a ter membros encurtados e órgãos com má-formação ao ser receitado como um remédio para enjoo a mulheres grávidas.
Antivacina em geral, mas com passaporte francês. Aliás, a França, país chique por excelência, apresenta um número significativo de indivíduos contra vacinas por causa da disseminação da cultura de medicina alternativa em meio aos croissants.
Membros dessa tribo podem jantar com você —depois da peste— e você nem perceberá. Aliás, eles existem desde antes da peste, no que demonstram ser mais chiques do que os novos negacionistas zumbis bolsonaristas.
Um negacionista de classe lê nas suas bolhas das redes “artigos que provam” que vacinas são ruins para a saúde e acredita numa coisa vaga chamada natureza.
Para eles, a vacina antipólio, infelizmente uma exigência das escolas, não é a responsável pela queda de pólio entre as crianças, mas sim hábitos alimentares “mais naturais”.
Esses idiotas com branding não lembram que câncer é tão natural quanto cúrcuma. Imagino o drama de quem é contra testes em animais pra tomar as vacinas contra Covid. Coitadinhos, não?
O segundo caso é mais delicado e profundo. Esse tipo de negacionista não tem a mínima ideia de que ele é um negacionista, no caso, das ciências sociais. Dessa tribo podem fazer parte médicos, cientistas, jornalistas, e até mesmo a Mulher Maravilha.
Pestes são entidade sociológicas, além de médicas. Mas muitos médicos, talvez a maior parte, mesmo se especialistas na sua área, bombaram em ciências sociais. E epidemiologia e saúde pública são áreas da medicina com uma face voltada para as ciências biológicas e outra para as sociais.
Quer saber como você identifica um deles? Muito fácil: basta ver alguém berrando por um lockdown radical no Brasil, e você estará diante de um negacionista com credenciais múltiplas. Suspeito mesmo que a palavra lockdown, para muitos, dispare uma sensação de orgasmo. O lockdown é o fetiche da esquerda, assim como a cloroquina é o da direita.
O lockdown radical é impossível no Brasil por razões sociológicas, econômicas, políticas e históricas. O Estado não tem braços pra impor algo assim. Nem dinheiro pra pagar a conta. Um brasileiro que morre de fome não pode pagar multas em euros. O negacionista chique aqui, mesmo com títulos científicos, legisla do seu laptop para um país que não existe.
Isso não dá razão a Bolsonaro, apenas impõe limites sociais às políticas de contenção epidemiológica. É uma tragédia, mas nem por isso é menos científica do ponto de vista das ciências sociais.
E os jornalistas, já desgastados com essa efeméride de uma peste que não passa, berram: “queremos lockdown!”.