Itaipu precisa de meio-termo entre tarifa e desenvolvimento, diz presidente do Paraguai
Nem a menor tarifa possível, nem gasto elevado com obras socioambientais. O presidente do Paraguai, Santiago Peña, 46, defende um meio-termo para o uso dos recursos da hidrelétrica binacional de Itaipu. O tema está na mesa de negociação: neste momento, Brasil e Paraguai discutem a revisão do chamado Anexo C, parte do acordo que traz os critérios da gestão financeira da usina.
Com o fim do pagamento da dívida pela construção de Itaipu, que consumia cerca de US$ 2 bilhões (cerca de R$ 11,4 bilhões) por ano, os parceiros não aplicaram a redução máxima desse valor para abaixar a tarifa. Canalizaram parte dos recursos para obras e projetos socioambientais.
"Existem duas grandes teorias ou visões. Uma visão é de que Itaipu já cumpriu seu objetivo, pagou a dívida e agora deve ser apenas um centro de custos. Outra em que fomenta desenvolvimento apenas através de outros projetos. Eu acredito no meio-termo", afirma.
Em entrevista à Folha durante o encontro de líderes do G20, no Rio de Janeiro, Peña defendeu ainda que o Mercosul é o único caminho para negociação de acordos comerciais com outros países. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O presidente da Argentina, Javier Milei, defendeu recentemente um acordo comercial de seu país com os Estados Unidos. O Mercosul não permite negociação independente. O que acha desse pleito argentino?
Eu acredito que o Mercosul é um bloco econômico muito importante, que precisamos fortalecer. É com ele que temos de negociar acordos de livre comércio com outros países, incluindo os EUA.
Permitir que países negociem acordos de livre comércio de maneira independente simplesmente não funciona, nem para o Mercosul nem para o país que assinar o acordo. Dou o exemplo da China: o Uruguai tentou promover um acordo de livre comércio com a China, mas a China afirmou que nunca assinaria um acordo de livre comércio com o Uruguai porque, na realidade, os interesses da China são o Brasil e a Argentina.
Nós administramos o que herdamos. Eu disse ao presidente Lula: temos a grande responsabilidade de levar o Mercosul a um nível superior. Isso requer liderança do Brasil, um Brasil que hoje atua nas grandes ligas, em nível mundial, mas que não pode esquecer os seus vizinhos.
Como seria isso?
Trabalhar mais dentro do Mercosul. Brasil e Argentina hoje tentam participar de fóruns como o G20 ou o G7, ou dos grandes debates sobre o desenho da nova arquitetura mundial —o que é muito bom. Mas o que temos hoje de forma concreta é o Mercosul, uma união aduaneira muito forte.
Devemos pensar que 60% de toda a proteína do mundo é produzida no Mercosul. A hidrovia Paraguai-Paraná, que conecta cinco países, é uma das maiores do mundo. Temos a maior integração energética, com Itaipu e Yacyretá [hidrelétrica binacional no rio Paraná entre Argentina e Paraguai] e toda uma produção de energia sustentável.
Acredito que o Brasil será um ator cada vez mais importante em nível mundial se também fortalecer o Mercosul. O Paraguai quer isso. Não tenho dúvidas de que a Argentina também precisa de um Mercosul mais forte. As políticas de acesso ao mercado e de liberalização econômica que estão sendo implementadas exigem um mercado comum cada vez maior.
O Paraguai pediu para postergar a negociação do Anexo C do Tratado de Itaipu ou está certo que a negociação termina em dezembro? O que há na mesa de importante?
Não [pedimos o adiamento]. Acredito que há uma visão comum. Itaipu é um sucesso da diplomacia, um sucesso da engenharia e um sucesso da integração de dois povos que estiveram separados por uma guerra muito dura, mas que Itaipu uniu em um futuro comum. O que vamos fazer para que, dentro de 50 anos, as pessoas pensem que o que fizemos também foi um sucesso?
Existem duas grandes teorias ou visões. Uma visão é de que Itaipu já cumpriu seu objetivo, pagou a dívida e agora deve ser apenas um centro de custos. Outra em que fomenta desenvolvimento apenas através de outros projetos. Eu acredito no meio-termo. Digo isso porque minha proposta há um ano era que tínhamos um excedente de US$ 2 bilhões por ano para o pagamento da dívida. Esse é um fluxo constante e permanente que podemos alavancar pelos próximos 50 anos.
A ideia é fixar um valor para investimentos? Em qual patamar?
