Eleição municipal será novo teste para democracia e sistema de votação, avaliam organizações
Joelmir Tavares / FOLHA DE SP
A eleição de 2024 será "a de 2022 com roupa nova" e poderá servir de laboratório para a de 2026, na avaliação de organizações da sociedade civil que atuam em defesa do sistema eletrônico de votação, contra a desinformação e pelo engajamento democrático. O clima é de apreensão.
No cenário traçado pelas entidades, o pleito municipal será um teste, depois de uma eleição presidencial marcada por intensa polarização entre Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL) e tumultuada com desconfiança sobre as urnas eletrônicas, violência política e contestação do resultado.
Os alertas são lançados por grupos como Pacto pela Democracia (rede com 200 organizações), Transparência Eleitoral Brasil e Politize!. Além de apontar problemas e gargalos, as entidades têm iniciativas para qualificar o debate e colaborar com autoridades, mas admitem dificuldades.
Representantes de movimentos que intensificaram suas atividades em 2022 —diante das dúvidas inverídicas lançadas por Bolsonaro e das ameaças dele de não reconhecer o resultado e tramar um golpe de Estado— afirmam que o sistema saiu fragilizado.
O ex-presidente ficou inelegível após ser condenado por mentiras sobre o sistema de votação.
"O pleito deste ano acontece depois das eleições mais delicadas e decisivas para a democracia no Brasil, num contexto em que o ambiente segue muito imerso em desafios e ameaças", diz a coordenadora-executiva do Pacto pela Democracia, Flávia Pellegrino.
Uma das metas para 2024 é combater discursos de descredibilização das urnas eletrônicas.
Especialistas dizem que não tem se repetido a onda de mensagens sobre o assunto que inundou redes bolsonaristas no ciclo eleitoral passado, mas acreditam que a pauta possa ser retomada caso os pleitos municipais repitam a polarização entre candidatos de Lula e Bolsonaro e haja um acirramento.
O que preocupa é a infiltração do ceticismo em parte da sociedade, como vêm mostrando levantamentos.
Segundo pesquisa da empresa Quaest feita entre os dias 2 e 6 deste mês, 35% dos brasileiros concordam que as urnas foram fraudadas em 2022 para favorecer Lula. Apesar do índice elevado, a maioria da população (56%) discorda dessa afirmação, e 1% não opinou.
"Temos visto dados estarrecedores", diz Flávia. "A pergunta é como essa nova realidade vai ser mobilizada no pleito municipal. Isso ainda não está claro", segue a jornalista e mestre em ciência política, citando a "ascensão da extrema direita e do campo antidemocrático no país".
A ideia de que os resultados eleitorais possam não ser legítimos acaba minando, aos poucos, a confiança nas instituições e no processo de escolha dos governantes, analisa ela. "Ter discursos infundados ecoando de maneira tão ampla é perigoso para a democracia. Reverter isso é complexo e não existe bala de prata."
Para Ana Claudia Santano, coordenadora da Transparência Eleitoral, o resgate da confiança nas urnas é uma tarefa pendente para 2024 e que precisa estar no horizonte de 2026.
Ela afirma que é preciso pensar em alternativas porque campanhas de esclarecimento conduzidas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) têm tido alcance limitado, já que a Justiça Eleitoral "perdeu capacidade de comunicação com todos os grupos sociais" e sofre resistência de certos segmentos.
"Ainda não nos sentimos confortáveis para tirar do radar a questão da desconfiança na urna", diz a professora de direito e ativista. "Por causa da politização do tema, penso que campanhas de informação devam ser perenes, porque não é fácil reduzir essa lacuna de uma hora para outra."
Para Flávia, do Pacto, o 8 de janeiro foi resultado de uma série de medidas para corroer as bases da democracia e evidenciou o alto risco de radicalização na sociedade brasileira. Ela afirma que o esforço maior agora deve ser para garantir continuidade e estabilidade democráticas no país.
"Nós vivemos nos últimos anos um ataque explícito e sistemático às instituições", diz.
"Alguns dos maiores alvos do bolsonarismo foram justamente o sistema eleitoral e o TSE. O processo de desinformação foi a grande aposta para a tentativa de virada de mesa e de manutenção do Bolsonaro no poder, semeando descrédito para que pudesse questionar o resultado e mobilizar apoio popular."
