O maior vencedor do primeiro turno
Por Carlos Andreazza / O GLOBO
Foi reeleita a engenharia de rapto do Orçamento da União por meio do orçamento secreto. Foi reeleito o orçamento secreto – o maior vencedor do primeiro turno, instrumento do qual outras vitórias são tributárias. Não terá sido somente Bolsonaro o grande eleitor.
Reeleito o orçamento secreto, reelegeu-se o pior Parlamento da história. O pior e o mais rico, donde o mais independente.
De contrato assinado com a tinta do orçamento secreto, a sociedade de Bolsonaro com o consórcio parlamentar Lira/Nogueira triunfou. O presidente da Câmara encaminhou bem a sua reeleição ao comando da Casa.
Senado incluído, o Brasil terá um Parlamento eleito pelo tripé bolsonarismo, antilulopetismo e orçamento secreto. Será um Congresso de caráter sectário, com natureza fundamentalista, e de motor autoritário na distribuição orçamentária. Essa é, aliás, a conjunção que impulsiona a competitividade de Bolsonaro.
Reeleito o pior Parlamento da história; reeleito sobretudo pelo esquema do orçamento secreto; reeleita a estrutura que dá nova altitude a Bolsonaro.
Como é que o Supremo cassa agora o orçamento secreto? Omitiu-se com a plantação de que enfrentaria o tema – constitucional por excelência – depois das eleições. A matéria nunca admitiu cálculo político. Aí está. Agora, como é que o STF enfrenta o vencedor das eleições?
O vencedor das eleições, orçamento secreto, compôs um Congresso de governabilidade sem precedentes para Bolsonaro; Parlamento potencialmente hostil a um governo Lula. Não será barato reverter esse perfil. O cenário e a história autorizam supor Lula se comprometendo com o orçamento secreto. Como é que, uma vez eleito, ante esse Congresso, sustentaria a promessa de acabar com o bicho? Não lhe seria mais fácil, presidente do governo sob o qual houve o mensalão, viabilizar a relação abraçando o troço?
O mundo real se impõe.
O pior Parlamento da história se reelegeu. A votação legislativa foi dura sobre a presença da pandemia nas urnas. Quase nenhuma. A formação do Congresso consagrou o desejo de esquecimento da peste. Votou-se por ignorar perversidades; para informar que a página já fora virada. Rejeição mesmo à memória da pandemia. É o efeito São Clemente, simbolizado pela derrota eleitoral do ex-ministro da Saúde Mandetta.
O efeito São Clemente: a escola de samba que, em abril de 2022, sob ambiente festivo em que as pessoas se consideravam livres do vírus e celebravam essa superação, pretendeu homenagear Paulo Gustavo, morto pela peste, mas que acabou rebaixada por entregar à passarela uma lembrança de dor.
Foi eleito Pazuello.
O eleitor não votou – não decisivamente – condicionado pela barbárie expressa em quase 700 mil mortos. A pandemia apareceu na forma de seus impactos sobre a economia. Bolsonaro, tardiamente, parece ter entendido. Disse que percebe um desejo de mudança, mas que esse ímpeto pode produzir resposta ainda pior. Contra a associação à tragédia econômica, acirrará o investimento no sentimento antilulopetista.
Lula passou o primeiro turno inteiro sem entender que não venceria apenas com discurso de defesa da democracia contra o cramulhão. A campanha toda sem apresentar programa econômico, fiado no “farei porque fiz no passado” – como se o que fez há vinte anos, na hipótese de bom, não tivesse produzido também o período Dilma.
Se havia alguma chance de Lula vencer em primeiro turno, e havia, estava em falar aos exaustos de Bolsonaro que nunca lhe votaram; e que mesmo não gostam do ex-presidente. Precisará cuidar disso doravante. Será mais difícil. O pior parlamento da história se reelegeu, tem bilhão para empenhar, é bolsonarista e está solto. Chancelado pelas urnas e capitalizado pelo orçamento secreto, virá ainda mais agressivo, senhor do cofre. E seus expoentes no Nordeste, lá onde as emendas têm especial efeito, ficaram livres para usar a força econômica a favor de Bolsonaro.
O presidente precisará dessa ajuda; de que seus liras radicalizem os costumes que fundamentam a sociedade. A porteira arrombada pela PEC Kamikaze dá passagem. A ladeira é íngreme, mas escalável. Bolsonaro vai passar nova boiada de bondades.
