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Moraes diz que TSE tem ‘poder de polícia’ e que relatórios solicitados foram ‘oficiais e regulares’

Por Redação / O ESTADÃO DE SP

 

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse nesta terça-feira, 13, que todas as investigações conduzidas por ele seguiram as normais previstas em lei.

 

“Todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria Geral da República”, diz o comunicado.

 

Moraes divulgou a nota, por meio de seu gabinete, depois que o jornal Folha de S. Paulo publicou áudios e mensagens trocadas pelo ministro e por seus auxiliares. Os diálogos mostram que, enquanto presidiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro usou o setor de combate à desinformação da corte para produzir relatórios usados nos inquéritos das fake news e das milícias digitais.

 

As duas investigações, das milícias digitais e das fake news, tramitam no STF e não no TSE. Os inquéritos fecharam o cerco contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados. Ambos são conduzidos por Moraes.

 

As conversas mostram que Alexandre de Moraes fez requerimentos ao TSE por canais informais e pediu alterações em relatórios, como a inclusão de postagens específicas feitas por bolsonaristas.

 

O ministro afirma no comunicado divulgado nesta terça que, ao longo dos inquéritos, “diversas determinações, requisições e solicitações foram feitas a inúmeros órgãos”, inclusive ao TSE e que o tribunal, “no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à democracia e às instituições”.

 

A nota diz ainda que os relatórios solicitados pelo ministro “simplesmente descreviam as postagens ilícitas” nas redes sociais, “de maneira objetiva, em virtude de estarem diretamente ligadas às investigações de milícias digitais”, e que vários desses documentos foram enviados à Polícia Federal para aprofundar das investigações, “sempre com ciência à Procuradoria Geral da República”.

 

Leia a íntegra da nota divulgada pelo gabinete do ministro Alexandre de Moraes:

O gabinete do Ministro Alexandre de Moraes esclarece que, no curso das investigações do Inq 4781 (Fake News) e do Inq 4878 (milícias digitais), nos termos regimentais, diversas determinações, requisições e solicitações foram feitas a inúmeros órgãos, inclusive ao Tribunal Superior Eleitoral, que, no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à Democracia e às Instituições.

 

Os relatórios simplesmente descreviam as postagens ilícitas realizadas nas redes sociais, de maneira objetiva, em virtude de estarem diretamente ligadas às investigações de milícias digitais. Vários desses relatórios foram juntados nessas investigações e em outras conexas e enviadas à Polícia Federal para a continuidade das diligências necessárias, sempre com ciência à Procuradoria Geral da República.

 

Todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria Geral da República.

Moraes escolhia alvos e pedia ajustes em relatórios contra bolsonaristas, mostram mensagens

Fabio SerapiãoGlenn Greenwald / folha de sp

 

Conversas entre o gabinete de Alexandre de Moraes no STF (Supremo Tribunal Federal) e o órgão de combate à desinformação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), à época sob seu comando, indicam que em vários casos os alvos de investigação eram escolhidos pelo ministro ou por seu juiz assessor.

Os diálogos mostram também que os relatórios eram ajustados quando não ficavam a contento do gabinete do STF e, em alguns episódios, feitos sob medida para embasar uma ação pré-determinada, como multa ou bloqueio de contas e redes sociais.

As mensagens obtidas pela Folha foram trocadas entre Airton Vieira, juiz instrutor do gabinete de Moraes no STF, Marco Antônio Vargas, juiz auxiliar de Moraes durante sua presidência no TSE, e Eduardo Tagliaferro, então chefe da AEED (Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação), órgão que era subordinado a Moraes na corte eleitoral.

Procurado, o gabinete de Moraes disse que "todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República".

Tagliaferro afirmou que não se manifestará, mas que "cumpria todas as ordens que me eram dadas e não me recordo de ter cometido qualquer ilegalidade".

Em 6 dezembro de 2022, Airton Vieira enviou uma mensagem a Tagliaferro com um pedido específico e medida já determinada. "Vamos levantar todas essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes", escreveu às 18h11 daquele dia.

A solicitação foi acompanhada de um link do Twitter (agora X) da revista Oeste, conhecida por ser uma publicação de perfil de direita, antipetista e simpática ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). "Essa e outras do mesmo estilo", acrescentou Airton.

A continuação da conversa, já no dia 7 de dezembro, foi no grupo integrado pelos dois e Marco Antônio Martins Vargas, juiz auxiliar de Moraes no TSE.

Por volta das 17h, Tagliaferro avisou que na revista Oeste encontrou apenas "publicações jornalísticas", que "não estavam falando nada" e perguntou o que, então, ele deveria colocar no relatório.

Airton Vieira respondeu em seguida. "Use a sua criatividade… rsrsrs." E completou: "Pegue uma ou outra fala, opinião mais ácida e… O Ministro entendeu que está extrapolando com base naquilo que enviou… ".

"Vou dar um jeito rsrsrs", disse Tagliaferro.

Nos diálogos obtidos pela Folha, não fica claro quais materiais produzidos pela revista Oeste foram enviados pelo ministro e qual a destinação do relatório produzido por Tagliaferro.

Outro alvo escolhido por Moraes, indicam as mensagens, foi o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Conversas de novembro de 2022 entre Marco Antônio Vargas e Tagliaferro mostram o pedido para relacionar o filho de Jair Bolsonaro com o argentino Fernando Cerimedo.

Cerimedo entrou à época na mira de Moraes por replicar em suas lives a desinformação de que a eleição havia sido fraudada porque cinco modelos de urnas em que Lula (PT) recebeu mais votos não teriam sido submetidos aos testes de segurança.

"Ele quer pegar o Eduardo Bolsonaro", "A ligação do gringo com o Eduardo Bolsonaro", enviou o juiz em 4 de novembro, mesmo dia em que o argentino apresentou pela primeira vez a teoria conspiratória.