Na visão de Luiza Wosgrau Câmara, da Politize!, o problema é mais amplo. "Hoje há uma parcela grande da população que descredibiliza e tem uma visão estigmatizada da política. A tecnologia trouxe desafios ao colocar as pessoas em bolhas informacionais e sob vieses de confirmação", diz.
A organização da qual Luiza é porta-voz atua justamente no ambiente digital para difundir conteúdos didáticos e diz ter projetos com oito governos estaduais para levar conhecimento a professores e estudantes —já atingiu 180 mil adolescentes e adultos com oficinas de educação política.
Segundo ela, a intenção é fazer com que os eleitores votem "de forma consciente e bem informados".
A Politize! também fez campanhas nos últimos meses para incentivar a retirada e regularização do título eleitoral. Em São Paulo, uma coalizão com a participação do Instituto Lamparina e do labExperimental distribuiu sorvetes em cartórios eleitorais para estimular o alistamento de jovens.
Também na trincheira de medidas práticas, o Pacto pela Democracia vem fazendo nos últimos meses reuniões com os parceiros. Ficou decidido que as prioridades para este ano são o combate à desinformação e a recuperação da credibilidade das urnas, pensando num ciclo contínuo até 2026.
Segundo Flávia, a ordem é usar o pleito para reforçar que o sistema é seguro e traçar estratégias que cheguem até a próxima eleição geral. Pelo plano, será estabelecida uma agenda de trabalho "coordenada, criativa e bastante assertiva", em colaboração também com a Justiça Eleitoral.
Outro pleito é reivindicar espaços permanentes de participação da sociedade civil no TSE, para que a interlocução seja mantida mesmo com mudanças no comando da corte. O tribunal, que a partir de junho será presidido pela ministra Cármen Lúcia, terá Kassio Nunes Marques à sua frente em 2026.
A Transparência Eleitoral terá em algumas cidades missões de observadores, formadas por acadêmicos e voluntários, para monitorar a integridades das eleições e a prática de ilícitos como compra de voto. A porta-voz do grupo lembra que 2020 marcou o prenúncio da narrativa crítica às urnas.
"Ao olharmos de perto o que se passará neste ano, podemos ver o que nos espera em 2026 e atuar para evitar os piores cenários, mas estamos esperando algo tão desafiador quanto 2022", diz Ana Cláudia. "Os discursos mais extremistas não desapareceram, muito pelo contrário."
Adiar eleição abre precedente perigoso
Por Editorial / O GLOBO
Enquanto o Rio Grande do Sul conta mortes e prejuízos das enchentes que afetaram 90% de seus municípios, pode parecer prematuro discutir o adiamento das eleições para prefeito e vereador marcadas para 6 de outubro. Mas o debate é inexorável devido ao tempo exíguo para tomar as decisões. O calendário eleitoral já está aí. Em junho, começa a pré-campanha. No mês seguinte, entre 20 de julho e 5 de agosto, partidos e federações realizarão suas convenções. A propaganda começa em 16 de agosto.
Entre os políticos, não há consenso. “Ainda é um pouco cedo, mas também não vai poder retardar muito a discussão. Junho já é momento pré-eleitoral, e em julho se estabelecem as convenções”, afirmou ao GLOBO o governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB). Ele argumenta que a troca de governo nos municípios e o próprio debate eleitoral podem atrapalhar a reconstrução. O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), é mais reticente. Diz que um eventual adiamento precisa ser avaliado com critério, apenas quando tiver passado o auge da catástrofe e for possível avaliar seus impactos. O presidente do PL gaúcho, Giovani Cherini, defende o reagendamento do pleito para o primeiro semestre de 2025, depois que a população voltar para suas casas. Outras lideranças gaúchas são favoráveis ao adiamento argumentando que muitos locais de votação, como escolas, foram destruídos e que não há ambiente para a campanha eleitoral.
Não é possível ignorar a situação dos gaúchos. Mais de 600 mil moradores tiveram de deixar suas casas — muitas já nem existem. Quase 60 mil foram acolhidos em abrigos. Muitos saíram com a roupa do corpo. Perderam móveis, eletrodomésticos, documentos, tudo. Estradas e pontes estão destruídas, dificultando o transporte. Mesmo quem voltar depois de a água baixar levará meses para retomar a rotina. Sem falar no trauma psicológico.
