Jabuti em PEC dos precatórios acaba com trava da regra de ouro e libera endividamento
O governo inseriu na PEC (proposta de emenda à Constituição) que parcela precatórios um trecho que autoriza o Executivo a descumprir a regra de ouro das contas públicas sem um aval específico do Congresso. O texto foi entregue nesta segunda-feira (9) ao Legislativo.
Apesar de ser alvo de debates entre analistas de contas públicas, a regra de ouro é uma das principais normas fiscais do país e impede que o governo se endivide para pagar despesas correntes —como salários e aposentadorias.
A regra tem como objetivo evitar que o país financie despesas atuais deixando a fatura para as próximas gerações. Em vez disso, a norma busca direcionar o uso de recursos do endividamento para os investimentos públicos, como obras ou construções de escolas e hospitais —que permanecem ao longo do tempo e, portanto, podem ser usufruídos pelos futuros contribuintes.
Financiar despesas correntes com dívida só pode ocorrer hoje se o Congresso autorizar o direcionamento a finalidades precisas e após votação por maioria absoluta.
O governo pretende eliminar a etapa específica da solicitação ao Congresso e obter aval da Constituição para bancar as despesas correntes bastando que os montantes estejam previstos e autorizados pelo Orçamento (que ainda precisará passar pelos parlamentares).
Analistas de contas públicas discutem há anos possíveis ajustes na regra de ouro. Entre os problemas da norma, costuma ser citado que ela não controlou a escalada da dívida pública nem foi capaz de manter um grande nível de investimentos do país.
Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), afirma que a norma tinha problemas, mas que a medida do governo equivale a acabar com um objetivo acertado. "De fato, é uma regra, hoje, muito ruim, mal calibrada e desenhada. Mas seu espírito era correto", afirmou.
Alertas sobre o risco de descumprimento da regra de ouro vinham sendo feitos pelo Tesouro Nacional desde, pelo menos, 2017. A partir de 2018, diversas medidas foram tomadas para aliviar os números.
Recursos extraordinários foram obtidos por meio da devolução ao Tesouro de empréstimos feitos anteriormente a bancos públicos, como o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Mas, desde o começo, a equipe econômica sabia que a fonte dessas receitas era finita e se esgotaria em algum momento já nos anos seguintes.
O limite foi estourado em 2019, quando o governo não conseguiu mais cumprir o estabelecido na regra e passou a pedir aval ao Congresso para o descumprimento. Caso não faça a solicitação, as autoridades do Executivo ficam sujeitas a crime de responsabilidade.
Para 2021, por exemplo, o governo incluiu em sua proposta de Orçamento uma projeção de R$ 453,7 bilhões em dívida para pagar despesas correntes. Após uso de superávit financeiro de anos anteriores, ainda restaram cerca de R$ 60 bilhões dependentes de aval do Congresso.
A regra de ouro também foi alvo de flexibilizações durante a pandemia. Em 2020, o Congresso autorizou a suspensão dessa e de outras normas fiscais para destravar recursos para o combate à Covid-19 e seus efeitos.
Em 2021, houve nova flexibilização. Um total de R$ 44 bilhões para o pagamento do auxílio emergencial foi retirado das regras fiscais pela chamada PEC Emergencial.
Por tudo isso, nos bastidores, membros da equipe econômica defendem que a regra de ouro já era tratada como uma norma fictícia, sendo descumprida anualmente, sempre com o aval do Congresso.
No entanto, uma flexibilização da regra de ouro representa uma perda de poder para os parlamentares. Anualmente, fica nas mãos dos congressistas autorizar ou não o governo a fazer esse gasto excedente, acima do limite da norma fiscal.
Como forma de pressão, para garantir que o pedido seja aprovado, o Executivo costuma vincular a regra a gastos com forte apelo político, como aposentadorias, salários e benefícios sociais. Caso o Congresso não aprove, essas despesas ficam bloqueadas.
Em defesa da PEC, integrantes da pasta afirmam que a verdadeira âncora da política fiscal é o teto de gastos, que proíbe o governo de ampliar gastos acima da inflação.
Porém, diante do esgotamento do espaço no teto, o governo propôs medidas que, na prática, driblam a norma. A proposta enviada ao Congresso estabelece o parcelamento de precatórios (dívidas da União reconhecidas pela Justiça) e a criação de um fundo que fará gastos sem contabilização no teto.
A PEC dos precatórios contém flexibilizações em regras fiscais para abrir caminho para a execução de despesas em ano eleitoral.
