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Controles tolerantes e falta de transparência estimulam impunidade no Judiciário

Frederico Vasconcelos / FOLHA DE SP

[resumo] Recorrência de casos de venda de sentenças, desvio de verbas, nepotismo, aparelhamento político e conflitos éticos no Judiciário que acabam impunes, prescritos ou com punições leves revelam a debilidade dos mecanismos de transparências e controle na Justiça.

O cidadão comum tem hoje mais chances de saber o que os tribunais fazem e julgam, mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo, a imprensa não cobriu o Judiciário como instituição. A Justiça era fonte de notícias quando havia denúncias contra figuras famosas. Agora, o que um ministro do Supremo Tribunal Federal decide é debatido pela sociedade.

O jornalismo investigativo concentrou seu foco no combate à corrupção. O problema central é a impunidade, que estimula atos ilícitos, e também encontra guarida no Poder Judiciário.

O grosso da magistratura não compactua com a impunidade. A ex-corregedora Eliana Calmon, quando mencionou os “bandidos de toga”, ressaltou que não generaliza a crítica. Disse, como magistrada de carreira, que a corrupção no Judiciário é mínima.

Pode ser mínima, mas é persistente. Em 2017, em Brasília, encerrei uma palestra proferida na Reunião Preparatória do 11º Encontro Nacional do Judiciário, a convite da ministra do STF Cármen Lúcia, citando o discurso de posse de Laurita Vaz na presidência do Superior Tribunal de Justiça: “Ninguém mais aguenta tanta desfaçatez, tanto desmando, tanta impunidade”.

A VOLTA DOS MILITARES

O Judiciário contribuiu para o retorno dos militares ao poder civil. A imprensa não atentou quando, em 2018, o então presidente do STF, Dias Toffoli, introduziu um general da reserva, Fernando Azevedo e Silva, futuro ministro da Defesa de Bolsonaro, em seu gabinete. A corte não reagiu, à exceção de Celso de Mello. Toffoli depois negou o golpe militar de 1964, dizendo ter sido um “movimento”. Queria ser o interlocutor entre a toga e a farda.

Jair Bolsonaro forjou um discurso anticorrupção, ofereceu o Ministério da Justiça ao ex-juiz Sergio Moro. Depois, esvaziou o órgão e o ministro. Para comandar o Ministério Público da União, escolheu Augusto Aras, que pregava a “democracia militar” e não foi questionado. Aras militarizou o Ministério Público e desmontou a Lava Jato.

“A imprensa nunca incomodou minimamente o Poder Judiciário”, diz Ana Lúcia Amaral, procuradora regional da República aposentada. Ela diz que os jornais publicavam manchetes sobre a Lava Jato “porque era material fácil, farto e escandaloso”.

Ana Lúcia entende que “o Judiciário se mostrou disfuncional na medida em que desobedecer a lei nunca foi desestimulado por uma clara e boa decisão judicial”. “Autoridades conseguiram, por décadas, escapar das barras dos tribunais por força do foro especial por prerrogativa de função e chicanas que procrastinam o processo até a prescrição”, afirma.

Com o STF sob pressão, o Judiciário se blindou no “inquérito do fim do mundo”, ela diz. Em 2019, incomodado por reportagens da revista Crusoé sobre supostas movimentações atípicas em contas vinculadas a advogadas mulheres de ministros do STF, Toffoli instaurou, via portaria, um inquérito para apurar fake news e divulgação de mensagens que atentem contra a honra dos integrantes do tribunal.

Escolheu o ministro Alexandre de Moraes para a tarefa. Numa típica medida de períodos de exceção, o juiz que se considera alvo de críticas conduz a ação policial e é o julgador final da causa.

No âmbito do inquérito, Moraes determinou a retirada do ar de reportagem e nota da revista Crusoé e do site O Antagonista que ligavam Toffoli à empreiteira Odebrecht. Depois o ministro revogou a própria decisão.

Diante dos ataques à medida e ao inquérito como um todo, a advocacia aderiu em peso a um jantar em homenagem a Toffoli. A liberdade de expressão ficou fora do cardápio.