"Será que tem?", respondeu Tagliaferro. No dia seguinte pela manhã, em meio a conversas sobre outros relatórios contra outras pessoas, os dois voltaram ao tema.

"Tem um vídeo do Eduardo Bolsonaro com a bandeira do jornal que fez a live de ontem, conseguimos aí relacionar ele àquilo", mandou Tagliaferro. "Bom dia! Que beleza", respondeu o juiz auxiliar de Moraes.

Já no dia 6, o tema voltou a motivar a conversa entre os dois. Logo pela manhã, às 10h28, Tagliaferro disse a Marco Antônio Vargas que Cerimedo e "E Bolsonaro" são "amigos já faz 10 anos".

O chefe do combate à desinformação ainda brincou e disse que "se prender o EB, o Brasil entra em colapso".

"Esse é bandido", respondeu o juiz auxiliar de Moraes. Houve uma pausa da conversa e, por volta das 15h48, Tagliaferro enviou um relatório intitulado: TSE - Relatório - Análise Manifestações Antidemocráticas Fernando Cerimedo. "Veja se o ministro vai gostar", disse ele em outra mensagem.

O relatório tem prints dos vídeos de Cerimedo e usa fotos do argentino com Eduardo Bolsonaro para concluir pela relação dos dois há mais de dez anos.

"Ainda em análise, identificamos, conforme exposto, a ligação entre Eduardo Bolsonaro e o autor das lives, Fernando Cerimedo, o quais (sic) se conhecem há muitos anos", diz trecho da conclusão do relatório.

O juiz do TSE parece ter compartilhado o relatório com Moraes, indicam as mensagens, porque às 16h09 Marco Antônio Vargas reencaminhou para Tagliaferro uma mensagem com ordens do ministro sobre o que fazer com o relatório.

"VARGAS: pode bloquear os sites indicados AIRTON: na PET sobre isso vamos determinar o bloqueio também e o bloqueio das contas. Lembre-se sempre de dar ciência a PGR", diz a mensagem. Em seguida, o juiz do TSE diz a Tagliaferro: "Gostou e está disparando ordens".

Poucos minutos depois, Marco Antônio Vargas repassou ao assessor do TSE o pedido do ministro e disse: "puxou o fio da meada. Isso que importa".

Não fica claro nas conversas quais medidas foram tomadas por Moraes após o envio do relatório.

Tagliaferro, depois do envio, afirmou que "ele [Moraes] pode responsabilizar o EB pelas manifestações". "Já mandou preparar investigação nesse sentido no STF kkkkk", respondeu o juiz do TSE.

Como mostrou a Folha, em alguns casos, como o do jornalista bolsonarista Rodrigo Constantino, as mensagens indicam que Moraes pedia ajustes no relatório produzido pelo setor de combate à desinformação do TSE por meio de Airton Vieira.

Também no caso do jornalista, Airton Vieira pediu para Tagliaferro caprichar no documento.

"Eduardo, bloqueio e multa pelo STF (Rodrigo Constantino). Capriche no relatório, por favor. Rsrsrs. Aí, com ofício, via e-mail. Obrigado", disse o juiz em mensagem.

Ainda relacionado a Constantino, em 28 de dezembro de 2022 o juiz Airton Vieira pediu no grupo de WhatsApp modificações em um relatório cujos alvos eram ele, o influenciador Paulo Generoso e o ex-apresentador da Jovem Pan Paulo Figueiredo, neto do ditador João Batista Figueiredo.

"Eduardo, as postagens que temos do Paulo Generoso, do Paulo Figueiredo e do Constantino, o Ministro achou que estão muito voltadas para a pessoa dele, Ministro. Por favor, consiga para nós postagens desses três nas quais eles criticam as eleições, o TSE, defendam golpe, enfim, nesse sentido. Ficamos no aguardo. Obrigado."

Nas horas seguintes, eles trocaram áudios, mensagens e versões dos relatórios produzidos de acordo com as diretrizes indicadas.

O assessor do TSE, em um áudio, explicou que não seria possível modificar os relatórios uma vez que eles haviam sido enviados pelo sistema oficial do TSE.

Por volta das 22h20, Tagliaferro mandou novas versões e citou uma dificuldade na produção do documento. "Difícil achar publicação que ele não fale do Ministro, fiz as alterações solicitadas, veja se está melhor, por favor, abs", diz a mensagem.

Por volta das 23h, Tagliaferro falava com Airton Vieira sobre a dificuldade em alterar os documentos, por causa do registro no sistema eletrônico do TSE, e reportava a situação em uma conversa paralela com Marco Antônio Vargas, juiz instrutor de Moraes e seu superior no TSE.

"Se [for] o caso, Eduardo, altere a data dos três relatórios, fazendo novos… Ele quer porque quer que não conste postagens envolvendo o nome dele… Rsrsrs. Obrigado.", diz o texto enviado pelo juiz instrutor às 23h a Tagliaferro e reencaminhado por ele para Marco Antonio Vargas.

"Vou dar uma solução", respondeu Tagliaferro.

Em 1 de janeiro de 2023, Moraes voltou a cobrar diretamente a produção de relatório contra Constantino por meio de Airton Vieira e indicou a necessidade de vasculhar as redes do jornalista bolsonarista.

Às 23h33 daquele dia, o juiz instrutor do STF encaminhou para Tagliaferro o print de uma conversa com o ministro. Nela, Moraes envia uma postagem sobre Constantino estar criando novas páginas e pede: "Pedir amanhã para Eduardo vasculhar para aplicarmos multa".

Outro alvo escolhido pelo gabinete de Moraes foi a juíza Maria do Carmo Cardoso, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região —conhecida pela amizade com a família de Jair Bolsonaro.

Em 11 de dezembro de 2022, Marco Antônio Vargas mandou o perfil da juíza no site do TRF-1 e perguntou se Tagliaferro poderia "levantar as redes". "Se ela tiver, encontro", respondeu o assessor do TSE.