O parcelamento de precatórios dribla a regra do teto de gastos no ano que vem e abre espaço para outras despesas. A margem no Orçamento deve ser consumida pela ampliação do programa Bolsa Família, agora rebatizado de Auxílio Brasil.
ENTENDA AS PRINCIPAIS REGRAS FISCAIS DO PAÍS
Regra de ouro
Proíbe que o governo realize operações de crédito (emissão de títulos da dívida pública) que excedam o valor das suas despesas de capital (investimentos).
Objetivo é evitar que país pague despesas atuais (como salários de servidores e aposentadorias) deixando a fatura para as próximas gerações, para que direcione esses recursos a investimentos (como obras e construções de escolas e hospitais).
Teto de gastos
Limita por 20 anos o crescimento anual dos gastos do governo federal à variação da inflação.
Meta fiscal
Corresponde à diferença entre as receitas e despesas previstas pelo governo para o ano (tirando o gasto com juros). É o esforço que o governo promete fazer para evitar o crescimento da dívida pública.
Estudo da ONU aponta influência humana em eventos climáticos extremos
O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU) traz um dos mais fortes trabalhos já produzidos pelo organismo, sobretudo por associar a influência humana aos eventos climáticos extremos, que, caracterizados com muita propriedade em alguns casos, não existiriam sem a participação humana, como é o caso das ondas de calor, das fortes chuvas e das secas. A avaliação é da professora titular aposentada do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Thelma Krug, atual.vice-presidente do IPCC e ex-diretora do Departamento de Políticas de Combate ao Desmatamento do Ministério do Meio Ambiente.
O estudo foi divulgado nesta segunda-feira (9) e vai ser complementado em 2022.
Segundo Thelma, é indiscutível a influência humana no sistema climático como um todo, e o relatório da ONU traz com muito mais robustez processos mais refinados, dados cada vez melhores, a resposta climática às emissões. “Isso fica muito bem caracterizado. É uma mensagem científica muito clara, e tenho certeza de que essas mensagens, que foram todas aprovadas por consenso na reunião do IPCC na semana passada, terão reflexo no IPCC como um todo, e esperamos que reverberem no mundo político”, disse Thelma, ao participar nesta terça-feira (10) do webinário O Brasil e as Mudanças Climáticas: o novo relatório do IPCC, organizado pela Academia Brasileira de Ciência (ABC) e que teve transmissão pelo YouTube.
No encontro, foram apresentadas as principais conclusões do Grupo de Trabalho I do Sexto Relatório de Avaliação do IPCC sobre as bases físicas das mudanças do clima. Também participaram do evento o professor de física da Universidade de São Paulo (USP) Paulo Artuxo; o pesquisador sênior do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações José Marengo e o pesquisador do Inpe Lincoln Alves, que trabalharam no ciclo do IPCC que resultou no relatório, que dará a direção científica da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-26), em novembro, em Glasgow, na Escócia.
Segundo Thelma, o painel teve participação de 234 autores de 66 países e apoio de 36 editores de revisão. Eles asseguram que todos os comentários entregues pelos governos e minutas de relatórios sejam avaliados um a um para evitar que não haja nenhuma tendência nas respostas. Também foi feita uma consulta a 14 mil artigos científicos. Segundo a professora, o IPCC não elabora pesquisas, mas avalia publicações relevantes sobre o tema em todo o mundo. Antes de ser divulgada a última versão, é feita uma revisão em duas minutas do texto.
A pesquisadora destacou o interesse dos governos em que os cientistas entendam as necessidades de cada um para facilitar a tomada de decisões, especialmente no fórum mais político,que seria a Convenção Quadro das Nações sobre a Mudança do Clima. “Os relatórios do IPCC têm tido papel importante na ponte entre a ciência e a política, desde o relatório 1, que ajudou no estabelecimento da Convenção do Clima em 1992 na Rio 92.”
O Brasil é um dos 195 países-membros do IPCC, cuja estrutura é dividida em três grupos de trabalho. O Grupo 1,que elaborou o relatório divulgado ontem (9), tem foco na base da ciência física do clima; o Grupo 2, que trata dos impactos, adaptações e vulnerabilidade, apresentará um relatório em fevereiro de 2022; e o Grupo 3, que avalia a mitigação das mudanças do clima, deve divulgar seu e trabalho em março de 2022.
“Enquanto o Grupo 2 tem a relevância de mostrar muitos impactos não só globais, mas também regionalizados, o 3 foca mais no que se pode fazer para limitar o aquecimento”, afirmou Thelma, ao ressaltar que o IPCC tem uma força-tarefa que cuida da elaboração dos manuais metodológicos para os inventários nacionais de gases de efeito estufa usados por todos os países integrantes.