Apesar de tudo isso, adiar uma eleição não é medida trivial. Caso envolva também a permanência dos atuais mandatários no cargo, abre precedente perigoso numa democracia, em que a duração fixa dos mandatos está na essência da alternância no poder. Para isso, seria necessário aprovar uma emenda à Constituição no Congresso, como foi feito durante a pandemia em 2020. Só que, naquele caso, foi adiada apenas a data do pleito, por algumas semanas. A única justificativa plausível para o adiamento desta vez seria a absoluta impossibilidade logística de realizá-lo. Mas parece evidente que quatro meses são tempo mais que suficiente para superar os atuais obstáculos.
Ao contrário do que argumentam os defensores do adiamento, a eleição municipal neste momento de reconstrução poderá ter papel importantíssimo para a população. Os candidatos precisarão apresentar objetivamente seus planos para que as cidades não voltem a ser arrasadas pelas águas, comprometendo-se com medidas robustas de adaptação, negligenciadas até agora.
A devastação mostrou que todos fracassaram. Será preciso falar também em reconstrução, reassentamentos, construção de moradias. A população ainda traumatizada pelo luto e pela destruição sem precedentes poderá usar esse debate fundamental para superá-los. O tempo é curto. O adiamento, pela essência do princípio democrático, deveria ser cogitado em último caso, apenas para as situações excepcionalíssimas em que persistir a impossibilidade prática de realizar o pleito.
Livro aponta principais motivos da derrota de Bolsonaro e razões para resiliência do bolsonarismo
Patrícia Campos Mello / FOLHA DE SP
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) "perdeu para ele mesmo" a eleição presidencial de 2022 porque pecou por um excesso de bolsonarismo e se limitou a cultivar seus mais fiéis eleitores. Mas Bolsonaro perdeu por muito pouco para o presidente Lula (PT) —menos de dois pontos percentuais dos votos válidos, a menor margem desde a redemocratização. E esse mesmo bolsonarismo que lhe custou votos se mantém uma potência para 2026.
Essas são algumas das conclusões do livro "Voto a Voto – Os Cinco Principais Motivos que Levaram Bolsonaro a Perder (por Pouco) a Eleição", da jornalista Maria Carolina Trevisan e do economista Maurício Moura, professor da Universidade George Washington.
A obra fala sobre os motivos que levaram Bolsonaro a ser o primeiro candidato à reeleição a perder o pleito.
As razões são conhecidas, mas o livro mostra, com pesquisas quantitativas e qualitativas, como cada um desses aspectos impactou as chances de reeleição do ex-mandatário.
A gestão da pandemia, a crise econômica, o contexto internacional de desgaste da antipolítica, a resistência das mulheres e a presença de um candidato de oposição forte fadaram o ex-presidente à derrota.
Em especial, a péssima atuação na Covid —o negacionismo científico, a postura antivacinas e a falta de empatia com os doentes, além de falhas logísticas— teve muito peso.
"A pandemia foi muito importante para a piora na avaliação do governo, tanto que um dado quantitativo muito forte é que a avaliação da gestão do governo federal do Bolsonaro em resposta à pandemia sempre foi pior do que a avaliação geral do governo. A gestão da pandemia trouxe a avaliação para baixo", diz Moura.
Outro erro grave, segundo os autores, foi deixar o auxílio emergencial ser descontinuado em 2021, sem perspectiva de quando, e se, seria retomado (acabou voltando). "O trauma causado pelo fim abrupto dessa política social causou uma memória ruim nos beneficiários que demoliu sua popularidade. Isso, junto com a inflação de alimentos e combustíveis constante no ano eleitoral de 2022, enterrou a sua possibilidade de vitória", diz o livro.
O excesso de bolsonarismo do ex-mandatário também desempenhou um papel. "Se tivesse gastado mais tempo, discurso e energia em temas relevantes para o país como economia e menos com temas irrelevantes como voto impresso, cloroquina, urna eletrônica, institutos de pesquisa, jornalistas e o seu ‘desempenho sexual’, o desfecho poderia ter sido outro."
Os autores apontam que, desde o início da campanha, as pesquisas já prenunciavam que Bolsonaro teria uma tarefa custosa. A partir de compilação de resultados eleitorais de dezenas de pleitos estaduais de 1998 a 2018 no Brasil, os autores afirmam que um nível de aprovação inferior a 40% coloca o governante em posição bastante vulnerável para vencer uma reeleição.