No dia seguinte, o juiz voltou ao tema e encaminhou dois prints de postagem da juíza que aparentam terem sido enviados por Moraes, uma vez que são acompanhados da ordem: "Prepare o relatório para abrirmos uma PET e oficiarmos o CNJ".

Uma das postagens é sobre Bolsonaro ter aberto o portão do Palácio do Alvorada para entrada de apoiadores. Na outra, ela critica a Copa do Mundo e afirma que a "seleção verdadeira está na frente dos quartéis". Trata-se de uma alusão aos acampamentos golpistas existente à época em frente a unidade militares, como o Quartel-General de Brasília.

Já no dia 13, Marco Antônio Vargas encaminhou uma cobrança que aparenta ser do ministro. "Prepararam relatório da Desembargadora Maria do Carmo?", diz a mensagem.

"Não te disse?", completou o juiz, ao que Tagliaferro respondeu: "tô finalizando." No fim da tarde do mesmo dia, por volta das 18h30, o assessor do TSE enviou o relatório sobre a juíza e informou que também iria encaminhá-lo ao STF.

 

Moraes reage após mensagens e diz que procedimentos foram 'oficiais e regulares'

Constança Rezende / FOLHA DE SP

 

O ministro Alexandre de Moraes afirmou nesta terça-feira (13) que todos os procedimentos que adotou foram "oficiais e regulares" e estão "devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República".

As declarações foram dadas por meio de nota de seu gabinete enviada pela assessoria de imprensa do STF após a Folha revelar que o gabinete de Moraes ordenou por mensagens e de forma não oficial a produção de relatórios pela Justiça Eleitoral para embasar decisões do próprio ministro contra bolsonaristas no inquérito das fake news durante e após as eleições de 2022.

Moraes declarou que, no curso das investigações dos inquéritos das fake news e das milícias digitais, nos termos regimentais, "diversas determinações, requisições e solicitações foram feitas a inúmeros órgãos".

"Inclusive ao Tribunal Superior Eleitoral, que, no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à democracia e às instituições", afirmou.

O ministro acrescentou que os relatórios "simplesmente descreviam as postagens ilícitas realizadas nas redes sociais, de maneira objetiva, em virtude de estarem diretamente ligadas às investigações de milícias digitais".

"Vários desses relatórios foram juntados nessas investigações e em outras conexas e enviadas à Polícia Federal para a continuidade das diligências necessárias, sempre com ciência à Procuradoria-Geral da República", disse.

Diálogos aos quais a reportagem teve acesso mostram como o setor de combate à desinformação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), presidido à época por Moraes, foi usado como um braço investigativo do gabinete do ministro no Supremo.

As mensagens revelam um fluxo fora do rito envolvendo os dois tribunais, tendo o órgão de combate à desinformação do TSE sido utilizado para investigar e abastecer um inquérito de outro tribunal, o STF, em assuntos relacionados ou não com a eleição daquele ano.

 

Moraes usou TSE fora do rito para investigar bolsonaristas no Supremo, revelam mensagens

Fabio Serapião  Glenn Greenwald / FOLHA DE SP

 

O gabinete de Alexandre de Moraes no STF ordenou por mensagens e de forma não oficial a produção de relatórios pela Justiça Eleitoral para embasar decisões do próprio ministro contra bolsonaristas no inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal durante e após as eleições de 2022.

Diálogos aos quais a reportagem teve acesso mostram como o setor de combate à desinformação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), presidido à época por Moraes, foi usado como um braço investigativo do gabinete do ministro no Supremo.

As mensagens revelam um fluxo fora do rito envolvendo os dois tribunais, tendo o órgão de combate à desinformação do TSE sido utilizado para investigar e abastecer um inquérito de outro tribunal, o STF, em assuntos relacionados ou não com a eleição daquele ano.

Folha teve acesso a mais de 6 gigabytes de mensagens e arquivos trocados via WhatsApp por auxiliares de Moraes, entre eles o seu principal assessor no STF, que ocupa até hoje o posto de juiz instrutor (espécie de auxiliar de Moraes no gabinete), e outros integrantes da sua equipe no TSE e no Supremo.

Em alguns momentos das conversas, assessores relataram irritação de Moraes com a demora no atendimento às suas ordens. "Vocês querem que eu faça o laudo?", consta em uma das reproduções de falas do ministro. "Ele cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia", comentou um dos assessores. "Ele tá bravo agora", disse outro.

O maior volume de mensagens com pedidos informais –todas no WhatsApp– envolveu o juiz instrutor Airton Vieira, assessor mais próximo de Moraes no STF, e Eduardo Tagliaferro, um perito criminal que à época chefiava a AEED (Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação) do TSE.

Tagliaferro deixou o cargo no TSE em maio de 2023, após ser preso sob suspeita de violência doméstica contra a sua esposa, em Caieiras (SP).

Procurado, o gabinete de Moraes inicialmente não se manifestou. Após a publicação da reportagem, em nota, disse que "todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República".

Tagliaferro afirmou que não se manifestará, mas que "cumpria todas as ordens que me eram dadas e não me recordo de ter cometido qualquer ilegalidade".

As mensagens mostram que Airton Vieira (STF) pedia informalmente via WhatsApp ao funcionário do TSE relatórios específicos contra aliados de Jair Bolsonaro (PL). Esses documentos eram enviados da Justiça Eleitoral para o inquérito das fake news, no STF.

Em nenhum dos casos aos quais a Folha teve acesso havia informação oficial de que esses relatórios tinham sido produzidos a pedido do ministro ou do seu gabinete do STF. Em alguns, aparecia que o relatório era "de ordem" do juiz auxiliar do TSE. Em outros, uma denúncia anônima.

As mensagens abrangem o período de agosto de 2022, já durante a campanha eleitoral, a maio de 2023.