Linguagem incisiva
O professor Paulo Artaxo destacou a linguagem mais incisiva deste relatório em relação aos trabalhos anteriores e lembrou que mudanças recentes ocorridas no clima são generalizadas e rápidas. “Nosso papel de mudança no clima é absolutamente inequívoco e sem precedentes nos últimos 6.500 anos. O relatório também coloca recados para os tomadores de decisão. O IPCC não faz política, não é responsável pela redução de emissões, mas manda mensagens científicas, e a mensagem é que, a menos que haja reduções imediatas rápidas e em grande escala nas emissões de gases de efeito estufa, limitar o aquecimento em 1,5 grau pode ser impossível.”
Artaxo destacou que essa é a voz da ciência, que coloca em uma situação quase emergencial a necessidade de redução das emissões.
Ele acrescentou que, conforme cenários analisados, a Amazônia pode se tornar fonte de carbono para a atmosfera global, se houver uma redução muito significativa da absorção de carbono da Floresta Amazônica causada pelo aumento da temperatura e redução das precipitações.
Aquecimento
De acordo com o pesquisador José Marengo, o aquecimento global não pode ser explicado somente por fatores naturais, o que ficou mais evidente desde 1980.
Isso ocorre também com os eventos extremos de chuva. “Assim como a temperatura, os extremos mostram que o efeito humano é nítido, claro, e é responsável por explicar melhor as tendências observadas particularmente nos últimos 20 anos.”
Lincoln Alves, do Inpe, que analisou características regionais no Atlas interativo do IPCC, apontou o aumento significativo de eventos extremos, seja de secas, seja de precipitações.
“As projeções indicam que cada 0,5 grau adicional de aquecimento causa de fato aumentos claros e perceptíveis na intensidade dos eventos de precipitação, bem como nas secas que temos observado em várias regiões do país”, acrescentou.
Edição: Nádia Franco / AGÊNCIA BRASIL
Toffoli rejeita mandado de segurança para barrar desfile militar em Brasília
O desfile de blindados militares previsto para esta terça-feira (10/8), em Brasília, é um ato de iniciativa da Marinha e, por isso, o pedido para que não seja realizado deveria ser dirigido ao Superior Tribunal de Justiça. Com esse entendimento, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, declinou a competência da corte suprema para analisar o caso.
O Psol e a Rede entraram com mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal na segunda-feira (9/8) pedindo o cancelamento do desfile das Forças de Fuzileiros da Esquadra. A informação de que a legenda iria recorrer ao Judiciário para barrar o evento já havia sido antecipada mais cedo por seu presidente, Juliano Medeiros.
"Conquanto os impetrantes tenham apontado como autoridade coatora o Presidente da República Federativa do Brasil, os fatos noticiados na inicial do writ dizem respeito a ato emanado da Marinha do Brasil, conforme nota acostada aos autos", diz o ministro.
"É do Superior Tribunal de Justiça a competência para processar e julgar, originariamente, os mandados de segurança ‘contra ato de Ministro de Estado, dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica ou do próprio Tribunal", sustenta.
Clique aqui para ler a decisão de Dias Toffoli
MS 38.140
Severino Goes é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 10 de agosto de 2021, 8h25
Gilmar mantém quebra de sigilo de empresa acusada de espalhar fake news
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, negou o pedido da empresa Brasil Paralelo Entretenimento e Educação S.A., feito em mandado de segurança, para que fosse anulada a quebra de seus sigilos telefônico e telemático pela CPI da Covid-19. Por outro lado, Gilmar determinou que a medida deve valer apenas para o período iniciado em 20 de março de 2020, quando oficialmente foi declarado o estado de emergência devido à doença.
Além disso, o ministro também ordenou que as informações obtidas pela CPI sejam mantidas sob a guarda do presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM), e compartilhadas com o colegiado somente "em reunião secreta e quando pertinentes ao objeto da apuração".
Segundo a decisão, a CPI fundamentou o pedido de acesso às informações telefônicas e telemáticas com base em indícios de ligação da empresa com a divulgação de notícias falsas desde a campanha presidencial de 2018. Na avaliação do ministro, o ato integra a linha investigativa da CPI na apuração de "correlação entre as ações do governo federal no enfrentamento da pandemia e a disseminação de notícias falsas por pessoas físicas e veículos de comunicação durante o período".
Gilmar Mendes ressaltou, no entanto, que o acesso aos dados deve se restringir ao período e objeto delimitados para a atuação da CPI, nos termos do parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição Federal. Com informações da assessoria de imprensa do STF.