Bolsonaro, ao longo de seu mandato, tinha dois indicadores muito ruins —mais de 50% dos eleitores achavam que ele não merecia continuar na presidência e aproximadamente metade dos eleitores avaliavam o governo como ruim ou péssimo.
Trevisan e Moura ouvem cientistas políticos e examinam pesquisas para tentar vislumbrar o futuro do bolsonarismo e suas chances nas urnas daqui para a frente. O diagnóstico é auspicioso para os apoiadores do ex-presidente. Uma pesquisa exclusiva do Instituto Ideia, com 1.500 entrevistas, mostrou que em fevereiro de 2023 cerca de 41% dos eleitores "votariam com certeza" em Bolsonaro —na região Sul eram 50,3% e, no Centro-Oeste, 47,2%.
Segundo Moura, a resiliência do bolsonarismo hoje vem de três pilares: o antipetismo, os valores mais conservadores em relação a religião e segurança pública, e os diversos políticos que foram eleitos com a bandeira bolsonarista.
Segundo Trevisan, o bolsonarismo, mesmo com seu principal líder inelegível (até 2030), continua forte. "Está enraizado e tem um núcleo ativo. Segue se baseando nos mesmos mecanismos que o fizeram crescer: espalha fake news e sabe usar o ambiente digital, fomenta uma base radical fiel que se reconhece, cria um ambiente de caos e se vende como única solução, opera no militarismo e nas pautas morais, e elegeu representantes para o Parlamento brasileiro."
Boa parte da fidelidade dos eleitores de Bolsonaro está ligada ao negacionismo eleitoral: 63% dos votantes bolsonaristas, ou 32,3% do total de eleitores, acreditam que Bolsonaro perdeu principalmente porque houve fraude.
A tese é mais forte entre aqueles com maior escolaridade (66,5%) e eleitores das regiões Sudeste (64,5%) e Norte (64,9%).
Segundo pesquisa de Moura, os potenciais herdeiros do bolsonarismo, hoje, são o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, o governador de Minas, Romeu Zema, e a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.
"Se a eleição fosse hoje teríamos um cenário muito semelhante ao que tivemos no segundo turno de 2022, um país dividido em que a vitória de um lado ou de outro seria na margem", diz. "Temos acompanhado no Brasil e outros países como os eleitos saem do pleito com o país dividido e têm muita dificuldade de aumentar sua popularidade; hoje, no mundo, pouquíssimos chefes de estado têm mais de 60% de aprovação, a maioria fica entre 40% e 50%."
Eleições 2024: Bolsonaro x Lula vai além da capital e pode alterar mapa político da Grande São Paulo
Por Juliano Galisi e Karina Ferreira / O ESTADÃO DE SP
A polarização entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) terá impacto nas eleições de 2024 na Grande São Paulo e influenciará uma mudança no mapa político da região, para além dos limites da capital paulista. Enquanto o PT quer retomar o espaço no comando das cidades e o PL pretende aproveitar o capital político do seu principal nome, partidos como MDB, PSD e União Brasil buscam ocupar o vácuo deixado pelo PSDB, que viu o perfil do seu eleitor mudar desde a chegada do bolsonarismo no jogo político.
O comando dos 39 municípios da região da Grande São Paulo costumava ser protagonizado por tucanos e petistas. Essa dinâmica mudou para o PT após 2014, com a crise na imagem da sigla decorrente das manifestações de rua e seguinte impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Em 2012, o partido elegeu prefeitos em dez cidades da região, enquanto no pleito seguinte só conseguiu manter uma prefeitura, a de Franco da Rocha. Nas últimas eleições municipais, em 2020, somente duas prefeituras, Mauá e Diadema, foram conquistadas pelos petistas.
O PSDB manteve a hegemonia, como partido com maior número de prefeituras na região. Contudo, a legenda sofre uma debandada de filiados, atraídos por siglas maiores e mais atrativas neste momento. Especialistas ouvidos pelo Estadão pontuam que a eleição de outubro será a primeira em que a força do apoio de Bolsonaro poderá se refletir nas urnas no âmbito municipal, e deve disputar o voto da direita, historicamente endereçado a partidos mais tradicionais no Estado.
