Lei Rouanet pode encolher 50% com reforma do IR e sufocar museus e orquestras
Uma tempestade está armada sobre a Rouanet. Depois de um decreto recente da pasta da Cultura alterar as regras da principal lei de incentivo às artes do país, com medidas que parecem feitas para agradar aos eleitores de Bolsonaro, agora o Ministério da Economia pode tomar uma atitude capaz de ceifar metade da verba do mecanismo nos próximos dois anos, o que seria provavelmente o maior baque sofrido pela Rouanet em suas três décadas de existência.
O projeto da reforma do Imposto de Renda, incluído na grande reforma tributária do ministro Paulo Guedes, deve gerar uma queda progressiva no montante que as empresas podem destinar à Rouanet —16,7% a menos em 2022 e 50% a menos em 2023, em relação aos valores atuais. Isso se a medida for adiante no Congresso do jeito que está, na proposta do deputado Celso Sabino, do PSDB do Pará.
Ou seja, o cerca de R$ 1,4 bilhão de dinheiro público injetado em projetos culturais em 2020 seriam cortados para R$ 700 milhões.
Isso deve gerar um rombo para grandes instituições culturais, como museus, orquestras e exposições que arrecadam dezenas de milhões de reais de incentivo fiscal, responsáveis por parte considerável de seus orçamentos. Também pode pôr em risco de extinção companhias médias com décadas de atuação em suas áreas, para as quais a verba obtida via lei representa mais da metade da planilha de custos. O resultado será o empobrecimento do setor cultural e uma leva de empregos perdidos, depois do baque da pandemia sobre a área.
“O cenário do mercado de patrocínios já é bastante competitivo. Há muitos projetos de excelente qualidade que concorrem pela atenção das empresas patrocinadoras”, diz Marcelo Lopes, diretor executivo da Fundação Osesp, responsável pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. “A proposta do relator inviabiliza o sistema e torna o Pronac [o Programa Nacional de Apoio à Cultura, do qual a Rouanet faz parte] absolutamente inútil para as finalidades a que se destina. Morrerá por inanição.”
Em 2019, a Fundação Osesp teve 16% de seu orçamento vindo dessa lei de incentivo, mas a ideia é chegar a 25% ou 30% em 2022, segundo a controladoria da fundação. A verba financia a orquestra e suas turnês, uma escola de formação de músicos, o Festival de Inverno de Campos do Jordão, no interior paulista, e outras atividades.
Lopes afirma que a reforma do imposto de renda deve alterar a estrutura do mercado de incentivos, mas ele diz que não vê a possibilidade de que se consiga alguma nova alternativa no prazo estabelecido pelo texto do relator, de dois anos.
Presidente da Fundação Bienal de São Paulo, José Olympio da Veiga Pereira lembra que muitos projetos culturais só podem ser viabilizados com recursos incentivados e afirma que a redução do Imposto de Renda das empresas será devastadora para o setor artístico. “Nos parece que as consequências dessa reforma sobre a cultura e outras áreas que se beneficiam de leis de incentivo, como o esporte, não têm sido problematizadas e debatidas a fundo até o momento”, ele afirma.
Além da Rouanet, serão também afetadas pela reforma leis que destinam incentivos fiscais ao audiovisual, ao esporte, à infância e ao idoso. A proposta do corte de 50% é uma versão melhorada —o projeto original do relator Celso Sabino previa uma queda de 83% nos benefícios, o que mataria de vez a Rouanet. Procurado, o relator não respondeu aos questionamentos. O projeto atual está previsto para ser votado pela Câmara nesta quarta-feira.
Se o cenário preocupa os diretores das grandes instituições, para as menores a reforma tributária pode significar o fim. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, uma das companhias teatrais que mais viaja pelo interior do Brasil levando espetáculos, tem quase 100% de seu financiamento feito pela Rouanet, conta Chico Pelúcio, diretor geral do Galpão Cine Horto, centro cultural mantido pelo grupo na capital mineira.
O Grupo Galpão e o Cine Horto empregam diretamente 40 pessoas, entre contratados com carteira assinada e prestadores de serviços, além de ativarem uma série de fornecedores, como uma família que transporta os cenários das peças e também a assessoria jurídica do grupo, diz Pelúcio, para quem a reforma seria um “golpe externo” no desmonte da lei, depois de uma série de “golpes internos”, aqueles que partiram da própria Secretaria Especial da Cultura.
Pelúcio teme que a reforma provoque uma concentração das verbas da Rouanet que sobrarem nas instituições de renome e nos grandes eventos, já articulados para captarem o dinheiro junto às empresas patrocinadoras e com projetos culturais alinhados “a um capitalismo de visibilidade”, em suas palavras. Esse cenário se daria em detrimento de iniciativas menores, voltadas à pesquisa de linguagens e à formação de público, e acabaria por manter as verbas da lei concentradas nas mãos de poucos, diz ele.
A concentração de recursos nas mãos de poucos é uma crítica frequente à Rouanet, vinda de diversos setores, e com frequência do secretário especial da Cultura, Mario Frias, e do secretário de Fomento da pasta, André Porciuncula. Segundo os servidores afirmaram diversas vezes, a verba da lei está concentrada sobretudo na região Sudeste e com artistas famosos. Eles defendem a pulverização desse dinheiro pelo país todo, para que chegue às mãos de pequenos produtores culturais e de espetáculos menores.
Há ainda a imagem pública da lei, que deve ficar arranhada mesmo que a verba caia pela metade. Segundo uma fonte do setor cultural, isso se dará porque a proposta prevê que o desconto nominal no imposto de renda das empresas —ou seja, o montante que vira incentivo para a cultura—, seja de 12%, em comparação com os 4% atuais. Há o risco de que o debate sobre a Rouanet fique mais energizado e desgastado, piorando a situação atual, na qual há uma narrativa que tenta enquadrar o mecanismo como mamata concedida aos artistas.
Procurada, a Vale, empresa que mais investiu em cultura via Rouanet em 2020 —R$ 120,5 milhões—, não quis comentar os possíveis impactos da reforma no setor. Por meio de nota enviada pela assessoria do Instituto Cultural Vale, a empresa afirma que acompanha o debate sobre a reforma tributária e reafirma o seu propósito de democratizar o acesso à cultura e à produção cultural, além de destacar “a importância dos mecanismos de incentivo fiscal voltados para o fomento das agendas sociais e da cultura”.
Camila Aloi, gerente de relações institucionais do Gife, uma associação de investidores sociais privados que estimula o empresariado a investir em cultura e a realizar ações filantrópicas, faz a questão que ronda o setor: “Se essa lei passa, se realmente essa reforma é feita, de onde virá esse dinheiro que vinha das leis de incentivo?”