A guerra dos trouxas - Fernão Lara Mesquita, O Estado de S.Paulo
Pobreza: teu nome é privilegiatura.
Desigualdade de renda: teu nome é privilegiatura.
Favela: teu nome é privilegiatura.
Colapso do sistema de saúde: teu nome é privilegiatura...
A lista poderia ir longe. Todo mundo sabe onde sobra o dinheiro que falta em todos os outros lugares do Brasil.
O que mais mata nesta epidemia, é bom não esquecer, é a falta de hospitais, equipamentos e testes. Na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos, onde quer que se olhe, com raríssimas exceções, é aí que mora o fantasma. No Brasil a comparação entre hospitais públicos e privados indica que o retardamento do início do tratamento está matando mais ainda. Era tal o medo do colapso do sistema de saúde - que, de resto, já era crônico - que o principal foco da campanha no início da epidemia do coronavírus foi: “Não vá para o hospital ao primeiro sintoma. Lá é o melhor lugar para você pegar o corona. Espere sintomas como febre e falta de ar”...
Passado o pico da epidemia nas classes mais altas, que importaram a doença para o Brasil, o resultado desse “erro de comunicação” aparece trágico na disparidade chocante dos números dos hospitais públicos e privados. O Sírio-Libanês, com mais de 300 casos tratados, só perdeu um paciente. O Einstein, com mais de 400, só perdeu um paciente. Nos hospitais públicos os tratamentos são basicamente os mesmos, mas “as pessoas estão chegando mortas ou quase mortas”. Existe a trágica exceção do Sancta Maggiore.
Dedicado exclusivamente a idosos, foi lá que morreu metade dos pacientes perdidos na cidade de São Paulo. Mas na rede pública o principal fator de perda de pacientes tem sido o atraso no início do tratamento. Aumentou a mortalidade até por outras causas, pois as pessoas estão esperando até ser tarde demais para procurar esses “antros de contaminação pela covid-19”.
A quarentena, sempre é bom lembrar, não evita definitivamente a contaminação nem “salva vidas” diretamente, ela apenas espalha esses eventos no tempo. O que ela evita, sim, é o colapso dos sistemas públicos de saúde e o flagrante dos responsáveis por ele. A epidemia mesmo só refluirá quando cumprir o seu ciclo, isto é, quando contaminar e imunizar mais da metade da população e os números de baixas aos hospitais e aos túmulos começarem a diminuir naturalmente.
O “outro lado” dessa epidemia é, porém, bem menos “democrático” que aquele que corre só por conta do vírus. E nele se embalam os mais variados tipos de delírio. Gente como o ex-senador Suplicy, representante talvez extremo de um grupo grande de nostálgicos do século 20, está até feliz. Nunca viu o Estado tão perto de sustentar todo mundo do nada como ele sempre sonhou. Há um mal disfarçado tom de comemoração também em círculos engajados chiques que saúdam “a desaceleração de que a humanidade estava precisando”. Ninguém sintetizou melhor que Luiz Felipe Pondé em artigo para a Folha de ontem: “Perguntar por que os pobres não fazem quarentena é perguntar por que não comem bolo, já que não têm pão” - o que põe esses governadores que ameaçam “prender e arrebentar”, mais aquela imprensa que se alinha automaticamente com toda e qualquer multa ou tapa na orelha mais forte da “autoridade” contra os seus leitores no papel das nossas Marias Antonietas.
A quarentena, para todos os efeitos eleitorais, seja como for, é jogo feito. Bolsonaro está “de mãos lavadas” da responsabilidade para a qual, diga-se de passagem, ele não tem alternativa que não seja temerária; os governadores vivem o seu momento de onipotência e o lulopetismo olha de fora, esfregando as mãos, o circo pegar fogo.