Folha obteve o material com fontes que tiveram acesso a dados de um telefone que contém as mensagens, não decorrendo de interceptação ilegal ou acesso hacker.

O conjunto de diálogos mostra ao menos duas dezenas de casos em que o gabinete de Moraes no STF solicita de maneira extraoficial a produção de relatórios pelo TSE.

Ao menos parte desses documentos foi usada pelo ministro para embasar medidas criminais contra bolsonaristas, como cancelamento de passaportes, bloqueio de redes sociais e intimações para depoimento à Polícia Federal.

controverso inquérito das fake news, aberto em março de 2019, tornou-se um dos mais polêmicos em tramitação no Supremo, tendo sido usado por Moraes nos últimos anos para tomar decisões de ofício (sem provocação), sem participação do Ministério Público ou da Polícia Federal.

Dois pedidos de monitoramento e produção de relatórios sobre postagens do jornalista Rodrigo Constantino, apoiador de Bolsonaro, mostram como se dava a dinâmica.

Um deles ocorreu em 28 de dezembro de 2022, a quatro dias da posse de Lula, quando, em tese, já não havia mais motivo para o TSE atuar.

O juiz auxiliar do gabinete de Moraes no STF pergunta a Tagliaferro, do TSE, se ele pode falar. "Posso sim, posso sim, é por acaso [o caso] do Constantino?".

Depois desse áudio, os dois iniciam uma conversa sobre um pedido de Moraes para fazer relatórios a partir de publicações das redes de Constantino e do também bolsonarista Paulo Figueiredo, ex-apresentador da Jovem Pan e neto do ex-presidente João Batista Figueiredo, o último da ditadura militar.

À época, os dois entraram na mira de Moraes porque reverberaram em suas redes sociais ataques à lisura da eleição e a ministros do STF, além de incitar os militares contra o resultado das urnas.

Depois de Tagliaferro (TSE) encaminhar uma primeira versão do relatório sobre Constantino, Airton Vieira (STF) manda prints de postagens do jornalista e cobra a alteração do documento para inclusão de mais manifestações.

Pelas mensagens, fica claro que o pedido para produção do relatório partiu do próprio Moraes.

"Quem mandou isso aí, exatamente agora, foi o ministro e mandou dizendo: vocês querem que eu faça o laudo? Ele tá assim, ele cismou com isso aí. Como ele está esses dias sem sessão, ele está com tempo para ficar procurando", diz Airton Vieira em áudio enviado a Tagliaferro às 23h59 daquele dia.

"É melhor por [as postagens], alterar mais uma vez, aí satisfaz sua excelência", completa Vieira.

O assessor do TSE então responde, já na madrugada do dia 29 de dezembro, e afirma que o conteúdo do relatório enviado anteriormente já seria suficiente, mas que iria alterar o documento e incluir as postagens indicadas por Moraes por meio do juiz instrutor.

"Concordo com você, Eduardo [Tagliaferro]. Se for ficar procurando [postagens], vai encontrar, evidente. Mas como você disse, o que já tem é suficiente. Mas não adianta, ele [Moraes] cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia", responde o juiz Airton Vieira.

Dias depois dessa conversa, em 1º de janeiro de 2023, Airton Vieira manda para Tagliaferro cópia de duas decisões sigilosas de Moraes tomadas dentro do inquérito das fake news produzidas com base no relatório enviado de maneira supostamente espontânea.

"Trata-se de um ofício encaminhado pela Assessoria Especial de Desinformação Núcleo de Inteligência do Tribunal Superior Eleitoral", diz o início da decisão, sem citar que o material havia sido encomendado em seu nome pelo auxiliar em uma conversa via WhatsApp.

Entre as postagens de Constantino que entraram na mira estavam duas: "O que se passava na cabeça de Gilmar Mendes na festa da impunidade ontem, festejando a nomeação de Lula pelo sistema? Que será o primeiro aqui a ganhar um habeas corpus?". E a outra "é a primeira vez na história do crime organizado que as vítimas assistem, em tempo real, (sic) a quadrilha se preparando para lhes roubar, conhecem os criminosos, e não podem fazer nada porque a Justiça a quem poderiam recorrer faz parte da quadrilha."

Nas decisões, Moraes ordena a quebra de sigilo bancário de Constantino e Figueiredo, bem como o cancelamento de seus passaportes, bloqueio de suas redes sociais e intimações para que fossem ouvidos pela Polícia Federal.

Cerca de um mês antes, em 22 de novembro de 2022, outro pedido de Moraes sobre Constantino mostra o próprio ministro efetuando as solicitações que chegaram ao órgão de combate à desinformação do TSE.

Naquele dia, às 22h49, Airton Vieira manda o print de uma conversa com Moraes em um grupo do WhatsApp chamado Inquéritos.

A mensagem mostra o ministro enviando postagens de Constantino, uma delas questionando o fato de o partido de Bolsonaro, o PL, não ter feito um questionamento ao TSE —não fica claro sobre qual tema.

"Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse [Constantino] para vermos se dá para bloquear e prever multa", diz a mensagem de Moraes, cujos prints foram enviados a Eduardo Tagliaferro. "Já recebi" e "Está para derrubada", responde o assessor do TSE em duas mensagens.

Após pedir para Tagliaferro produzir um relatório "como de praxe", Airton Vieira e o assessor do TSE discutem sobre se as decisões seriam pelo STF ou pelo TSE.

Em um primeiro momento, Airton Vieira diz que o bloqueio seria dado pelo TSE e a multa pelo STF. Em poucos minutos, no entanto, ele informa que tudo será pelo STF e pede para Tagliaferro caprichar.

"Eduardo, bloqueio e multa pelo STF (Rodrigo Constantino). Capriche no relatório, por favor. Rsrsrs. Aí, com ofício, via e-mail. Obrigado", afirma.