DECLÍNIO DO CNJ

Em 1987, Márcio Thomaz Bastos, então presidente da OAB, sugeriu um controle externo ao Judiciário. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) só seriam instalados em 2005. Até 2009, o CNMP não havia feito nenhuma inspeção.

O CNJ foi desidratado por alguns ministros do STF que presidiram o órgão. Gilmar Mendes convidou especialistas para auxiliar nas pesquisas. Esse grupo foi esvaziado pelo sucessor, Cezar Peluso.

Ricardo Lewandowski abriu o CNJ ao lobby das associações de juízes. Engavetou denúncias e dividiu o colegiado. No primeiro dia como presidente do conselho, Toffoli mudou o regimento, eliminou as travas contra nomeação de parentes e o uso do CNJ como trampolim político. Favoreceu amigos e revogou a quarentena de juízes auxiliares. A imprensa não viu.

Em 2016, publiquei na Folha que, dos 33 ministros do STJ, dez têm filhos ou mulheres advogados que defendem interesses de clientes com processos em tramitação na Corte. Entre eles, os ex-corregedores Francisco Falcão, João Otávio de Noronha e Humberto Martins. O corregedor Noronha blindou juízes e engavetou, por dois anos, relatórios de inspeções em tribunais. A mídia ignorou.

SIMBIOSE E HOLOFOTES

No governo Fernando Henrique Cardoso, imperava a “simbiose entre o Ministério Público e a imprensa”, teoria do procurador da República Luiz Francisco Fernandes de Souza. A imprensa recebia informações sobre investigações preliminares; o procurador juntava as reportagens nos inquéritos para pedir a quebra de sigilos.

O ex-chefe da Casa Civil José Dirceu foi um dos principais alvos do MP na gestão de Lula. No governo FHC, o objetivo de Luiz Francisco era perseguir o então secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge Caldas Pereira (o EJ). Luiz Francisco incluiu o CPF de um advogado no pedido de quebra de sigilo da mulher de EJ. Pretendia investigar o aluguel da sede da campanha de FHC. Apuração feita pela Folha revelou que nada foi provado contra EJ.

Essa simbiose MP/imprensa floresceu na gestão do procurador-geral da República Geraldo Brindeiro. Seu sucessor, Cláudio Fonteles, nomeado por Lula, apagou os holofotes de Luiz Francisco. “Buscar furo é papel da mídia, não da Procuradoria”, disse.

No início da era Lula, os procuradores diminuíram o ímpeto acusatório. “O governo do PT negocia mais e a gestão dos recursos públicos melhorou”, alegou Luiz Francisco.

Dias Toffoli, quando subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil na gestão de José Dirceu, exercia advocacia privada e representava clientes do PT. A OAB não viu motivo para impedimento.

Há muitos outros casos de relações conflituosas. Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato, pretendia montar empresa de palestras sem aparecer como sócio. Em 2007, o CNMP censurou o procurador Guilherme Schelb, que atuava com Luiz Francisco, por tentar obter recursos de empresas para um projeto pessoal.

MENSALÕES ESQUECIDOS

O escândalo do mensalão petista teve ampla repercussão social, ameaçou derrubar o governo Lula em 2005 e levou à prisão políticos e empresários. Esquemas semelhantes, contudo, receberam tratamento bem diverso. Na ocasião, a mídia não se interessou pelo mensalão tucano. Os valores eram inferiores, mas o operador era o mesmo, Marcos Valério.

A investigação sobre o mensalinho petista (que acusou de corrupção o empresário Joesley Batista e o então governador mineiro Fernando Pimentel, do PT) naufragou por erros do MP na apresentação da denúncia.

A mídia não deu importância ao mensalão da toga, que revelei na Folha: desvio, por magistrados, de cerca de R$ 20 milhões da Fundação Habitacional do Exército (FHE). Durante dez anos, dirigentes de uma associação de juízes firmaram contratos fictícios com dados cadastrais de magistrados que desconheciam a fraude. Houve apenas censura e advertência contra eles.