O problema é como sair vivo dela e da maior recessão que o mundo já viu. Os novos miseráveis do Brasil não estão em nenhum mapa e, portanto, não dão matéria. E intraprivilegiatura tudo vai na santa paz de sempre. Enquanto “esquerda” e “direita” se esbofeteavam passou o 1.º round da desidratação das reformas onde a dificuldade sempre foi identificar quem - governo ou oposição - esvaziou mais o balão do resgate do favelão nacional da miséria para que não murchasse o que mantém a privilegiatura pairando acima do que der e vier e, 2019 entrando, o aumento de 16,32% para toda a tchurma assinado pelo STF das lagostas e dos vinhos de “no mínimo quatro premiações internacionais” até hoje não revogados. E, já sob pandemia, tivemos a exclusão das reduções de salários do funcionalismo do “Orçamento de Guerra” e o apedrejamento sumário do Plano Mansueto. Nada de vender estatais e fechar ralos históricos. Os heroicos governadores que acusam o povo indisciplinado pela pandemia aceitam, no máximo, um ano sem aumento para mandar suas dívidas inteiras de volta para o favelão nacional com a Lei de Responsabilidade Fiscal enfiada no mesmo saco. De passagem, liminar do condestável Lewandowski manda junto o cadáver da reforma trabalhista ao estabelecer que acordos entre patrões e empregados para driblar a crise só valem se assinados por sindicatos.
Resta-nos rezar pela cura. Mas esta interessa pouco à imprensa, como eu o convido a conferir lendo no www.vespeiro.com a matéria que este Estadão recusou uma semana atrás.
JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM
Na Venezuela, a fome faz um bairro inteiro romper a quarentena do coronavírus
Andrea Tosta, O Estado de S.Paulo
"Vão para suas casas", dizem em megafones os militares e policiais em Petare, a maior favela da Venezuela, impondo uma quarentena diante da disseminação do novo coronavírus que pessoas como a vendedora Gladys Rangel furam para travar sua guerra contra a fome. Cansada de fugir das forças de segurança, Gladys tira a máscara caseira e se senta em um canto, incapaz de encontrar alguém para comprar seus pacotinhos de pimenta e limão por 5 centavos de dólar.
"Se eu não morrer do vírus, estou morrendo de fome", disse a mulher de 57 anos. Gladys é uma das 400 mil pessoas deste bairro de Caracas, composto por um número interminável de casas com blocos e telhados de zinco que foram desordenadamente construídas nas montanhas desde meados do século passado. Aqui, água, gás doméstico e serviços de coleta de lixo são precários.
Os 50 centavos que ela ganhou foram suficientes para comprar mortadela e bananas. "Com isso eu como até amanhã e tenho de trabalhar. E essa é a rotina de todos os dias", lamenta. Ela descia as escadas estreitas para "lutar" nas ruas cheias de pedestres e multidões do início da manhã até a noite. Mas agora, em tempos de pandemia, essa efervescência é limitada a quatro horas por dia.
Agora, as lojas devem ser fechadas às 10 horas e as pessoas são expulsas dos espaços públicos. “Então não temos o direito de comprar comida?”, reclama uma jovem que estava deixando uma longa fila para comprar carne. "Onde quer que você veja, estamos ferrados, porque aqui... se você não trabalha, não come", diz Gladys.
A Venezuela teve sua economia reduzida para menos da metade em seis anos de recessão, preços elevados por conta da hiperinflação e uma moeda local depreciada. A quarentena coletiva aplicada desde 16 de março em Caracas veio de surpresa, segundo uma moradora. "Não imaginávamos que isso fosse tão forte", confessa Nora de Santana, manicure de 54 anos. Ela está sem clientes devido ao isolamento.
César Herrera, que ganha pouco mais de US$ 5 por mês como segurança em uma residência particular, sai todos os dias ao amanhecer, como milhares de pessoas em Petare e em outras áreas pobres do país. Com dois filhos pequenos, se recusa a se trancar em casa. "Não posso ficar comendo a pouca comida que tenho em casa. Tenho de produzir", justifica-se o vigilante de 36 anos.
O Compartilhar escritório exige novos hábitos e flexibilidade
O mercado de coworking cresceu 114% em 2017 e 52% em 2016, sempre na comparação com os anos anteriores, de acordo com o Censo Coworking Brasil.