Já na madrugada do dia 23, à 1h06, Tagliaferro envia o relatório atribuindo a informações recebidas de parceiros do setor de combate à desinformação.

"Através de nosso sistema de alertas e monitoramentos realizados por parceiros deste Tribunal, recebemos informações de frequentes postagens realizadas pelo perfil @Rconstantino, esse em uso na plataforma Twitter, no qual informam existir diversas postagens ofensivas contra as instituições, Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral", diz o documento.

Em uma outra conversa, no dia 4 de dezembro de 2022, os próprios assessores de Moraes manifestam receio sobre o modo não convencional que vinha sendo usado.

Às 12h daquele dia, Marco Antônio Vargas, juiz auxiliar de Moraes no TSE, pergunta a Tagliaferro: "Dr. Airton está te passando coisas no privado?".

Após o chefe do órgão de combate à desinformação responder que sim, o juiz do TSE faz uma brincadeira sobre a possibilidade de o modelo implicar em nulidade das provas. "Falha na prova. Vou impugnar", disse ele.

Tagliaferro então fala da sua apreensão com o modelo de envio de relatórios por meio do TSE a pedido de Airton Vieira. "Temos que tomar cuidado com essas coisas saindo pelo TSE. É seu nome", diz ele. Em seguida, chega a sugerir um possível caminho para "aliviar isso".

"Nem que crie um e-mail para enviar para nós uma denúncia."

A atuação de Moraes à frente do TSE e dos inquéritos no STF rendeu críticas e elogios ao longo do tempo. Um dos períodos mais tensos para o ministro ocorreu recentemente, em abril, quando Elon Musk passou a contestar as decisões do magistrado brasileiro.

Neste contexto, uma comissão do Congresso dos EUA publicou uma série de decisões sigilosas de Moraes sobre a suspensão ou remoção de perfis nas redes sociais.

Com base nesse material, a Folha revelou naquele mesmo mês de abril que o órgão do TSE de enfrentamento à desinformação havia ajudado a turbinar inquéritos do STF. O que não se sabia, no entanto, é que o grupo produzia esses relatórios a pedido do próprio gabinete de Moraes, o que agora é possível saber com base nas mensagens.

O inquérito das fake news foi aberto em março de 2019, logo nos primeiros meses do governo Bolsonaro, por ordem do ministro Dias Toffoli, que indicou Moraes como relator.

O objetivo, divulgou o STF à época, era "apurar fatos e infrações relativas a notícias fraudulentas (fake news) e ameaças veiculadas na Internet que têm como alvo a Corte, seus ministros e familiares".

Desde o início, quando censurou a revista Crusoé, o inquérito tem sido alvo de críticas por juristas, mas foi considerado constitucional pelo plenário do STF, em junho de 2020.

A PGR, ainda sob Raquel Dodge, pediu mais de uma vez o arquivamento do caso. Na gestão de Augusto Aras, a Procuradoria defendeu sua participação no inquérito, que deveria mirar apenas fatos relacionados a garantia da segurança dos integrantes do tribunal.

 

Regra para presentes a autoridades não pode depender do bom senso

Por Editorial / O GLOBO

 

Se prevalecesse o bom senso, não seriam necessárias regras para regular o destino de presentes valiosos recebidos por autoridades. É evidente que a intenção não é presentear o indivíduo, mas sim o cargo que ele ocupa. Portanto joias e outros objetos de valor deveriam se destinar ao patrimônio público. Não foi essa, porém, a decisão tomada na semana passada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) num caso envolvendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O tribunal determinou que Lula não será obrigado a devolver um relógio de ouro e prata avaliado em R$ 60 mil, recebido em 2005 nas comemorações em Paris do Ano do Brasil na França.

 

A decisão chamou a atenção por contrastar com o que o próprio TCU estabelecera no ano passado ao julgar o caso de joias e presentes recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro dos governos da Arábia Saudita e de outros países. Por unanimidade, o plenário do tribunal determinou que ele devolvesse os presentes, alguns dos quais haviam sido postos à venda no exterior.

 

A decisão do TCU mobilizou o entorno de Bolsonaro a tentar recomprar relógios e outras joias vendidos nos Estados Unidos. O episódio levou a Polícia Federal (PF) a indiciá-lo por peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro, em inquérito que tramita no Supremo sob a presidência do ministro Alexandre de Moraes. Agora a defesa de Bolsonaro não perdeu a oportunidade de pedir tratamento idêntico ao dado pelo TCU ao relógio de Lula — e deverá usar a decisão para tentar deter as investigações.

 

No entender do TCU, porém, os casos são distintos. A decisão sobre Bolsonaro se baseou num acórdão emitido pelo tribunal em 2016 estabelecendo normas para o recebimento de presentes por autoridade. Elas lhes reservam o direito a manter apenas bens considerados “personalíssimos”. Em seu voto, o relator do processo, ministro Antonio Anastasia, argumentou que a regra não poderia retroagir a 2005, ano em que Lula ganhou o relógio. No final, prevaleceu a interpretação do ministro Jorge Oliveira, segundo a qual a legislação não estipula um critério para distinguir os bens de caráter “personalíssimo”, e não cabe ao TCU estipulá-lo, mas sim ao Congresso.

 

Num país em que é comum a confusão entre as esferas pública e privada, é preciso haver regras objetivas para que tais situações não estejam sujeitas a interpretações convenientes aos poderosos da ocasião. Se a regra do TCU não se mostra objetiva na prática, é preciso torná-la mais clara, e o Congresso faria bem aprovando legislação que dirimisse a questão. Não pode haver a percepção de tratamento diferente no que se refere a presentes recebidos pela Presidência. É arriscado apostar no bom senso das autoridades.

TSE julga governador bolsonarista ameaçado com 3 pareceres pró-cassação

Por Rafael Moraes Moura— Brasília / O GLOBO

 

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve julgar nesta terça-feira (13) uma ação que pode resultar na cassação do governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro, e na convocação de novas eleições no Estado.