Eleição municipal, política nacional
Para a professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Laboratório de Partidos, Eleições e Política Comparada (Lappcom), Mayra Goulart, as eleições municipais devem ser compreendidas como vias de mão dupla no que diz respeito aos interesses das siglas e dos candidatos. Enquanto os dirigentes de partidos nacionais agem para consolidar cabos eleitorais, lideranças locais pleiteiam grupos políticos capazes de fortalecer a votação e atender financeiramente as demandas da região.
“Os atores nacionais têm muito interesse e jogam muito pesado na atração dessas lideranças locais”, disse Mayra. A escolha de prefeitos e vereadores, segundo a pesquisadora, prepara o terreno para a eleição de deputados federais, na medida que mantém o vínculo de quem está lá em Brasília com suas bases. E é a eleição dos congressistas, segundo a legislação eleitoral, que determina o acesso a recursos dos Fundos Partidário e Eleitoral, o que faz com que a dinâmica nacional seja dependente do processo local.
A lógica se retroalimenta na medida em que os líderes regionais também buscam se coligar a grupos políticos robustos, o que pode tornar um candidato mais competitivo durante o período eleitoral. Além disso, uma vez à frente do Executivo municipal, estar filiado a um partido estruturado facilita o trânsito político do gestor. Isso pode ser útil na atração de investimentos e recursos para a cidade.
“Tem sim uma ‘caça’ dos caciques partidários nacionais para ter bons nomes, boas lideranças locais nos seus partidos. Mas há, sobretudo, a caça dos políticos locais por partidos que tenham e que estejam bem posicionados no acesso ao financiamento público de campanha”, afirmou Mayra.
Um levantamento exclusivo do Estadão com a série histórica de dados eleitorais na Grande São Paulo mostra que, desde 2000, as eleições municipais foram marcadas pelo predomínio das forças políticas do centro à direita. A legenda com a maior representatividade na região foi o PSDB.
Apesar de hegemônica, a sigla vem perdendo bases locais. Após a janela partidária deste ano, por exemplo, houve uma debandada de todos os integrantes da bancada do partido na Câmara Municipal de São Paulo. No cenário nacional, o esvaziamento se repete. O partido, que ocupou por mais de 20 anos a terceira posição no ranking de bancadas do Senado, hoje está em último lugar, com apenas uma cadeira na Casa.
“O PSDB é um partido que perdeu a capacidade de engajamento de suas bases porque o perfil do eleitor à direita mudou”, disse Mayra. Se antes a sigla era a principal força política da oposição aos governos federais do PT, o que tornava a legenda atrativa aos líderes locais que pleiteavam o eleitor antipetista, o perfil desse eleitor mudou a partir das eleições gerais de 2014 e com a ascensão da figura de Jair Bolsonaro.
Mayra pontua que os tucanos, que tinham diretrizes historicamente associadas ao centro e à esquerda, durante a década de 2010 também guinaram à direita. Mesmo assim, a sigla não conseguiu mais contemplar as reivindicações de um eleitorado que se reconfigurou. “A direita mais extrema, mais enfática nos termos de suas preferências políticas, começa a tomar o lugar da direita tradicional, ocupado pelo PSDB”, disse a cientista política.
Em termos de representatividade de governadores e congressistas eleitos no País, a crise no PSDB é sem precedentes. O principal entrave da legenda, entretanto, é de ordem identitária: se o partido guinar de vez à direita, se associará com o bolsonarismo, que é estranho aos seus valores históricos; por outro lado, se os tucanos adotarem posições mais enfáticas no campo progressista, podem não conseguir marcar posição contra o PT.
Manter-se ao centro, por sua vez, pode não ser o caminho para o PSDB. O impasse de identidade, agravado na última década, fez com que o vácuo de representatividade da sigla na Grande São Paulo fosse ocupado por novas legendas. PSD, MDB e União Brasil são as siglas que tendem a incorporar a maior parte do “espólio” de prefeituras originado com o declínio dos tucanos.
“São partidos que têm o perfil de favorecer essa dinâmica de autonomia relativa das lideranças locais. Eles não têm uma grande identificação no plano nacional, um discurso programático muito definido em termos ideológicos. Isso permite que eles transitem bem nessa dimensão local”, disse Mayra Goulart.