Clique aqui para ler a decisão
MS 38.117
Revista Consultor Jurídico, 10 de agosto de 2021, 13h10
Controles tolerantes e falta de transparência estimulam impunidade no Judiciário
[resumo] Recorrência de casos de venda de sentenças, desvio de verbas, nepotismo, aparelhamento político e conflitos éticos no Judiciário que acabam impunes, prescritos ou com punições leves revelam a debilidade dos mecanismos de transparências e controle na Justiça.
O cidadão comum tem hoje mais chances de saber o que os tribunais fazem e julgam, mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo, a imprensa não cobriu o Judiciário como instituição. A Justiça era fonte de notícias quando havia denúncias contra figuras famosas. Agora, o que um ministro do Supremo Tribunal Federal decide é debatido pela sociedade.
O jornalismo investigativo concentrou seu foco no combate à corrupção. O problema central é a impunidade, que estimula atos ilícitos, e também encontra guarida no Poder Judiciário.
O grosso da magistratura não compactua com a impunidade. A ex-corregedora Eliana Calmon, quando mencionou os “bandidos de toga”, ressaltou que não generaliza a crítica. Disse, como magistrada de carreira, que a corrupção no Judiciário é mínima.
Pode ser mínima, mas é persistente. Em 2017, em Brasília, encerrei uma palestra proferida na Reunião Preparatória do 11º Encontro Nacional do Judiciário, a convite da ministra do STF Cármen Lúcia, citando o discurso de posse de Laurita Vaz na presidência do Superior Tribunal de Justiça: “Ninguém mais aguenta tanta desfaçatez, tanto desmando, tanta impunidade”.
A VOLTA DOS MILITARES
O Judiciário contribuiu para o retorno dos militares ao poder civil. A imprensa não atentou quando, em 2018, o então presidente do STF, Dias Toffoli, introduziu um general da reserva, Fernando Azevedo e Silva, futuro ministro da Defesa de Bolsonaro, em seu gabinete. A corte não reagiu, à exceção de Celso de Mello. Toffoli depois negou o golpe militar de 1964, dizendo ter sido um “movimento”. Queria ser o interlocutor entre a toga e a farda.
Jair Bolsonaro forjou um discurso anticorrupção, ofereceu o Ministério da Justiça ao ex-juiz Sergio Moro. Depois, esvaziou o órgão e o ministro. Para comandar o Ministério Público da União, escolheu Augusto Aras, que pregava a “democracia militar” e não foi questionado. Aras militarizou o Ministério Público e desmontou a Lava Jato.
“A imprensa nunca incomodou minimamente o Poder Judiciário”, diz Ana Lúcia Amaral, procuradora regional da República aposentada. Ela diz que os jornais publicavam manchetes sobre a Lava Jato “porque era material fácil, farto e escandaloso”.
Ana Lúcia entende que “o Judiciário se mostrou disfuncional na medida em que desobedecer a lei nunca foi desestimulado por uma clara e boa decisão judicial”. “Autoridades conseguiram, por décadas, escapar das barras dos tribunais por força do foro especial por prerrogativa de função e chicanas que procrastinam o processo até a prescrição”, afirma.
Com o STF sob pressão, o Judiciário se blindou no “inquérito do fim do mundo”, ela diz. Em 2019, incomodado por reportagens da revista Crusoé sobre supostas movimentações atípicas em contas vinculadas a advogadas mulheres de ministros do STF, Toffoli instaurou, via portaria, um inquérito para apurar fake news e divulgação de mensagens que atentem contra a honra dos integrantes do tribunal.
Escolheu o ministro Alexandre de Moraes para a tarefa. Numa típica medida de períodos de exceção, o juiz que se considera alvo de críticas conduz a ação policial e é o julgador final da causa.
No âmbito do inquérito, Moraes determinou a retirada do ar de reportagem e nota da revista Crusoé e do site O Antagonista que ligavam Toffoli à empreiteira Odebrecht. Depois o ministro revogou a própria decisão.
Diante dos ataques à medida e ao inquérito como um todo, a advocacia aderiu em peso a um jantar em homenagem a Toffoli. A liberdade de expressão ficou fora do cardápio.
DECLÍNIO DO CNJ
Em 1987, Márcio Thomaz Bastos, então presidente da OAB, sugeriu um controle externo ao Judiciário. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) só seriam instalados em 2005. Até 2009, o CNMP não havia feito nenhuma inspeção.
O CNJ foi desidratado por alguns ministros do STF que presidiram o órgão. Gilmar Mendes convidou especialistas para auxiliar nas pesquisas. Esse grupo foi esvaziado pelo sucessor, Cezar Peluso.