 

Nos bastidores da Corte Eleitoral, o caso é considerado grave devido às provas de abuso de poder político e econômico apresentadas pelos adversários – tanto que os três processos que tramitam no TSE contra Denarium têm pareceres do Ministério Público Eleitoral (MPE) a favor da cassação do governador.

 

No caso que será levado a julgamento hoje à noite, a coligação da ex-prefeita de Boa Vista Teresa Surita (MDB) acusa Denarium de turbinar gastos com programas sociais em pleno ano eleitoral e utilizar a máquina do Estado para garantir a sua reeleição, por meio da distribuição de cestas básicas e reforma na casa de eleitores.

 

O governador é alvo de três ações (movidas pela coligação de Teresa e pelos diretórios estaduais do MDB e do Avante) que pedem a cassação do seu mandato. Em todas as três, ele já foi cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Roraima (TRE-RR), o que o levou a recorrer ao TSE para tentar se manter no cargo.

 

O MP Eleitoral propôs ao TSE a análise conjunta das três ações, mas a relatora do caso, ministra Isabel Gallotti, integrante da bancada conservadora da Corte, decidiu levar a julgamento apenas a ação movida pela coligação de Teresa Surita, ex-mulher do ex-senador Romero Jucá (MDB-RR), que é a mais ampla de todas e incorpora episódios investigados nos outros dois processos.

 

Por isso, o julgamento dessa ação é considerado o mais abrangente de todos, por reunir o maior número de provas – e podendo encerrar a discussão já agora.

 

As acusações contra o governador

 

Denarium é acusado pela adversária de repaginar o programa “Cesta da Família” em pleno ano eleitoral, com distribuição de cestas básicas ou de um cartão com crédito mensal de R$ 200 – criando, na prática, um novo programa social em pleno calendário eleitoral, o que é proibido pela Lei das Eleições.

 

O programa é resultado da fusão de outras duas iniciativas, o que fez o número de beneficiários saltar de 10 mil para 50 mil famílias em ano eleitoral — atingindo em torno de 150 mil pessoas num estado com população de 636 mil.

 

“Na sociedade, as ações assistencialistas geram um sentido profundo de gratidão entre parcela que delas usufrui e o gestor público, pois representam um alento para a privação de bens e serviços a que são submetidos diariamente”, aponta o vice-procurador-geral eleitoral, Alexandre Espinosa Bravo Barbosa, em parecer enviado ao TSE em maio deste ano.

“Porém, ainda que presente tal circunstância extraordinária, em hipótese alguma é permitido o uso de programa assistencial como subterfúgio para promoção política pessoal, desvirtuando a finalidade estritamente assistencial.”

 

O governador também é investigado pela Justiça Eleitoral por lançar em plano eleitoral o programa “Morar Melhor”, que previa a reforma na residência de moradores do Estado, mesmo sem ter uma lei específica de criação da iniciativa. O projeto de lei que institui formalmente o programa só foi encaminhado pela própria administração Denarium à Assembleia Legislativa de Roraima em janeiro de 2023, ou seja, após as eleições.

 

Segundo o MP Eleitoral, o programa acabou expandido, com “o objetivo de alcançar até 10.000 reformas no ano de 2022, havendo um claro e evidente desequilíbrio na competição eleitoral, caso pensemos em 10 mil famílias sendo atingidas em um estado com a extensão de Roraima com a reforma ou a esperança de uma reforma, caso houvesse reeleição”.

 

O MP Eleitoral ainda viu abuso de poder político e econômico de Denarium na decisão do governo de destinar R$ 70 milhões a 12 municípios do Estado, um valor que “extrapolou toda e qualquer outra medida já empregada durante os três primeiros anos de mandato”.

 

Para efeito de comparação, o MP Eleitoral aponta que, no ano anterior, o governo destinou R$ 168,1 mil aos municípios do Estado para o enfrentamento de situações de emergência e calamidade em virtude das fortes chuvas na região. Enquanto o governo estadual despejava recursos nos municípios, as redes sociais de prefeituras e prefeitos beneficiados com a verba milionária exaltavam a figura do governador.

 

PT erradicado’

Denarium se notabilizou na última campanha eleitoral pelo discurso bolsonarista e antipetista, como expôs em uma live gravada em outubro de 2022 ao lado de Pablo Marçal, dizendo que o PT “foi erradicado” no Estado de Roraima.

 

“Roraima é o único Estado do Brasil que não tem nenhum vereador do PT, nenhum prefeito do PT, nenhum deputado estadual do PT, nenhum deputado federal do PT, nenhum senador, nem governador do PT. Aqui é direita, é crescimento, é Bolsonaro de novo”, afirmou Denarium.

 

Após as condenações impostas pelo TRE de Roraima, o governador divulgou nota em que afirma que as ações realizadas pela sua administração “sempre tiveram objetivo de ajudar quem mais precisa”. “Sigo no exercício do cargo e confio que as instâncias superiores eleitorais irão estabelecer a verdade”, afirmou à época.

 

Agora quem corre o risco de ser erradicado é o próprio governador.

STF ainda debate Lei dos Caminhoneiros após quase dez anos; entenda o que está em jogo

Cristiane Gercina / FOLHA DE SP

 

Quase dez anos após a publicação da Lei dos Caminhoneiros, o STF (Supremo Tribunal Federal) ainda debate pontos da regra, que podem criar um passivo trabalhista bilionário para as empresas do setor, calculado em R$ 255,6 bilhões.

O julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5.322 contestando parte da lei 13.103, de 2 de março de 2015, ocorreu em junho do ano passado, mas dois recursos pedindo esclarecimentos da decisão voltaram à corte neste mês.