Bolsonaro pode ampliar a vantagem no Centro-Sul, e terá a máquina ora liberada dos reeleitos Zema e Castro. Pode crescer em São Paulo. Tal esforço será insuficiente se não tirar algo da frente que Lula abriu no Nordeste. Não convém subestimar as chances de fazê-lo. Veja-se o que indica a eleição de Rogério Marinho – ex-ministro da pasta-eixo do orçamento secreto – ao Senado pelo Rio Grande do Norte. Ganhou com tranquilidade num estado em que Lula venceu firmemente.
Fato: os parlamentares bolsonaristas eleitos no Nordeste não precisam mais temer a força do ex-presidente contra seus planos eleitorais. Poderão prometer, orçamento secreto em mãos, por Bolsonaro. O jogo está aberto.
Congresso Nacional estará à direita e mais radicalizado com bolsonaristas
Por Daniel Weterman e Lauriberto Pompeu / O ESTADÃO
BRASÍLIA – A eleição deste domingo,2, transformou o Congresso Nacional no mais conservador da história do período democrático do País, considerando o resultado obtido nos principais colégios eleitorais. Os partidos de direita, com predomínio das legendas do Centrão, conquistaram a maioria das cadeiras da Câmara e do Senado em disputa.
O PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, elegeu as maiores bancadas para a Câmara em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O levantamento leva em conta o resultado parcial de mais de 90% das urnas apuradas. Os números finais ainda podem mudar com a totalização final do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em São Paulo, o PL de Bolsonaro ficou com 17 cadeiras na Câmara, enquanto a federação PT-PCdoB-PV, que apoia o petista Luiz Inácio Lula da Silva, conquistou 11 vagas. No total, São Paulo tem 70 deputados federais. Guilherme Boulos (PSOL) foi o campeão do Estado, com 1.001.453 votos. Ficou na frente do deputado Eduardo Bolsonaro (PL), filho do presidente, que chegou em terceiro lugar, com 731.574 votos. Também reeleita, a deputada Carla Zambelli (PL) ocupou a segunda posição, com 935.290 votos.
O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles também conquistou uma vaga na Câmara, sendo o quarto mais votado entre os paulistas, com 638.427 votos. Rosângela Moro (União Brasil), mulher de Sérgio Moro, foi eleita com 217 mil votos. O ex-ministro da Justiça, por sua vez, terá uma cadeira no Senado.
Candidatos de direita que romperam com Bolsonaro tiveram dificuldades – o próprio Moro se reaproximou do presidente na campanha. Joice Hasselmann (PSDB-SP), mulher mais votada em 2018 para deputada federal, teve apenas 13.413 votos e perdeu o cargo.
O PL de Bolsonaro se tornou o principal partido do Centrão e campeão de cadeiras na eleição para deputado federal no Rio, com 11 das 46 vagas em disputa. O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello (PL) foi o segundo deputado federal mais bem votado no Rio, com 205 mil votos. Talíria Petrone (PSOL), por sua vez, foi a melhor colocada na esquerda.
Em Minas, o vereador Nikolas Ferreira (PL) teve 1.396.211 de votos e caminha para ser o deputado federal mais votado do País, com 93,54% das urnas apuradas no Estado.
Na prática, a vitória de políticos do Republicanos, do PP e do União Brasil fortalece a bancada da direita no Congresso. O PP do presidente da Câmara, Arthur Lira (AL), e o União Brasil, presidido pelo deputado Luciano Bivar (PE), negociam a formação de um único partido.
A configuração que sai das urnas aumenta a chance de o grupo ficar com os cargos mais estratégicos da Câmara a partir de 2023, incluindo a presidência da Casa, ampliando o domínio sobre a elaboração do Orçamento e a votação dos projetos de lei. Lira é candidato a novo mandato à frente da Câmara. Em Alagoas, com 74,74% das seções finalizadas, ele era o candidato mais votado.
A eleição para o Senado também foi marcada pela vitória de aliados de Bolsonaro e políticos que colaram seus nomes à figura do presidente. Os partidos de direita emplacaram 19 nomes.