Atualmente, no país, são 810 espaços —217 apenas na cidade de São Paulo, também segundo o levantamento.
Boa opção para autônomos e pequenas e médias empresas, o escritório compartilhado atraiu a atenção do paulistano Keiji Sakai, 51, quando ainda era diretor de tecnologia da B3 (antiga BMFBovespa) e procurava um lugar onde pudesse empreender.
Sakai achou um escritório "convencional" de nove metros quadrados em um prédio perto do metrô Chácara Klabin (zona sul da capital).
Reforma, instalação e decoração do imóvel custariam R$ 75 mil, além do aluguel, de R$ 1.800. Os valores altos levaram Sakai a pesquisar opções de coworking.
Ele escolheu um escritório fechado de nove metros quadrados na Regus, empresa internacional presente em 120 países. Sakai paga R$ 3.150 pelo pacote que inclui a sala e mais serviços coletivos.
PACOTES
A Folha passou três dias em três escritórios compartilhados para entender a experiência de Sakai. Há desde espaços com salas amplas sem divisões até opções de escritórios fechados.
Os coworkings contam também com cafés, refeitórios, espaços de descompressão (geralmente em terraços), salas de reunião e auditórios.
Apesar de oferecerem o mesmo produto, os espaços têm diferentes pacotes de serviços e de ambiente.
Os executivos, em geral, preferem os de estilo mais clássico, com decoração sóbria, que se parecem com centros empresariais, como os oferecidos por Regus, Vip Office e Global Hub.
"São ambientes mais formais", diz Adriana Souza, 51, sócia da agência de marketing Benjamin Comunicação.
A empresária teve uma experiência de seis meses em um coworking desse tipo. Na época, Souza contratou um pacote de serviços que incluía um escritório fechado para nove pessoas.
"Como trabalhei a vida toda em uma empresa familiar, onde todo o mundo se conhecia, o início foi um choque", diz. "Nos corredores, todo dia circulava uma cara nova. Isso me incomodava."
Ao longo do semestre, a empresa cresceu, e Souza teve de pedir à gestora do coworking para dobrar o tamanho das instalações de um dia para o outro.
"A flexibilidade de ter o espaço na medida do que você precisa, maior ou menor, é o ponto alto", afirma. Ao longo do tempo, porém, a conta ficou alta, e a empresa arrumou uma sede própria.
ADAPTAÇÃO
"Antes de existirem os coworkings, eu já trabalhava remotamente", conta Adalberto Araújo, 62, sócio da consultoria de TI Six Partners.
"Como executivo de multinacional, eu viajava muito e sempre trabalhei em business center de hotéis", diz.
Hoje, Araújo tem uma mesa fixa no coworking LinkU2, na avenida Paulista (região central de São Paulo).
Ele adora o ambiente descontraído do espaço, conferido principalmente pelos jovens trajando tênis e camiseta da empresa de bitcoin que fica a poucos metros da mesa dele. "Gosto do networking que o espaço possibilita."
Araújo carrega apenas o computador e um kit de adaptadores de tomada, diferentemente de sua colega de mesa, Sandra Alves, 44, da Conexão Travel, que ainda não se desapegou dos pertences do antigo escritório.
Ela carrega até um porta-lápis. "Só falta trazer um porta-retratos da família", brinca Araújo. Alves concorda que ainda não largou hábitos do passado. "Mas estou indo bem", afirma.
BAIXO CUSTO
Empreendedores e profissionais mais jovens costumam preferir espaços gratuitos para trabalhar. E não precisa nem ser um coworking formal.
Muitas vezes, basta um espaço com mesas, cadeiras e uma rede de wi-fi. Cafés e centros culturais se encaixam nesse perfil.
"Eu trabalho em casa, mas gosto de alternar o local de trabalho", afirma Felipe Moslavacz, 24, proprietário da Agência Motor, de marketing digital.
"Muitas vezes vou para um café da rede Starbucks, que é prático e tem até ar-condicionado."
Moslavacz não é o único. As unidades da rede ficavam tão cheias de clientes mergulhados em seus computadores que a empresa passou a restringir o número de horas de uso da internet às comandas de consumo.