Ricardo Lewandowski abriu o CNJ ao lobby das associações de juízes. Engavetou denúncias e dividiu o colegiado. No primeiro dia como presidente do conselho, Toffoli mudou o regimento, eliminou as travas contra nomeação de parentes e o uso do CNJ como trampolim político. Favoreceu amigos e revogou a quarentena de juízes auxiliares. A imprensa não viu.
Em 2016, publiquei na Folha que, dos 33 ministros do STJ, dez têm filhos ou mulheres advogados que defendem interesses de clientes com processos em tramitação na Corte. Entre eles, os ex-corregedores Francisco Falcão, João Otávio de Noronha e Humberto Martins. O corregedor Noronha blindou juízes e engavetou, por dois anos, relatórios de inspeções em tribunais. A mídia ignorou.
SIMBIOSE E HOLOFOTES
No governo Fernando Henrique Cardoso, imperava a “simbiose entre o Ministério Público e a imprensa”, teoria do procurador da República Luiz Francisco Fernandes de Souza. A imprensa recebia informações sobre investigações preliminares; o procurador juntava as reportagens nos inquéritos para pedir a quebra de sigilos.
O ex-chefe da Casa Civil José Dirceu foi um dos principais alvos do MP na gestão de Lula. No governo FHC, o objetivo de Luiz Francisco era perseguir o então secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge Caldas Pereira (o EJ). Luiz Francisco incluiu o CPF de um advogado no pedido de quebra de sigilo da mulher de EJ. Pretendia investigar o aluguel da sede da campanha de FHC. Apuração feita pela Folha revelou que nada foi provado contra EJ.
Essa simbiose MP/imprensa floresceu na gestão do procurador-geral da República Geraldo Brindeiro. Seu sucessor, Cláudio Fonteles, nomeado por Lula, apagou os holofotes de Luiz Francisco. “Buscar furo é papel da mídia, não da Procuradoria”, disse.
No início da era Lula, os procuradores diminuíram o ímpeto acusatório. “O governo do PT negocia mais e a gestão dos recursos públicos melhorou”, alegou Luiz Francisco.
Dias Toffoli, quando subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil na gestão de José Dirceu, exercia advocacia privada e representava clientes do PT. A OAB não viu motivo para impedimento.
Há muitos outros casos de relações conflituosas. Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato, pretendia montar empresa de palestras sem aparecer como sócio. Em 2007, o CNMP censurou o procurador Guilherme Schelb, que atuava com Luiz Francisco, por tentar obter recursos de empresas para um projeto pessoal.
MENSALÕES ESQUECIDOS
O escândalo do mensalão petista teve ampla repercussão social, ameaçou derrubar o governo Lula em 2005 e levou à prisão políticos e empresários. Esquemas semelhantes, contudo, receberam tratamento bem diverso. Na ocasião, a mídia não se interessou pelo mensalão tucano. Os valores eram inferiores, mas o operador era o mesmo, Marcos Valério.
A investigação sobre o mensalinho petista (que acusou de corrupção o empresário Joesley Batista e o então governador mineiro Fernando Pimentel, do PT) naufragou por erros do MP na apresentação da denúncia.
A mídia não deu importância ao mensalão da toga, que revelei na Folha: desvio, por magistrados, de cerca de R$ 20 milhões da Fundação Habitacional do Exército (FHE). Durante dez anos, dirigentes de uma associação de juízes firmaram contratos fictícios com dados cadastrais de magistrados que desconheciam a fraude. Houve apenas censura e advertência contra eles.
A impunidade gerou a extinção de grandes operações. O juiz federal Fausto De Sanctis diz que esse processo começou em 2011, com a anulação, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), da Castelo de Areia, “que nada mais era do que a Lava Jato antecipada”.
O juiz federal Danilo Fontenelle, do Ceará, afirma que outro grande baque “foi o STF voltar ao entendimento de que a prisão após confirmação em segunda instância seria antecipação da pena”. “Daí”, diz ele, “os advogados, que faziam colaborações premiadas pelos seus clientes, voltaram a apostar na prescrição”.
Em 2009, quando o STF decidiu pela primeira vez em sessão do plenário que um condenado em segunda instância da Justiça pode recorrer em liberdade, outros juízes de varas especializadas previram os efeitos.
“É um retrocesso. A sensação de impunidade vai aumentar”, disse Jorge Costa (juiz do mensalão em BH). “Estou me questionando se vale a pena dar impulso a ações penais em relação a crimes de colarinho branco já que, de antemão, sei que estão fadadas ao fracasso”, disse Sergio Moro, na ocasião.