Além de Moro, Damares Alves (Republicanos-DF), Marcos Pontes (PL), Tereza Cristina (PP) e Rogério Marinho (PL-RN) foram eleitos senadores. O vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS) também conquistou uma vaga no Senado e Magno Malta (PL-ES) retornará à Casa.
ONDA DISRUPTIVA DE 2018 ATUA EM 2022 SOB TEMOR DE VITÓRIA DE LULA
William Waack / O ESTADÃO
Um pedaço da onda disruptiva de 2018 ainda atuou em 2022. Sobretudo o temor de uma vitória na corrida presidencial do PT em primeiro turno “mobilizou” um voto importante para o bolsonarismo na reta final da eleição.
Não se pode perder de vista o regionalismo na política brasileira, e ele atuou com força no domingo. Especialmente nos principais colégios eleitorais. No Nordeste, onde a vantagem geral do PT nunca foi colocada em dúvida, o que as urnas produziram estava bem dentro das previsões.
Os principais “desequilíbrios” vieram de São Paulo e Rio, pois o Sul também se comportou dentro do esperado. Inclusive com a desmontagem do PSDB, um fenômeno de proporções nacionais e que vem na esteira de uma longa decadência.
O que o tucanato significou de contraponto e antagonismo ao petismo, no plano do embate político “intelectual”, foi substituído agora por uma tendência conservadora mal definida mas que possui raízes sociais e regionais importantíssimas.
Lula continua o favorito para vencer o segundo turno, mas ainda que o favoritismo nas pesquisas se confirme, a disputa será bem mais difícil do que ele e o PT antecipavam. E o governo, mais difícil ainda. Há dúvidas sinceras se Lula entendeu o quanto a posição do chefe do Executivo se tornou mais vulnerável.
E quanto a agitação petista em círculos intelectuais e artísticos está longe da realidade. O Brasil mudou bastante nos últimos 20 anos. Mesmo se for eleito, Lula ainda parece lutando a guerra de ontem.
Há chance concreta de Bolsonaro se reeleger
Por Thomas Traumann / O GLOBO
Os perto de 6 milhões de votos de vantagem do ex-presidente Lula sobre o presidente Jair Bolsonaro na votação deste domingo apontam para um segundo turno renhido. Nunca houve viradas nas seis disputas presidenciais que foram para o segundo turno, mas a distância menor que as projeções das empresas de pesquisa impede uma afirmação categórica.
Das 108 ocasiões desde 1998 em que as disputas para governador foram para tira-teimas, o candidato que chegou na frente foi o vencedor em 77. Das 31 viradas, 17 ocorreram quando os dois candidatos terminaram a menos de cinco pontos percentuais dos votos um do outro. Somente em cinco casos ocorreram viradas com uma diferença acima de dez pontos percentuais.
O timing é de Bolsonaro, que venceu em 13 estados, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e toda a região Sul e Centro-Oeste, contrariando não apenas as empresas de pesquisa, mas até seus próprios líderes no Congresso que quase o abandonaram no meio da disputa. A possibilidade de reeleição de Bolsonaro, tratada com desdém desde a desastrosa gestão na pandemia de Covid-19, tornou-se real.
Bolsonaro chegou aos 50 milhões de votos sem firmar um compromisso de campanha para além de um genérico “mais do mesmo” sobre o quem vem fazendo no governo. Considerado há meses um caso perdido pelos agentes econômicos, ele não recebeu nenhuma cobrança sobre seus planos, se é que eles existiam. Assim como em 2018, a campanha de Bolsonaro foi um misto de antipetismo e voluntarismo messiânico. Deu mais certo do que os próprios bolsonaristas esperavam.
Dada a polarização entre os dois lados, é natural esperar que as próximas semanas sejam tensas. Depois do debate na TV Globo na semana passada, é impossível imaginar que um encontro público entre Bolsonaro e Lula seja civilizado.
O segundo turno serve para impor realismo à campanha do PT. Estrategicamente, o campo lulista hesitou em apresentar detalhes de seu programa econômico, uma forma de ter espaço para futuras negociações. Para todas as perguntas delicadas, Lula tinha como resposta pronta a frase de que seus governos anteriores eram garantia suficiente sobre suas intenções.
Lula supôs que, ao trazer o ex-adversário Geraldo Alckmin como candidato a vice, daria um sinal suficiente para atrair o voto moderado, especialmente no Estado de São Paulo, onde o PT só venceu as eleições de 2002. Não foi o suficiente.