Repotenciar as 20 turbinas, por exemplo. As turbinas de Itaipu atualmente geram 700 megawatts. Pode-se aumentar [em] até 40% com novas turbinas, utilizando a mesma água. Precisamos lembrar que os eventos climáticos estão cada vez mais adversos, e as secas cada vez mais intensas. Precisamos investir para melhorar a eficiência de Itaipu.
Temos a possibilidade de gerar 5 gigawatts no reservatório instalando painéis solares. A bateria de Itaipu é o reservatório. Com geração solar, podemos utilizar energia durante o dia e elevar o nível do reservatório para ter sua "bateria" para produzir energia. Podemos quase dobrar Itaipu se instalarmos painéis solares no reservatório.
Sua mensagem sobre Itaipu é então não focar no custo baixo?
O melhor legado que podemos deixar é aumentar a produção de energia sustentável. Um dos temas do G20 é a transição energética, e brasileiros e paraguaios já fizeram isso 50 anos atrás.
É preciso considerar o equilíbrio. Se você focar apenas no custo, como, por exemplo, limitar a US$ 10 [a tarifa, Itaipu] não terá capacidade de investir. Imagine se o governo precisar ir ao Congresso e solicitar um aumento da dívida do Tesouro brasileiro para investir em Itaipu.
Hoje, a energia de Itaipu é contratada por Brasil e Paraguai a 50%-50%. A ideia é mudar esse arranjo?
É manter o 50-50. Mas o Paraguai consome cada ano mais [de Itaipu]. A demanda de energia do Paraguai aumenta de 8% a 10% por ano.
Mas o sr. entende por que o Brasil prefere o custo mínimo, certo? Por que, no modelo 50-50, nós pagamos mais.
Mas o ganho é muito pequeno. Se você fizer as contas, o benefício econômico para intermediários e beneficiários é muito pequeno e não tem capacidade de gerar investimentos para melhorar a qualidade de vida. O progresso tecnológico não depende apenas da tecnologia disponível, mas da disponibilidade de energia. Qualquer pessoa pode ter CPU [computador], mas nem todos podem ter energia de fontes sustentáveis.
O Paraguai pediu para vender energia de Acaray para o Brasil, mas não há conexão de transmissão entre os dois países, exceto via Itaipu. A única maneira seria descontratar a energia de Itaipu ou discutir uma mudança na divisão pela negociação do Anexo C. Vocês pretendem reduzir o volume de energia que vendem ao Brasil via Itaipu para poder vender no mercado livre?
Não, não, não. Está muito claro que a energia que vendemos não é de Itaipu. É energia de Acaray.
Precisa de uma linha de transmissão. Técnicos brasileiros dizem que não passa pela linha de Itaipu.
Os técnicos paraguaios dizem que passa. Será energia do Paraguai que entra em outro ciclo.
O Brasil tem um desafio com novo governo nos Estados Unidos, porque há dificuldades de comunicação por questões ideológicas. O senhor conhece Marco Rubio, que será Secretário de Estado dos EUA. O sr. se vê numa posição de poder fazer uma ponte entre os dois governos?
Posso contar a minha experiência. A relação que temos com o presidente Lula é um exemplo de como devemos priorizar os interesses de nossos países.O presidente Lula é um líder que vem das lutas dos trabalhadores. Eu sou parte da burocracia pública. Trabalhei no Banco Central, me formei em universidades americanas. Somos de gerações diferentes, e seria muito fácil nos rotularmos: ele como um presidente de esquerda e eu como um presidente de direita.
No entanto, acho que nossa excelente relação é amplamente conhecida. Temos uma relação pessoal excelente e uma relação de trabalho muito boa —e foi o que eu disse ao presidente Javier Milei. Tivemos essa mesma conversa. Ele fez declarações muito ofensivas ao presidente Lula. Inclusive, não foi a Assunção para a cúpula do Mercosul apenas para não se encontrar com Lula. E eu disse: "Presidente, lembre-se do que estou dizendo: você vai a Rio para a reunião do G20". Ele respondeu: "não, não vou". Agora, Milei está aqui. Então, faço esse trabalho. Quero que o Paraguai desempenhe um papel cada vez mais importante como centro de integração.
RAIO-X
Santiago Peña, 46, do partido Colorado, foi ministro da Economia do Paraguai entre 2015 e 2017. Também trabalhou no Banco Central de seu país. Ganhou as eleições em 2023.