Não surpreendeu a ampla cobertura à Lava Jato, às vezes de forma acrítica. Vislumbrou-se a possibilidade de a Justiça atingir suspeitos intocáveis. Moro anteviu outra simbiose ao analisar a operação italiana Mãos Limpas: “A opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo”.
DESAFOROS E INSULTOS
O debate polarizado desde o impeachment de Dilma Rousseff contaminou o Supremo. A nomeação de Kassio Nunes para a vaga de Celso de Mello, um substituto sabidamente contra a Lava Jato, reforçou a previsão de que a Segunda Turma derreteria Moro e a força-tarefa.
As formalidades de boas maneiras e respeito foram esquecidas. No ano passado, a União foi condenada a indenizar Deltan após Gilmar chamar os procuradores da Lava Jato de “cretinos, desqualificados, covardes, gângsteres”. Em fevereiro deste ano, comparou a força-tarefa a um “esquadrão da morte”.
Atribui-se a indisposição do ministro do STF com o Ministério Público ao questionamento, pelo procurador Luiz Francisco, de 451 contratos, sem licitação, entre a AGU (Advocacia Geral da União), quando Gilmar era o titular do órgão (2000 a 2002), e o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), do qual é sócio. Subordinados da AGU frequentaram cursos naquela empresa privada à custa do erário.
No início da Lava Jato, Celso de Mello, Gilmar e Lewandowski tentaram conter Moro, sob o argumento de que “prendia muito” e resistia a decisões superiores. Temiam “um novo De Sanctis”, juiz que desafiou Gilmar na Operação Satiagraha.
Em 2008, o doleiro Rubens Catenacci, condenado por Moro no caso Banestado, pedira a anulação da sentença, alegando parcialidade do então juiz. Gilmar criticou condutas “censuráveis” e “desastradas” de Moro, mas concluiu que “não se pode confundir excessos com parcialidade”. Depois, reviu essa avaliação. Disse que o tempo demonstrou “traços da realidade que antes não se evidenciava”.
Recentemente, no julgamento sobre a suspeição de Moro no caso do tríplex no Guarujá (SP), o caso do doleiro foi usado como precedente pela defesa de Lula. No voto-vista, Gilmar não revelou que o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) e o CNJ já haviam arquivado as acusações contra Moro com base nas denúncias de Catenacci.
Em março de 2016, o ex-PGR Claudio Fonteles recomendou moderação a procuradores da Lava Jato. Considerou “inadmissível (...) compelir testemunha, indiciado ou réu a prestar depoimento à margem do devido processo legal”.
Em 2019, Fonteles defendeu a “plena investigação” de mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil que indicavam colaboração de Moro e Deltan na Lava Jato: “O membro do MP não pode, por qualquer meio, mancomunar-se com o julgador”.
Naquele mesmo ano, revelei na Folha que o CNJ manteve sem julgamento, por mais de dois anos, recursos de reclamações disciplinares contra Moro que poderiam tê-lo afastado dos processos da Lava Jato.
CONTROLE FRÁGIL
Eis alguns outros exemplos da fragilidade dos controles, publicados na Folha e em meu blog Interesse Público:
1) Quando o CNJ foi criado, o holerite no TJ-MG era chamado de “salário-família”. Doze mulheres de desembargadores estavam na folha de pagamento, sem prestar concurso. Entre os primeiros aprovados em um concurso para novos juízes, 20 eram parentes de magistrados, incluindo duas filhas do então presidente do tribunal.
2) Acusado de vender sentença, o ministro do STJ Paulo Medina foi afastado do cargo pelo CNJ em 2010. Morreu de Covid, em abril deste ano, sem o caso ter sido julgado. Dois anos depois de seu afastamento, ele dirigiu uma mesa de debates no TJ-MG.
3) O juiz Danilo Campos foi o autor da primeira denúncia feita ao CNJ: acusou tráfico de influência na carreira da magistratura mineira. Em consequência, foi condenado pelo TJ-MG à pena de prisão, sob acusação da prática dos crimes de difamação e calúnia contra membros da comissão examinadora de um concurso público. A decisão acabou anulada pelo STJ.
4) Foi tardia a prisão do ex-juiz federal João Carlos da Rocha Mattos, acusado na Operação Anaconda, em 2003, de ser o mentor de um esquema de venda de sentenças na Justiça Federal. Trabalhava no escritório da organização criminosa que liderava o esquema um procurador que, em 1989, ajudou o juiz a enterrar o caso Cobrasma, mega fraude no mercado de ações.