A impunidade gerou a extinção de grandes operações. O juiz federal Fausto De Sanctis diz que esse processo começou em 2011, com a anulação, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), da Castelo de Areia, “que nada mais era do que a Lava Jato antecipada”.

O juiz federal Danilo Fontenelle, do Ceará, afirma que outro grande baque “foi o STF voltar ao entendimento de que a prisão após confirmação em segunda instância seria antecipação da pena”. “Daí”, diz ele, “os advogados, que faziam colaborações premiadas pelos seus clientes, voltaram a apostar na prescrição”.

Em 2009, quando o STF decidiu pela primeira vez em sessão do plenário que um condenado em segunda instância da Justiça pode recorrer em liberdade, outros juízes de varas especializadas previram os efeitos.

“É um retrocesso. A sensação de impunidade vai aumentar”, disse Jorge Costa (juiz do mensalão em BH). “Estou me questionando se vale a pena dar impulso a ações penais em relação a crimes de colarinho branco já que, de antemão, sei que estão fadadas ao fracasso”, disse Sergio Moro, na ocasião.

Não surpreendeu a ampla cobertura à Lava Jato, às vezes de forma acrítica. Vislumbrou-se a possibilidade de a Justiça atingir suspeitos intocáveis. Moro anteviu outra simbiose ao analisar a operação italiana Mãos Limpas: “A opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo”.

DESAFOROS E INSULTOS

O debate polarizado desde o impeachment de Dilma Rousseff contaminou o Supremo. A nomeação de Kassio Nunes para a vaga de Celso de Mello, um substituto sabidamente contra a Lava Jato, reforçou a previsão de que a Segunda Turma derreteria Moro e a força-tarefa.

As formalidades de boas maneiras e respeito foram esquecidas. No ano passado, a União foi condenada a indenizar Deltan após Gilmar chamar os procuradores da Lava Jato de “cretinos, desqualificados, covardes, gângsteres”. Em fevereiro deste ano, comparou a força-tarefa a um “esquadrão da morte”.

Atribui-se a indisposição do ministro do STF com o Ministério Público ao questionamento, pelo procurador Luiz Francisco, de 451 contratos, sem licitação, entre a AGU (Advocacia Geral da União), quando Gilmar era o titular do órgão (2000 a 2002), e o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), do qual é sócio. Subordinados da AGU frequentaram cursos naquela empresa privada à custa do erário.

No início da Lava Jato, Celso de Mello, Gilmar e Lewandowski tentaram conter Moro, sob o argumento de que “prendia muito” e resistia a decisões superiores. Temiam “um novo De Sanctis”, juiz que desafiou Gilmar na Operação Satiagraha.

Em 2008, o doleiro Rubens Catenacci, condenado por Moro no caso Banestado, pedira a anulação da sentença, alegando parcialidade do então juiz. Gilmar criticou condutas “censuráveis” e “desastradas” de Moro, mas concluiu que “não se pode confundir excessos com parcialidade”. Depois, reviu essa avaliação. Disse que o tempo demonstrou “traços da realidade que antes não se evidenciava”.

Recentemente, no julgamento sobre a suspeição de Moro no caso do tríplex no Guarujá (SP), o caso do doleiro foi usado como precedente pela defesa de Lula. No voto-vista, Gilmar não revelou que o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) e o CNJ já haviam arquivado as acusações contra Moro com base nas denúncias de Catenacci.

Em março de 2016, o ex-PGR Claudio Fonteles recomendou moderação a procuradores da Lava Jato. Considerou “inadmissível (...) compelir testemunha, indiciado ou réu a prestar depoimento à margem do devido processo legal”.

Em 2019, Fonteles defendeu a “plena investigação” de mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil que indicavam colaboração de Moro e Deltan na Lava Jato: “O membro do MP não pode, por qualquer meio, mancomunar-se com o julgador”.

