Profissionais do IJF trabalham com improviso, atraso salarial e adoecimento: 'desgastado e fraco'
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Em meio à rotina caótica da unidade, especializada no tratamento de traumas de alta complexidade, palavras como “angústia” e “impotência” marcam os depoimentos de quem está na linha de frente, funcionários de diferentes áreas do IJF ouvidos pela reportagem. Por questões de segurança, todos os nomes aqui são fictícios.
Maria*, técnica de enfermagem servidora do hospital há mais de uma década, por exemplo, relata que nunca imaginou passar por um momento como o atual – embora reconheça que “esse colapso já havia sido anunciado pelos servidores há muito tempo, e reflete negligência histórica”.
Denúncias recebidas pelo Ministério Público do Ceará (MPCE) na última semana, reportadas pelo Diário do Nordeste, dão conta de que 279 de 375 medicamentos estariam com estoque zerado no Instituto.
Além disso, relatos de pacientes e acompanhantes descrevem a carência de itens essenciais, como gaze, fraldas e lençóis; bem como o cancelamento de cirurgias, a falta de estrutura para acompanhantes – que precisam dormir no chão, em papelões – e até a demora na entrega de refeições.
Diante crise, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) marcou uma audiência inicial de conciliação para a próxima terça-feira (26), às 10h, no Fórum Clóvis Beviláqua, na Capital. A ideia é promover o "diálogo institucional" entre os representantes do Ministério Público e da Procuradoria-Geral do Município de Fortaleza.
A marcação da audiência vem em resposta à Ação Civil Pública (ACP) ingressada pelo MPCE, em 7 de novembro, a partir da 137ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, após os problemas de abastecimento na unidade persistirem desde o início do ano e se intensificarem nos últimos meses.
‘Adoecimento generalizado’
Maria* aponta ainda que a rotina hospitalar é prejudicada pela quantidade insuficiente de profissionais. A técnica estima, por meio de um dimensionamento indicado pelo próprio departamento de Enfermaria da unidade, que o número ideal seria de 782 enfermeiros e 1.698 técnicos.
No entanto, a escala normal – sem contar com a suplementação de horas extras, por exemplo – indica que o hospital tem 493 enfermeiros e 1.112 técnicos, quantidades respectivamente 37% e 7% menores do que as ideais.
“Somos submetidos a cargas horárias excessivas, baixos salários e sobrecarga de serviço devido à escassez de recursos humanos. Tudo isso tem gerado um adoecimento físico e mental generalizado entre os profissionais”, lamenta a servidora.
José*, também servidor da instituição, reforça o sentimento de impotência diante do dever de cuidar dos pacientes. “Você se sente incapaz quando chega em um ambiente que não te dá condições mínimas de trabalho. Me sinto desgastado e fraco”, confessa o profissional.
“Isso impacta diretamente na minha saúde mental, pois muitas vezes você está vendo o paciente ter uma piora clínica por conta de você não ter a medicação para administrar. Daí você pensa: e se fosse eu ou uma pessoa minha?”, pondera.
Os improvisos que os trabalhadores precisam fazer para dar conta da assistência são, em alguns cenários, insuficientes, como relata Ana*, outra servidora ouvida pela reportagem. “Fico muito triste de ver os pacientes idosos chegando do centro cirúrgico já com dor, devido à falta de morfina. Meu coração fica destruído”, queixa-se a técnica de enfermagem.
“A enfermagem zela pelo paciente, mas como podemos dar o nosso melhor com a falta de tudo?”
Julia* compartilha do sentimento de impotência. No último plantão, uma paciente dela passou mal com crise de vômitos, mas não havia medicação para prestar o devido socorro. “Foi muito angustiante e revoltante ver isso. Tive uma crise de choro. Quando acontecer de um paciente ter uma ocorrência grave, precisar de uma medicação, não ter e ele vir a óbito, não quero estar nesse plantão”, sentencia.