5) Um ex-presidente do TJ-SP não recebia o presidente do CNJ. Eliana Calmon, corregedora-Geral da Justiça do órgão de 2010 a 2012, dizia que só conseguiria entrar no tribunal “quando o sargento Garcia prendesse o Zorro”. Investigava-se na época uma suposta folha de pagamento paralela, elaborada fora do tribunal, que favoreceria desembargadores.
6) Sucessivas chicanas retardaram as ações penais contra o juiz Nicolau dos Santos Neto, o ex-senador Luiz Estevão de Oliveira e os empresários Fábio Monteiro de Barros e José Eduardo Ferraz, denunciados por desvio de recursos na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo.
7) Em 2006, o TRF-3, por unanimidade, reformou sentença de absolvição e condenou Ferraz a 27 anos e oito meses de prisão. Na véspera, Ferraz desconstituíra o advogado, que continuou seu patrono em outros processos. Oito anos depois, seu novo advogado, o ex-ministro Sepúlveda Pertence, sustentou no STF cerceamento de defesa (ou seja, o réu não teria tido advogado no julgamento de 2006). Ferraz foi beneficiado por um empate, e a condenação foi anulada.
8) Dois ex-presidentes do TJ-BA, afastados pelo CNJ em decisão unânime por uma série de infrações, retornaram ao tribunal por liminar proferida por Lewandowski no recesso do STF. Foram recebidos por autoridades baianas com festa e foguetório.
9) Um ex-procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro recebia “mensalidade” do ex-governador Sergio Cabral, que financiou sua campanha para o cargo no MP.
10) Antes de se aposentar, Orlando Adão de Carvalho, ex-presidente do TJ-MG, transferiu de seu gabinete para o do filho, o desembargador Alexandre Victor de Carvalho, uma jovem advogada. Há indícios de que ela receberia seus proventos sem trabalhar. Suspeito de “rachar” parte do salário dela, o desembargador foi absolvido pelo TJ-MG. O CNJ arquivou o caso. Ele ainda é alvo de inquérito no STJ, suspeito de corrupção passiva. Denúncia do MPF acusa o desembargador de negociar a nomeação da mulher e do filho em cargos públicos (troca de favores) e de sugerir “rachadinhas”.
Dezesseis anos depois, o CNJ volta ao começo: apura novas suspeitas de nepotismo no TJ-MG.
Lei Rouanet pode encolher 50% com reforma do IR e sufocar museus e orquestras
Uma tempestade está armada sobre a Rouanet. Depois de um decreto recente da pasta da Cultura alterar as regras da principal lei de incentivo às artes do país, com medidas que parecem feitas para agradar aos eleitores de Bolsonaro, agora o Ministério da Economia pode tomar uma atitude capaz de ceifar metade da verba do mecanismo nos próximos dois anos, o que seria provavelmente o maior baque sofrido pela Rouanet em suas três décadas de existência.
O projeto da reforma do Imposto de Renda, incluído na grande reforma tributária do ministro Paulo Guedes, deve gerar uma queda progressiva no montante que as empresas podem destinar à Rouanet —16,7% a menos em 2022 e 50% a menos em 2023, em relação aos valores atuais. Isso se a medida for adiante no Congresso do jeito que está, na proposta do deputado Celso Sabino, do PSDB do Pará.
Ou seja, o cerca de R$ 1,4 bilhão de dinheiro público injetado em projetos culturais em 2020 seriam cortados para R$ 700 milhões.
Isso deve gerar um rombo para grandes instituições culturais, como museus, orquestras e exposições que arrecadam dezenas de milhões de reais de incentivo fiscal, responsáveis por parte considerável de seus orçamentos. Também pode pôr em risco de extinção companhias médias com décadas de atuação em suas áreas, para as quais a verba obtida via lei representa mais da metade da planilha de custos. O resultado será o empobrecimento do setor cultural e uma leva de empregos perdidos, depois do baque da pandemia sobre a área.
“O cenário do mercado de patrocínios já é bastante competitivo. Há muitos projetos de excelente qualidade que concorrem pela atenção das empresas patrocinadoras”, diz Marcelo Lopes, diretor executivo da Fundação Osesp, responsável pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. “A proposta do relator inviabiliza o sistema e torna o Pronac [o Programa Nacional de Apoio à Cultura, do qual a Rouanet faz parte] absolutamente inútil para as finalidades a que se destina. Morrerá por inanição.”