Em 2 de agosto, o plenário virtual do Supremo começou a discutir os embargos de declaração apresentados por representantes das empresas de transporte e dos trabalhadores, mas o debate foi interrompido na quinta-feira (8), após pedido de vista do ministro Dias Toffoli.

O pedido de vista é uma solicitação de mais prazo para analisar o tema. Por regra, o ministro tem prazo de até 90 dias para devolver o processo e, então, novo julgamento será marcado.

Um dos principais pontos a serem esclarecidos pelo STF é a partir de que data devem ser aplicados os entendimentos dos ministros definidos no julgamento do ano passado: se a partir da data de entrada da lei em vigor ou se após o julgamento da corte.

A defesa feita tanto por trabalhadores quanto por empregadores é de que o marco seja a partir de junho de 2023, quando ocorreu ou julgamento, e os efeitos não sejam retroativos, ou seja, não valham desde que a legislação foi publicada.

O motivo é que a Lei dos Caminhoneiros aprovada por Câmara e Senado no governo Dilma Rousseff (PT) trouxe dispositivos considerados inconstitucionais pelos ministros do STF. Entre eles estão as regras do descanso semanal remunerado e do intervalo interjornada, entre um dia e outro de trabalho.

O Supremo julgou também o tempo de espera pela carga como sendo de trabalho e não de descanso, e entendeu que não é constitucional o motorista descansar com o caminhão em movimento, que se dá com revezamento entre dois motoristas —enquanto um dirige o outro dorme.

Segundo o advogado Orlando Maia Neto, sócio do Ayres Britto Advocacia e que atua no processo como amicus curiae (amigo da corte) representando as empresas do setor de transporte de combustível, a legislação permitia a flexibilização de alguns direitos previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), entre eles a divisão do tempo de descanso interjornada, o descanso em movimento e não fazer a pausa semanal em viagens longas.

Pela lei de 2015, o motorista poderia descansar menos horas entre um dia de trabalho e outro e acumular as horas faltantes para tirá-las no futuro. O mesmo ocorria com o descanso semanal. Em viagens longas, o caminhoneiro também podia ficar sem folga e, depois, tirava esse período ao voltar para a cidade de origem, chamada de base.

"As empresas seguiam como estava na lei, porque, na realidade, a lei refletiu uma prática que já ocorria", diz ele, que é advogado do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás). "As empresas e os trabalhadores em si acordavam de descansar só lá na frente, mas o Supremo falou que isso não dá."

Como a regra foi considerada inconstitucional, é preciso cumprir os prazos de descanso entre uma jornada e outra e nas viagens longas, além de contar na jornada o período em que o motorista espera o caminhão ser carregado. Com isso, o setor de transporte estima ser necessário aumentar em 20% a frota de caminhões.

Maia Neto afirma que, no setor de transporte de combustíveis, há ainda um agravante, que é o fato de caminhão precisar ser adaptado e o motorista é especializado e precisa passar por cursos, com isso, aumentar a frota não seria tão simples.

A CNT (Confederação Nacional dos Transportes), que representa empregadores, pediu ao menos mais dois anos para se adequar, e voltou a requerer a possibilidade de descanso em movimento. As duas solicitações, no entanto, já foram negadas pelo ministro relator, Alexandre de Moraes.

Em seu relatório, o ministro acatou a solicitação da CNT e da CNTT (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres), de modular os efeitos da decisão a partir do julgamento —as regras devem valer a partir de agosto de 2023, data de publicação da ata— e também atendeu a um outro pedido dos trabalhadores, de que as convenções coletivas tenham validade sobre leis, desde que não derrubem direitos constitucionais.

O voto do relator foi seguido pelos ministros Cristiano ZaninFlávio Dino e Cármen Lúcia. Depois, houve pedido de vista de Dias Toffoli. Ao retomar o julgamento, Toffoli será o primeiro a apresentar seu voto.

O que diz a Lei dos Caminhoneiros

Aprovada após pressão da categoria em uma greve no governo da presidente Dilma Rousseff (PT), já na esteira do pedido de impeachment —caminhoneiros era a favor da queda da presidente—, a lei 13.103 regulamentou a profissão de motorista profissional e determinou algumas regras sobre a jornada de trabalho dos caminhoneiros, que diferiam do que diz a CLT.

A lei determinava uma hora de almoço por dia, 11 horas de descanso entre um dia de trabalho e outro, e descanso semanal de 35 horas em viagens longas. A prorrogação da jornada de trabalho poderia ser de até duas horas por dia, pagas com o acréscimo de 50% ou conforme acordo coletivo.

O acordo coletivo poderia permitir a redução das 11 horas de descanso para até nove, desde que houvesse compensação no dia seguinte.

O que decidiu o Supremo sobre a Lei dos Caminhoneiros

É inconstitucional a parte da legislação que permitia o fracionamento do descanso noturno, entre uma jornada de trabalho e outra, assim como o fracionamento e o acúmulo do descanso semanal. "O descanso tem relação direta com a saúde do trabalhador, constituindo parte de direito social indisponível", disse o relator, ministro Alexandre de Moraes, no seu voto.

Outro ponto considerado inconstitucional foi contar como descanso o período em que o motorista ficava aguardando o caminhão ser carregado. Ele deve entrar na jornada de trabalho e, se for o caso, ser considerado hora extra.

A possibilidade de descanso com o veículo em movimento, por meio de revezamento de motoristas, foi negada. Agora, a CNT contesta. Moraes negou novamente, mas ainda há outros ministros para apresentarem seus votos.

Ao todo, no julgamento de junho de 2023, 11 pontos foram considerados inconstitucionais.

Ministério Público e ativistas criticam contratos de eólicas e solares no Nordeste

Alex SabinoZanone Fraissat / folha de sp

 

 

José Lopes Galvão pede para ser chamado de Zé de Elias no jeito nordestino de designar que se chama José e é filho de Elias. A terra em que vive, ao lado do Assentamento Acauã, em Santana do Matos, Rio Grande do Norte, era de seus avós.