MDB na disputa da maior cidade do Brasil
O MDB é uma força política tradicional e com bases consolidadas em todo o País. Consultado pelo Estadão, o diretório estadual da sigla informou que, até o momento, articula 11 pré-campanhas a prefeito na Grande São Paulo. O foco da legenda na região será reeleger Ricardo Nunes na capital paulista, mantendo-se no comando da maior cidade do País por mais quatro anos.
A despeito da representatividade no território nacional, no Estado de São Paulo e na própria região metropolitana da capital, o partido nunca chegou ao comando do Executivo paulistano por meio do voto direto.
Último prefeito da sigla antes de Nunes, Mário Covas assumiu a Prefeitura em 1983, durante a ditadura militar, quando ainda vigorava a norma de os mandatários das capitais serem indicados pelos respectivos governadores. Covas foi indicado por Franco Montoro, governador paulista pelo MDB. Já Nunes, então vice-prefeito, assumiu a prefeitura em 2021, após o falecimento de Bruno Covas (PSDB), eleito no ano anterior.
Crescimento do PSD
O PSD surgiu em 2011 e se consolidou ao longo da última década como uma das principais legendas do País. Pesou a favor a direção de Gilberto Kassab, secretário de Relações Institucionais do governo de São Paulo. “O PSD hoje já se tornou o maior partido em número de prefeitos do Brasil”, disse o cientista político Antonio Lavareda.
Kassab não só é um articulador de destaque como é egresso da política paulista, uma das razões pelas quais o partido cresceu em todo o País – quase cinco vezes, segundo Lavareda –, e de forma ainda mais vertiginosa no Estado paulista. “O partido que tem mais prefeitos hoje, já sentados na cadeira, boa parte deles pré-candidatos à reeleição, dificilmente não terá um grande número de prefeitos reeleitos”, afirmou.
Segundo o diretório estadual do partido, pelo menos 16 pré-candidatos vão concorrer ao pleito de outubro para os cargos de prefeitos na Grande São Paulo.
Estreia do União Brasil
Quanto ao União Brasil, partido originado com a fusão entre o Democratas (DEM) e o Partido Social Liberal (PSL), em outubro de 2021, espera-se um “teste de fogo” nesta que será a primeira eleição com a nova configuração da sigla. A legenda historicamente se notabiliza pela capacidade de angariar lideranças locais, mantendo-se capilarizada nos rincões do País.
Para Antonio Lavareda, o grupo se expandiu para além da soma de forças entre DEM e PSL. “O partido cresceu com a adesão de prefeitos desde 2021″, disse. Para ele, a sigla pode se consolidar ainda mais nas eleições deste ano. Além de MDB, PSD e União, outras legendas correm por fora na região, como o PP e o Republicanos, que também se estruturou ao longo da última década e, hoje, abriga o governador do Estado, Tarcísio de Freitas.
PL de Valdemar
Se a hegemonia tucana na Grande São Paulo se deve ao PSDB ter sido, durante muito tempo, o principal polo da oposição aos governos petistas, espera-se que, neste ano, esse potencial de votos venha a ser explorado pelo PL. Em 2024, o bolsonarismo pode ter seu primeiro teste nas urnas em uma eleição municipal: desta vez, ao contrário do que ocorreu em 2020, em condições plenas e sem “asteriscos”.
Naquela eleição, Bolsonaro era presidente, mas já estava rompido com o PSL, sigla pela qual havia sido eleito em 2018, o que afetou as possibilidades do então mandatário influenciar nas escolas municipais pelo País. Mesmo se não estivesse de saída do partido, o PSL era gerido por Luciano Bivar, que não possuía o mesmo controle sob a própria legenda que Valdemar Costa Neto, presidente nacional do PL.
“O PL é comandado por um expert em política, profundo conhecedor e com muito controle da legenda”, explicou Lavareda. “É o típico animal político”, afirmou o analista. Segundo ele, o tato do cacique fará diferença na forma como o partido se valerá do capital político de seu principal quadro.
“Bolsonaro já estava às turras com o Luciano Bivar na campanha de 2020. Agora, não. O Valdemar, com muito tato, muito jeito, conseguiu controlar, digamos, os arroubos do ex-presidente e explorar o que de melhor ele tem a oferecer para o fortalecimento do partido.”
Desde fevereiro deste ano, a dupla Valdemar e Bolsonaro não pode se encontrar por conta de determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). Os dois são investigados por suposta tentativa de golpe de Estado e foram alvos da Operação Tempus Veritatis.
