Acordos comerciais com China são passo correto
Por Editorial / O GLOBO
Com a volta de Donald Trump à Casa Branca, a disputa entre Estados Unidos e China tem tudo para ficar mais acirrada. Trump deverá aumentar as barreiras comerciais a produtos chineses, reforçando o “desacoplamento” das duas maiores economias do mundo. Acabou há muito o tempo em que os dois países acreditavam num mundo de interdependência. Tanto que a política para a China implementada no primeiro mandato de Trump foi mantida sem grandes mudanças por Joe Biden. A partir de janeiro, é provável que o enfrentamento ganhe contornos inéditos. Nesse cenário, o desafio para países como o Brasil será manter o equilíbrio entre os dois polos, em busca do interesse nacional.
A assinatura de 37 acordos entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o líder chinês Xi Jinping foi um passo correto na atual conjuntura. O Brasil firmou cooperações nas áreas de satélites, tecnologia nuclear, comércio (com a abertura do mercado chinês a quatro segmentos agrícolas) e projetos de infraestrutura. Mas, contrariando o interesse de Xi, não aderiu à Nova Rota da Seda, programa de investimento para expandir a influência chinesa no exterior que já gastou US$ 1 trilhão. Pagou um preço por isso: o mercado para carnes continuará restrito. Mesmo assim, isso pode ser negociado com o tempo.
Ao manter distância saudável de nosso maior parceiro comercial, o governo manifestou, corretamente, que não se submeterá a todos os desígnios de Pequim. O Peru não teve esse cuidado. Com dinheiro da Nova Rota da Seda, inaugurou na semana passada um porto de US$ 3,5 bilhões. No início do mês, a general Laura Richardson, então responsável pelo Comando Sul dos Estados Unidos, afirmou que o porto de águas profundas poderá ser usado pela marinha chinesa. Caso a suspeita resulte em sanções, sua atratividade comercial afundará. O Brasil não pode correr nenhum risco dessa natureza.
Em Brasília, os próprios formuladores da política externa percebem os perigos de aderir incondicionalmente aos planos chineses. Quando foi criado em 2001, o termo Bric — Brasil, Rússia, Índia e China — era uma referência a países emergentes. Quando a África do Sul — o “s” — entrou dez anos depois, a ênfase econômica foi mantida. Hoje o Brics tem se transformado em instrumento da política externa chinesa (e russa). Com a entrada do Irã, ficou nítida a inflexão antiocidental. Ao barrar recentemente a entrada da Venezuela, o Brasil fez mais que retaliar Nicolás Maduro. Deixou de fora um ditador e mostrou que ainda partilha valores com as democracias do Ocidente.
Nas próximas semanas, é possível que o Brasil dê um novo passo para fortalecer sua independência no cenário global. O acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul tem chance de se tornar enfim realidade. Na tentativa de resguardar interesses setoriais, protecionistas de lado a lado tentam afundar o projeto. Vencer essa oposição é crucial. E o Brasil terá mostrado que não abandonou o Ocidente.
Paradoxalmente, o próximo governo Trump será um incentivo a esse tipo de multilateralismo. Com os Estados Unidos voltados para dentro, será necessário esforço de integração maior no resto do mundo. Os próprios países europeus consideram maior aproximação da China. Para o Brasil, com larga tradição de equilíbrio em sua diplomacia, o momento pode ser favorável — e os acordos com chineses e europeus são iniciativas na direção certa.