Um dos espaços mais disputados pelo público em São Paulo é o Campus do Google, inaugurado há pouco mais de um ano, no bairro do Paraíso, na zona sul de São Paulo.
Trata-se do primeiro espaço da empresa na América Latina destinado a abrigar empreendedores e profissionais liberais interessados em ampliar a rede de contatos. Os dois últimos andares do prédio ficam abertos ao público.
O campus tem mesa de sinuca, pufes e bebedouros. O uso do espaço é gratuito, paga-se apenas o que for consumido no café do local. Mas o lugar tem o mesmo "problema" da rede Starbucks.
"Eu deixei de frequentar o Google porque ficou muito lotado", diz Moslavacz.
Hoje, quem chega depois das 11 horas da manhã dificilmente encontra um lugar para se instalar. E, quando acha, nem sempre é confortável.
Outro problema é ter de carregar o computador sempre que surge a necessidade de sair do lugar, seja para comer ou esticar as pernas.
Coreia do Norte não tem casos de coronavírus e intriga o mundo
Redação, O Estado de S.Paulo
PYONGYANG - O regime da Coreia do Norte voltou a afirmar no domingo, 12, que não há nenhum caso confirmado da covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, no país.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) confirmou que não havia casos confirmados do novo coronavírus na Coreia do Norte.
Segundo a OMS, centenas de pessoas testaram positivo para o novo coronavírus. Porém, já não há mais vestígios da covid-19 no país comandado por Kim Jong-un.
A pandemia já atingiu 180 países. O mundo tem mais de 1,8 milhão de casos confirmados e 113 mil mortes, segundo dados Universidade Johns Hopkins.
Em janeiro, logo após o vírus ser detectado, o país se isolou ainda mais do mundo ao anunciar que estava fechando as fronteiras com a China e adotando medidas rígidas de confinamentos aos seus cidadãos.
“Adotamos medidas preventivas e científicas como inspeções e quarentenas para todas as pessoas que chegavam ao país, desinfetamos os produtos, fechamos as fronteiras e bloqueamos todas as rotas marítimas e aéreas”, afirmou Pak Myong-su, diretor do Departamento de Epidemias da Coreia do Norte.
Por ser um regime autoritário sem a garantia da liberdade de expressão e de imprensa, é difícil saber o que ocorre dentro do país.
O comandante militar americano na Coreia do Sul, general Robert Abrams, declarou no mês passado que tinha “praticamente certeza” de que a Coreia do Norte registrava casos do vírus, apesar das negativas de Pyongyang. Especialistas também questionam as informações divulgadas pelo regime.
Na vizinha do Sul, o vírus atingiu 9.976 pessoas e matou 169 delas, apesar dos esforços do governo em combater a epidemia e testar em massa a população.
Enquanto a doença ainda se alastrava dentro da China, em fevereiro, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia anunciou que enviou à Coreia do Norte cerca de 1.500 kits de diagnóstico, após um pedido de Pyongyang dado “o risco existente da covid-19”.
Já a OMS pretende destinar US$ 900 mil ao país para ajudar na resposta ao vírus.
Especialistas afirmaram temer que uma epidemia da covid-19 no país possa causar grandes danos à população, que vive em situação de extrema pobreza. O próprio ditador Kim Jong-un advertiu no mês passado para “graves consequências” se o vírus entrasse no país./AFP e REUTERS
Exército põe 25 mil no combate à pandemia, mas não se livra da luta política

13 de abril de 2020 | 10h00
Caro leitor,
Vinte e cinco mil militares do Exército estão engajados no combate à covid-19. Pouco mais de duas semanas depois da montagem dos centros de coordenação operacionais, a Força deslocou seus homens para a desinfecção de locais públicos, o treinamento das defesas civis estaduais e a produção de máscaras e de medicamentos para a proteção de médicos e enfermeiros, além da construção de hospitais de campanha – só na área do Comando Militar do Sudeste (CMSE) serão 20.