O PT também sofrerá com um Congresso eleito nitidamente bolsonarista, que trabalhará contra a eleição de Lula sem ter a pressão de buscar votos para si mesmo. Mesmo que vença em 30 de outubro, Lula terá uma Câmara dos Deputados muito menos ansiosa por negociar com ele do que quando foi eleito em 2002 e 2006.
A dinâmica do segundo turno, portanto, será de um Bolsonaro ainda mais agressivo e de um Lula pressionado a buscar votos no centro e na centro-direita para vencer. É um cenário com que o PT não trabalhava. Detalhes do programa econômico que o comando lulista imaginava poder adiar para novembro ou dezembro terão de ser debatidos e revelados em poucas semanas.
Não haverá lua de mel. Lula inicia a campanha do segundo turno sob a pressão de precisar ceder mais do que gostaria e antes do que imaginava.
Thomas Traumann é jornalista e pesquisador da FGV/DAPP
O PLEBISCITO SOBRE LULA E BOLSONARO DIVIDE O BRASIL
Vera Rosa / O ESTADÃO
Diz o dicionário político que segundo turno é outra eleição. Mas em um País no qual a campanha virou uma guerra, com um duelo interminável entre um presidente da República e um ex-presidente, o que vamos assistir nesse novo round é um plebiscito sobre o governo de Jair Bolsonaro (PL) e os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A contagem dos votos provocou nervosismo na campanha de Lula, que tinha a esperança de liquidar a fatura no primeiro turno. Bolsonaro, porém, se mostrou competitivo para a segunda rodada da disputa, assustando o desafiante.
Lula só passou à frente de Bolsonaro às 20h05, com 70% das urnas apuradas. O petista precisa dos votos de quem escolheu Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT) no primeiro turno, além de se aproximar da Faria Lima e da classe média.
O movimento do ex-presidente será para conquistar o apoio do PSDB e do MDB, que, apesar de dividididos, sustentaram a candidatura de Simone até agora. Apesar da derrota, a senadora sai do embate maior do que entrou e Lula pretende pôr na mesa a oferta de um ministério para ela, caso vença a eleição.
O PSD de Gilberto Kassab, por sua vez, pode ser o “fiel da balança” para avançar no jogo do segundo turno, ainda que nos bastidores. Kassab será procurado novamente pela cúpula petista, mas a eleição em São Paulo – onde o ex-ministro Tarcísio de Freitas enfrentará o ex-prefeito Fernando Haddad no segundo turno – é um complicador para a aliança do PSD com Lula. O vice de Tarcísio ao Palácio dos Bandeirantes é do partido de Kassab.
A alta abstenção é apontada pela equipe de Lula como um dos motivos que o prejudicaram. Não foi só: o bolsonarismo mostrou força em São Paulo e também em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, os três maiores colégios eleitorais do Brasil. O mapa que sai das urnas mostra uma configuração política conservadora para o Congresso de 2023.
Até mesmo aliados do presidente se supreenderam com o resultado das urnas. O núcleo político da campanha avalia, porém, que Jair precisa aposentar o Bolsonaro beligerante de hoje para conquistar novos eleitores.
O problema é que há uma fratura exposta no comitê da reeleição. Uma ala, liderada pelo vereador Carlos Bolsonaro, filho 02, acha que o presidente deve manter o atual estilo: ser o porta-voz do gabinete do ódio e falar para a sua própria “bolha”. A outra, comandada pelo Centrão, defende um freio de arrumação no discurso do candidato.
Bolsonaro não ouve ninguém além dos filhos e os números do primeiro turno deram mais poder ao gabinete do ódio. Ele já se desentendeu até mesmo com o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, que sempre discordou de sua estratégia de lançar suspeitas sobre as urnas eletrônicas. Pressionado por Bolsonaro, no entanto, o PL encomendou uma auditoria sobre o sistema eleitoral, ao custo de R$ 1,3 milhão.
O desfecho do segundo turno é imprevisível, mesmo porque ninguém pode duvidar do poder da caneta de Bolsonaro e da capacidade do PT de escorregar em cascas de banana nos próximos 28 dias. Além disso, em política, o “Sobrenatural de Almeida” está sempre à espreita...