Naquele mesmo ano, revelei na Folha que o CNJ manteve sem julgamento, por mais de dois anos, recursos de reclamações disciplinares contra Moro que poderiam tê-lo afastado dos processos da Lava Jato.

CONTROLE FRÁGIL

Eis alguns outros exemplos da fragilidade dos controles, publicados na Folha e em meu blog Interesse Público:

1) Quando o CNJ foi criado, o holerite no TJ-MG era chamado de “salário-família”. Doze mulheres de desembargadores estavam na folha de pagamento, sem prestar concurso. Entre os primeiros aprovados em um concurso para novos juízes, 20 eram parentes de magistrados, incluindo duas filhas do então presidente do tribunal.

2) Acusado de vender sentença, o ministro do STJ Paulo Medina foi afastado do cargo pelo CNJ em 2010. Morreu de Covid, em abril deste ano, sem o caso ter sido julgado. Dois anos depois de seu afastamento, ele dirigiu uma mesa de debates no TJ-MG.

3) O juiz Danilo Campos foi o autor da primeira denúncia feita ao CNJ: acusou tráfico de influência na carreira da magistratura mineira. Em consequência, foi condenado pelo TJ-MG à pena de prisão, sob acusação da prática dos crimes de difamação e calúnia contra membros da comissão examinadora de um concurso público. A decisão acabou anulada pelo STJ.

4) Foi tardia a prisão do ex-juiz federal João Carlos da Rocha Mattos, acusado na Operação Anaconda, em 2003, de ser o mentor de um esquema de venda de sentenças na Justiça Federal. Trabalhava no escritório da organização criminosa que liderava o esquema um procurador que, em 1989, ajudou o juiz a enterrar o caso Cobrasma, mega fraude no mercado de ações.

5) Um ex-presidente do TJ-SP não recebia o presidente do CNJ. Eliana Calmon, corregedora-Geral da Justiça do órgão de 2010 a 2012, dizia que só conseguiria entrar no tribunal “quando o sargento Garcia prendesse o Zorro”. Investigava-se na época uma suposta folha de pagamento paralela, elaborada fora do tribunal, que favoreceria desembargadores.

6) Sucessivas chicanas retardaram as ações penais contra o juiz Nicolau dos Santos Neto, o ex-senador Luiz Estevão de Oliveira e os empresários Fábio Monteiro de Barros e José Eduardo Ferraz, denunciados por desvio de recursos na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo.

7) Em 2006, o TRF-3, por unanimidade, reformou sentença de absolvição e condenou Ferraz a 27 anos e oito meses de prisão. Na véspera, Ferraz desconstituíra o advogado, que continuou seu patrono em outros processos. Oito anos depois, seu novo advogado, o ex-ministro Sepúlveda Pertence, sustentou no STF cerceamento de defesa (ou seja, o réu não teria tido advogado no julgamento de 2006). Ferraz foi beneficiado por um empate, e a condenação foi anulada.

8) Dois ex-presidentes do TJ-BA, afastados pelo CNJ em decisão unânime por uma série de infrações, retornaram ao tribunal por liminar proferida por Lewandowski no recesso do STF. Foram recebidos por autoridades baianas com festa e foguetório.

9) Um ex-procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro recebia “mensalidade” do ex-governador Sergio Cabral, que financiou sua campanha para o cargo no MP.

10) Antes de se aposentar, Orlando Adão de Carvalho, ex-presidente do TJ-MG, transferiu de seu gabinete para o do filho, o desembargador Alexandre Victor de Carvalho, uma jovem advogada. Há indícios de que ela receberia seus proventos sem trabalhar. Suspeito de “rachar” parte do salário dela, o desembargador foi absolvido pelo TJ-MG. O CNJ arquivou o caso. Ele ainda é alvo de inquérito no STJ, suspeito de corrupção passiva. Denúncia do MPF acusa o desembargador de negociar a nomeação da mulher e do filho em cargos públicos (troca de favores) e de sugerir “rachadinhas”.

Dezesseis anos depois, o CNJ volta ao começo: apura novas suspeitas de nepotismo no TJ-MG.

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