“Em que pese toda a discussão política entre governadores, o presidente e os prefeitos, a instituição tem consciência de que antes de tudo esse é um drama humano. Trata-se de uma questão humanitária que atinge o Brasil inteiro”, afirmou um general ao explicar o desdobramento de tropas em todos os comandos de área do Exército para combater a covid-19.“O comando do Exército quer mostrar que faz seu trabalho sem olhar para os conflitos políticos.” Militares afirmam que pedidos de prefeitos e governadores estão sendo atendidos ainda que haja em Brasília quem trate a covid-19 pela alcunha de “gripezinha”.
Os atos e o discursos do Exército querem, pela enésima vez, mostrar à sociedade que a instituição cumpre seu dever, evitando se envolver em disputas políticas. “Mas é claro que há identificação com Bolsonaro. E essa identificação está no anticomunismo, pois sentimos que esses regimes não levaram nem ao desenvolvimento dos países nem à igualdade prometida”, afirmou um general. Além da identificação ideológica, o que determinou o apoio ao candidato foi o discurso antipetista, ainda mais depois dos escândalos de corrupção. “Conheço muito oficial que nunca havia votado nele apesar de Bolsonaro buscar a identificação com a classe militar.”
Ou seja, os generais admitem o apoio e a proximidade de visão com o atual governo, mas dizem que isso não contamina suas decisões nos quartéis, apesar da ida de dois integrantes do Alto Comando para o ministério de Bolsonaro – os generais Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos. O Exército, porém, terá sucesso ao tentar convencer as demais forças políticas e a sociedade em geral ao tentar dissociar sua imagem daquela do capitão Bolsonaro, o homem que passeia em meio ao povo apesar da necessidade de isolamento para deter a propagação do coronavírus?
“O militar que vai para o governo vai por sua conta e risco”, diz o general. Ou seja, quem deve prestar contas disso é quem está no governo. No entendimento do general, o bolsonarismo pode ter invadido grupos de WhatsApp e redes sociais de oficiais – inclusive os da ativa –, mas não existiria liderança militar, além dos generais da ativa, capaz de pôr a tropa em forma. "Comando de tropa só tem quem está na ativa. Santos Cruz não lidera ninguém. Santa Rosa não lidera ninguém. Não botam ninguém em forma. Santos Cruz não põe dez em forma e Santa Rosa não põe cinco", afirmou o general, referindo-se a dois generais que foram demitidos por Bolsonaro e hoje são críticos do governo.
“Quem manda no Exército é o Alto Comando. É quem tem a tropa na mão”, disse. Seria bom que civis e seus colegas – ele adverte –abrissem a obra O Soldado e o Estado, teoria política das relações entre civis e militares, de Samuel Huntington. Há uma geração inteira que abandonou os estudos sobre os militares e a República no País. Preconceito, tabu e desinteresse se somaram para criar mal-entendidos e ilusões entre militares e civis.
Se uma parte dos civis deve abandonar preconceitos e se interessar pela Defesa Nacional, uma parte dos militares deve deixar o bolsonarismo. Seria bom ouvir os conselhos do coronel Y. Em 1.º de dezembro de 1933, ele escreveu aos colegas, após as manobras das escolas das Armas: “Provavelmente, o chefe do governo provisório, quando procurava divisar nos mattos de Gericinó os executantes, sem poder vislumbrá-los, deve ter se lembrado que os officiaes que transbordam de ‘ideologia’ que se proclamam ‘authenticos’ e que julgam o Exército só comportar os diferentes ‘modelos’ de revolucionários (1922, 1924, 1926, 29130), não podiam achar-se naquelle ambiente profissional. Aonde elles andarão?”
O coronel Y era o futuro marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Castelo não via entre os militares profissionais de então os tenentes interventores sedentos de exercer o poder revolucionário. Hoje, enquanto os bolsonaristas fazem barulho nas redes sociais e alguns pedem até a volta da monarquia, um grupo silencioso e profissional de militares volta a pensar como Castelo Branco. É preciso preservar o profissionalismo e a distância do partidarismo nas Forças Armadas como única forma de escapar à sua débâcle profissional. Há generais cansados de serem usados como contraponto a Bolsonaro. Querem seguir com sua faina nos quartéis. Serão promovidos? É isso que o bolsonarismo espera deles? Qual o futuro do Exército profissional?