Segundo a professora Mayra Goulart, o que está em jogo para o PL é “o desafio de se institucionalizar”, transformando a presença de Bolsonaro em uma capilaridade nas prefeituras e câmaras municipais do País. O que pode atrapalhar esse objetivo é, ironicamente, o próprio bolsonarismo. “O partido fica entre mobilizar um discurso que é atraente, que pode ganhar voto no plano dos cidadãos, mas que pode dificultar o trânsito entre as elites políticas”, analisou a pesquisadora, que avalia Bolsonaro como “um jogador solitário” e que não tem compromisso com a construção de um partido, o oposto de Valdemar.
Forças à esquerda
Historicamente como força hegemônica na região, o PT tenta recuperar o protagonismo que teve antes da queda de Dilma. Neste ano, o partido que ficou atrás do PSDB, PL, PSD e Podemos, empatando com Republicanos nas eleições de 2020 em quantidade de prefeituras, concorre em quase metade dos municípios da Grande São Paulo, lançando pré-candidaturas em 17 cidades.
Uma dobradinha entre PT e PSOL garantiu o retorno de Marta Suplicy ao partido de Lula e a formação de uma chapa encabeçada pelo deputado federal Guilherme Boulos. Essa é a primeira vez que a sigla petista não lança candidatura própria na capital. A tendência, analisa Lavareda, é que a repercussão da campanha de Boulos na maior cidade do Brasil ajude a puxar para cima a votação de outros candidatos do PSOL.
Melhor rumo para novo TSE é o do comedimento
A partir do próximo mês, o Tribunal Superior Eleitoral terá uma nova composição, à qual caberá a tarefa mais imediata de supervisionar os pleitos municipais deste ano. É de imaginar que pode haver mudanças —em boa parte, desejáveis— na conduta da corte.
Alexandre de Moraes deixará a presidência do TSE e será substituído por Cármen Lúcia; Nunes Marques assumirá a vice-presidência; André Mendonça passará a integrar o colegiado, na condição de terceiro membro cativo do Supremo Tribunal Federal.
Isso significa que os dois ministros indicados por Jair Bolsonaro (PL) estarão com assento na cúpula da Justiça Eleitoral.
Não se pode afirmar, obviamente, que a corte se tornará bolsonarista —os magistrados nomeados pelo ex-presidente são apenas 2 dos 7 membros titulares. Mas parece razoável prognosticar um TSE menos beligerante em relação ao ex-presidente e seus aliados.
Em parte, isso ocorrerá por razões materiais. Restam apenas dois casos de alta voltagem a serem julgados, que são os pedidos de cassação dos mandatos dos senadores Jorge Seif (PL-SC) e Sergio Moro (União Brasil-PR).
A seguir, a mudança do perfil dos representantes do STF na corte eleitoral deverá pesar. Sai Moraes, aquele que os bolsonaristas consideram seu inimigo número 1, e entra em seu lugar uma juíza rigorosa, mas bem mais discreta e comedida. Nunes Marques e Mendonça, mesmo que não tivessem sido indicados por Bolsonaro, são considerados de tendência garantista.
Uma redução do protagonismo e do intervencionismo do TSE seria positiva. A democracia brasileira enfrentou recentemente uma pressão golpista e foi bem-sucedida. A cúpula do Judiciário teve papel importante na defesa das instituições, ao traçar limites e mirar indivíduos e grupos que extrapolaram no extremismo.
Desde que Bolsonaro foi derrotado nas urnas e tornado inelegível, porém, os riscos foram significativamente reduzidos. A Procuradoria-Geral da República, que se tornara um órgão omisso no governo anterior, voltou a atuar normalmente —ao menos nessa seara.
As heterodoxias emergenciais adotadas pelas cortes não mais se justificam. A credibilidade da Justiça e a própria pacificação do país requerem um Judiciário mais autocontido e menos censório.
No caso do TSE, essa tarefa é ainda mais delicada, dado que o tribunal tem o poder não apenas de julgar condutas pretéritas mas também o de regular os pleitos, criando as normas necessárias quando a lei não as prevê. Há que tomar cuidado especialmente aí.
O objetivo primeiro e inafastável da Justiça Eleitoral é fazer cumprir a vontade dos eleitores, não substituí-los nem tutelá-los.