Em 2019, a Fundação Osesp teve 16% de seu orçamento vindo dessa lei de incentivo, mas a ideia é chegar a 25% ou 30% em 2022, segundo a controladoria da fundação. A verba financia a orquestra e suas turnês, uma escola de formação de músicos, o Festival de Inverno de Campos do Jordão, no interior paulista, e outras atividades.
Lopes afirma que a reforma do imposto de renda deve alterar a estrutura do mercado de incentivos, mas ele diz que não vê a possibilidade de que se consiga alguma nova alternativa no prazo estabelecido pelo texto do relator, de dois anos.
Presidente da Fundação Bienal de São Paulo, José Olympio da Veiga Pereira lembra que muitos projetos culturais só podem ser viabilizados com recursos incentivados e afirma que a redução do Imposto de Renda das empresas será devastadora para o setor artístico. “Nos parece que as consequências dessa reforma sobre a cultura e outras áreas que se beneficiam de leis de incentivo, como o esporte, não têm sido problematizadas e debatidas a fundo até o momento”, ele afirma.
Além da Rouanet, serão também afetadas pela reforma leis que destinam incentivos fiscais ao audiovisual, ao esporte, à infância e ao idoso. A proposta do corte de 50% é uma versão melhorada —o projeto original do relator Celso Sabino previa uma queda de 83% nos benefícios, o que mataria de vez a Rouanet. Procurado, o relator não respondeu aos questionamentos. O projeto atual está previsto para ser votado pela Câmara nesta quarta-feira.
Se o cenário preocupa os diretores das grandes instituições, para as menores a reforma tributária pode significar o fim. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, uma das companhias teatrais que mais viaja pelo interior do Brasil levando espetáculos, tem quase 100% de seu financiamento feito pela Rouanet, conta Chico Pelúcio, diretor geral do Galpão Cine Horto, centro cultural mantido pelo grupo na capital mineira.
O Grupo Galpão e o Cine Horto empregam diretamente 40 pessoas, entre contratados com carteira assinada e prestadores de serviços, além de ativarem uma série de fornecedores, como uma família que transporta os cenários das peças e também a assessoria jurídica do grupo, diz Pelúcio, para quem a reforma seria um “golpe externo” no desmonte da lei, depois de uma série de “golpes internos”, aqueles que partiram da própria Secretaria Especial da Cultura.
Pelúcio teme que a reforma provoque uma concentração das verbas da Rouanet que sobrarem nas instituições de renome e nos grandes eventos, já articulados para captarem o dinheiro junto às empresas patrocinadoras e com projetos culturais alinhados “a um capitalismo de visibilidade”, em suas palavras. Esse cenário se daria em detrimento de iniciativas menores, voltadas à pesquisa de linguagens e à formação de público, e acabaria por manter as verbas da lei concentradas nas mãos de poucos, diz ele.
A concentração de recursos nas mãos de poucos é uma crítica frequente à Rouanet, vinda de diversos setores, e com frequência do secretário especial da Cultura, Mario Frias, e do secretário de Fomento da pasta, André Porciuncula. Segundo os servidores afirmaram diversas vezes, a verba da lei está concentrada sobretudo na região Sudeste e com artistas famosos. Eles defendem a pulverização desse dinheiro pelo país todo, para que chegue às mãos de pequenos produtores culturais e de espetáculos menores.
Há ainda a imagem pública da lei, que deve ficar arranhada mesmo que a verba caia pela metade. Segundo uma fonte do setor cultural, isso se dará porque a proposta prevê que o desconto nominal no imposto de renda das empresas —ou seja, o montante que vira incentivo para a cultura—, seja de 12%, em comparação com os 4% atuais. Há o risco de que o debate sobre a Rouanet fique mais energizado e desgastado, piorando a situação atual, na qual há uma narrativa que tenta enquadrar o mecanismo como mamata concedida aos artistas.
Procurada, a Vale, empresa que mais investiu em cultura via Rouanet em 2020 —R$ 120,5 milhões—, não quis comentar os possíveis impactos da reforma no setor. Por meio de nota enviada pela assessoria do Instituto Cultural Vale, a empresa afirma que acompanha o debate sobre a reforma tributária e reafirma o seu propósito de democratizar o acesso à cultura e à produção cultural, além de destacar “a importância dos mecanismos de incentivo fiscal voltados para o fomento das agendas sociais e da cultura”.
Camila Aloi, gerente de relações institucionais do Gife, uma associação de investidores sociais privados que estimula o empresariado a investir em cultura e a realizar ações filantrópicas, faz a questão que ronda o setor: “Se essa lei passa, se realmente essa reforma é feita, de onde virá esse dinheiro que vinha das leis de incentivo?”