Esses militares se queixam do mundo civil e dos que desconhecem seus deveres e valores. Têm razão. Há muita gente que procura neles uma forma de criar oposições inexistentes entre governo e o Exército. Mas eles têm pouco interesse ainda em constatar as contaminações partidárias que se verificam entre seus colegas. E estão quase sempre prontos a repetir a versão de que o governo não lhes pertence, como se a presença maciça de militares na atual administração não fosse problema ou tema de seu interesse. O diabo é que o real, apesar da repulsa humana ao contingente, sempre aparece.
No primeiro capítulo de As Crises da República, Hannah Arendt lembra da aversão da razão à contingência. E cita Hegel: “A contemplação filosófica não tem outro intento que o de eliminar o incidental”. Ela segue afirmando que grande parte da teoria política de então tinha esse desejo por objetivo. “A falha de tal raciocínio começa em querer reduzir as escolhas a dilemas mutuamente exclusivos.” Arendt alerta que a realidade nunca se apresenta como algo tão simples, como premissas para conclusões lógicas. “O tipo de raciocínio que apresenta A e C como indesejáveis e assim se decide por B dificilmente serve a algum outro propósito que não o de desviar o juízo da infinidade de possibilidades reais.”
Arendt faz uma crítica ácida aos burocratas do governo americano de então: “O que os resolvedores de problemas têm a ver com os verdadeiros mentirosos é o desempenho em se livrarem dos fatos. Eles confiam de que isso seja possível. A verdade é que isso nunca pode ser feito, nem pela teoria, nem pela manipulação da opinião. Como se um fato pudesse ser removido do mundo, simplesmente, porque bastante gente acredita na sua não existência”. Arendt se referia às revelações contidas nos Pentagon Papers, e as mentiras contadas pelos governos americanos a respeito da guerra do Vietnã.
No Brasil, nenhum documento institucional sobre a guerra à covid-19 veio à luz. Nem seria preciso. Ao pôr 25 mil homens nas ruas para lutar contra a epidemia no País, o Exército mostra o que pensa sobre a ameaça. Sua mobilização se distancia do oportunismo político de alguns ou do fanatismo bolsonarista, que ontem distribuía nas redes sociais uma imagem de Cristo ao lado do presidente na qual dizia que seu Mito – e não a ciência – ia salvar o País.
Por mais que o desejo de uma parte dos oficiais seja de se distanciar da guerra política, suas ações terão sempre um significado. Ainda mais quando o presidente chama a covid-19 de “gripezinha” e se comporta como se ela de fato fosse isso. É que simplesmente não há como se livrar dos fatos. Ainda que Bolsonaro ou seus opositores não enxerguem quem são ou o que pensam os militares que se exercitam nos campos de treinamento de Gericinó.
A corrupção nos tempos da COVID-19
Ligia Maura Costa, Advogada e Professora Titular do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da FGV-EAESP. O ESTADO DE SP
O mundo enfrenta uma crise de saúde sem precedentes. Ela afeta os países desenvolvidos e em desenvolvimento, simultaneamente. Com a rápida disseminação do vírus SARS-CoV-2 e da sua doença a COVID-19, a saúde da população é a prioridade máxima de todos os governos. A origem do vírus nos leva à corrupção no comércio ilegal de animais selvagens, ocorrida num mercado em Wuhan, China. Como justificar a outorga recente de alvará sanitário ao dito mercado? Teriam os inspetores fechado os olhos, diante de uma volumosa propina? Um mundo atordoado assiste de perto os esforços para o combate ao vírus. Nessas circunstâncias, é fundamental que a corrupção não seja ignorada.