No cenário de faltas e de equipes desfalcadas, a trabalhadora afirma que, para garantir a própria saúde, faz tudo “dentro do tempo que o psicológico permite”. “Não faço mais nada atropelado como eu fazia antes, que era nas carreiras para dar tempo cumprir todos os protocolos. Hoje, vamos fazer o que é de competência de cada um, não de cada 10.”
Representando profissionais de nível médio e técnico que atuam na área, como os de enfermagem, o Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Ceará (Sindsaúde/CE) acompanha o cenário de insuficiências.
À reportagem, na semana passada, a diretora da entidade, Marta Brandão, contou que as maiores queixas envolvem o subdimensionamento da equipe de saúde, o que gera uma maior sobrecarga de trabalho e motiva altos índices de afastamento.
‘Efeito dominó’
Dois médicos ouvidos pelo Diário do Nordeste reforçam que o cenário tem gerado adoecimento mental e conflitos internos diante da impotência para garantir o direito da população à saúde. Jorge*, ortopedista e servidor que atua com cirurgias, relata que a falta de materiais gera um efeito dominó grave.
“A falta de remédios e insumos é uma realidade, e isso afeta principalmente os procedimentos. Eu preciso de um tipo de material pra fazer a cirurgia, então os pacientes que precisam ficam internados sem previsão de fazerem o procedimento, o que pode levar não só a complicações imediatas, mas sequelas a longo prazo, ficando até sem andar”, diz.
“Essa situação causa estresse. Duas semanas que venho trabalhar, tinha procedimento marcado, mas não tinha material, anestesista ou equipe”, destaca Jorge*.
Daniel*, médico que trabalha na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do IJF, endossa que “faltam insumos básicos, desde material de curativo a remédios básicos como analgésicos, antitérmicos, para náuseas e vômitos, anticoagulante e até antibióticos”.
A situação, ele frisa, “abala não só a saúde dos pacientes, de maneira que você via as pessoas piorarem na sua cara, mas a gente também se sente mal. Passamos a entender que ou a gente seria sincero com as famílias ou ia acabar surtando. E passamos a dizer a verdade”. O médico complementa: "a gente também tá adoecendo com essas condições de trabalho péssimas”.
Paralisação de atividades
Na última quinta-feira (21), médicos que atuam no IJF por meio da Cooperativa dos Médicos Traumatologistas e Ortopedistas do Estado do Ceará (Coomtoce) e anestesiologistas ligados à Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas do Ceará (Coopanest) paralisaram os atendimentos devido a atrasos salariais.
De acordo com o Sindicato dos Médicos do Ceará, o montante não pago aos ortopedistas e traumatologistas chega a R$ 800 mil, referente a salários de janeiro, junho, julho e agosto. Já os anestesiologistas têm mais de R$ 1,7 milhão em aberto referentes a junho, julho, agosto e setembro.
O sindicato afirma que “oficiou a Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza (SMS) e o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), por meio da Promotoria de Justiça da Saúde Pública, requerendo a providência de medidas que garantam a regularização dos pagamentos, além do resguardo do direito ao acesso à saúde dos usuários do SUS”.
O que diz o IJF
O Diário do Nordeste contatou o IJF e a SMS, por meio das assessorias de comunicação, pedindo esclarecimentos sobre os pontos relatados pelos profissionais de saúde da unidade. Não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Em paralelo, o prefeito José Sarto (PDT) anunciou, na última quinta-feira (21), a criação de uma força-tarefa imediata para garantir medicamentos e insumos que faltam na unidade.
Além disso, a gestão do hospital ficará a cargo, temporariamente, de um grupo formado por representantes da Secretaria da Saúde, da Secretaria de Finanças, da Secretaria de Governo e da Procuradoria Geral do Município.
Segundo o chefe do Executivo Municipal, será dado "suporte e agilidade" às compras e aos pagamentos do IJF. A operação foi definida após reunião com a cúpula da Prefeitura nesta tarde.