Presente em todos os lugares do mundo, a corrupção é especialmente grave no setor da saúde, pois impacta o fim da vida dos seres humanos. A corrupção persiste mesmo durante as pandemias. Infelizmente, alguns verão o surto pandêmico como uma oportunidade única de aproveitar as medidas emergenciais de combate à COVID-19 para abusar do poder público, em benefício de vultosos ganhos privados. Licitações fraudadas, cartéis, recebimento de propinas, desvio de materiais, tratamentos desnecessários e favorecimento de parentes e amigos são algumas ilustrações de condutas corruptas que apesar de serem alvos de leis anticorrupção, podem minar a resposta governamental à pandemia, privando milhares de pessoas dos necessários cuidados médicos. Nos tempos da COVID-19, cada uma dessas práticas corruptas representa um grande desafio à saúde.
No mundo todo, o setor da saúde é considerado como um dos principais alvos da corrupção. Em condições normais e não pandêmicas, a corrupção na saúde gera perdas anuais superiores a US$ 500 bilhões de dólares norte-americanos, segundo a Transparência Internacional*. No Brasil, se pode dizer que há um ambiente propício para a prática de atos de corrupção. Um dos maiores escândalos no país foi o da “Máfia dos Sanguessugas” em 2006, que fraudava a compra de ambulâncias nos municípios. Mais recente, um outro grande escândalo de corrupção foi o da “Máfia das Próteses”, que fraudava aquisições de próteses em especialidades como ortopedia, cardiologia, neurologia e odontologia. A corrupção na saúde pode acontecer nos diferentes elos da cadeia, dada a diversidade e multiplicidade dos atores: planos e sistemas de saúde, hospitais, fornecedores de suprimentos, pacientes, profissionais da saúde e governos, no caso do Brasil federal, estadual e municipal. Deste modo, o sistema de saúde abarca uma extensa sequência de relações entre os diferentes atores que são todas elas suscetíveis à corrupção. A complexidade da cadeia da saúde dificulta o combate à corrupção. De fato, não há uma abordagem única para combater a corrupção no setor da saúde.
Uma pandemia tão extraordinária como a da COVID-19 tende a expor ainda mais as falhas estruturais dos sistemas de saúde, com destaque para os riscos potenciais de práticas corruptas. O volume de recursos investidos na saúde em decorrência da COVID-19 faz com que o ambiente seja ainda mais suscetível à corrupção, perpetrada pelos agentes públicos e privados. A necessidade de uma resposta rápida no combate à doença e ao vírus e a disponibilidade de valores significativos só aumentam esses riscos. A corrupção na saúde traz, porém, um paradoxo: apesar dos altos montantes “perdidos” em razão da corrupção, o setor não conta com os necessários instrumentos de accountability e transparência. Os procedimentos anticorrupção precisam garantir que a ajuda governamental para combater o vírus e a doença seja bem utilizada e beneficie aqueles que mais precisam, a população mais pobre e carente. Auditorias realizadas durante a epidemia de Ebola na África demonstram porém que os procedimentos anticorrupção nas compras de materiais e equipamentos médicos foram totalmente ignorados.
A COVID-19 necessitará de importantes investimentos para as compras de suprimentos médicos e equipamentos de proteção individual, em especial para as unidades de terapia intensiva. O risco de práticas corruptas é exponencialmente mais elevado, diante da demanda pelos equipamentos e da sua escassez. É fundamental que os procedimentos de controle para práticas anticorrupção sejam utilizados e priorizados. Portanto, devem ser feitos esforços conjuntos de monitoramento e acompanhamento do uso desses recursos, a fim de garantir que eles não sejam desviados e representem indevidamente um ganho privado em detrimento do público. A trajetória do vírus SARS-CoV-2 e o potencial da COVID-19 tornam a agenda de integridade no setor da saúde ainda mais importante do que nunca. Parafraseando o clássico O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel Garcia Marques, bastou um interrogatório insidioso para comprovar uma vez mais que os sintomas da corrupção são os mesmos do vírus**.
* Corruption and the coronavirus, Transparency International, https://www.transparency.org/news/feature/corruption_and_the_coronavirus.
**** Gabriel García Márquez, O amor nos tempos do cólera, Ed. Record, 2009, pp. 81 e 82.