O tempo todo, 24 horas por dia, vê e escuta um aerogerador ao lado de sua casa. Ele assinou contrato e arrendou a propriedade para o Complexo Eólico Acauã.

"Assinei na besteira. Estou arrependido. Nem sei direito quanto vou receber. Eles não me falaram, não", afirma, sentindo-se pior ainda com a lembrança da promessa de que embolsaria "muito dinheiro" com aquele acordo.

O rendimento até agora tem sido de R$ 300 por mês. Considera um valor "ridículo". Mais ainda quando cita o barulho que o aerogerador faz à noite. Seu filho coloca pedaços de papel higiênico no ouvido como tentativa desesperada de conseguir dormir.

Zé de Elias é exemplo de problema que ronda o modelo de parques eólicos e solares no Nordeste brasileiro: os contratos para arrendamento de terras de pequenos agricultores. Uma queixa que movimenta associações de moradores, ONGs, sindicatos, pesquisadores e o Ministério Público Federal.

"É uma Serra Pelada dos ventos", opina Fernando Joaquim Ferreira Maia, professor de Direito da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e integrante do projeto Dom Quixote, que analisa questões da transição energética. A referência é ao garimpo a céu aberto no Pará que abriu uma corrida sem lei por metais preciosos.

"Os contratos são a mola de tudo isso. A empresa negocia diretamente com os agricultores numa desproporção, uma assimetria muito grande. O arrependimento vem depois", completa.

Esta é a palavra mais usada por especialistas e advogados ouvidos pela Folha no Nordeste, quando o assunto era os acordos que possibilitam as instalações de parques eólicos e solares: assimetria. Os documentos assinados por agricultores favoreceriam apenas uma parte.

"É quase um colonialismo", critica José Godoy Bezerra, procurador do Ministério Público Federal da Paraíba. "De um lado, há empresas com conhecimento técnico e capacidade econômica. De outro, agricultores analfabetos, com zero conhecimento sobre energia. A boa-fé contratual não existe. É um processo o tempo todo atravessado, de má-fé. Isso não é energia limpa."

O Nordeste vive expansão de parques eólicos e produz 93,6% de toda a energia proveniente de ventos usada no país.

Na instalação de um parque, primeiro há a necessidade de medir os ventos ou a capacidade fotovoltaica (dos raios do sol) do local. Isso pode levar mais de um ano. Quando a viabilidade é constatada, as empresas precisam de terras para colocar o projeto de pé.

Até a metade de 2023, o Brasil tinha 890 parques eólicos instalados em 12 estados. Desse total, 85% estão no Nordeste. O mercado já recebeu R$ 300 bilhões em investimentos. A avaliação das companhias é que até 2030 serão colocados mais R$ 175 bilhões em novos projetos. Os investimentos em usinas solares, desde 2012, foram de R$ 2,8 bilhões.

Os governadores da região estão interessadíssimos no assunto porque, além da arrecadação estadual, há o histórico de crescimento local. Levantamento da Abeeólica (Associação Brasileira de Energia Eólica) aponta que o PIB (Produto Interno Bruto) das cidades que receberam parques cresceu 21% a partir da instalação e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) aumentou 20%.

Ainda segundo a entidade de classe, cada real colocado em energia eólica resulta em mais R$ 2,9 na economia local.

Pode ser uma realidade no mercado macro, mas não é reconhecida por moradores de pequenas comunidades ou agricultores afetados pelos empreendimentos.

"Quando eles [da empresa] chegam, a lavagem cerebral é grande. O tempo passa e os problemas começam. Os problemas existem e quando a choradeira fica grande, a empresa faz uma reunião e promete que vai resolver para todo mundo ficar quieto. Não querem divulgação. A maioria das reclamações é quando acontece atraso de pagamento", afirma Geraldo (nome fictício), morador de Junco do Seridó, na Paraíba, e arrendatário de terra para o Parque Eólico Serra do Seridó.

É algo repetido para a reportagem. Cada vez que acontece uma queixa pública, um funcionário do parque vai à comunidade garantir que haverá soluções e pedir que aquilo não se repita. Nem sempre as promessas foram cumpridas.

"No dia seguinte alguém vem até a minha casa, pergunta por que falei mal da empresa e que não posso fazer isso", disse uma moradora do seridó paraibano que pede para não ter o nome divulgado.

Os contratos de arrendamento de terras são longos. Variam entre 30 e 50 anos. Valem para os herdeiros, caso o proprietário morra no decorrer do acordo. Há questionamentos quanto à perda do uso da terra pelo agricultor porque a companhia vai determinar que áreas utilizará da propriedade e que trechos serão liberados para cultivo.

Existem também as queixas quanto à tal assimetria, a renovação automática, a possibilidade de desistência apenas pela empresa e, principalmente, o valor pago.

"Esse é um ponto muito sensível. Há casos de R$ 300 anuais. São R$ 25 mensais na primeira fase de instalação. Isso pode levar dois ou três anos. Há a restrição ao uso da terra. Só pode plantar e construir o que a empresa permite. Você é o dono da terra, mas perde autonomia. No Ceará, foi colocada [aos agricultores] a proibição de cavar o solo", relata o advogado Rárisson Sampaio, especialista em energia e professor da UFPB.

A mudança de patamar de remuneração acontece apenas quando a energia começa a ser negociada no mercado. Zé de Elias alega que o aerogerador em sua propriedade está em funcionamento há mais de um ano, mas ele continua a receber R$ 300 mensais.

"O retorno para o agricultor é de 1,5% do que é vendido, mas isso é um valor global do parque. Será dividido de acordo com os aerogeradores que estão em cada propriedade. E é o que a empresa diz que vendeu. Não há aferição", ressalta o procurador Godoy.

O Ministério Público fez solicitação ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e ao governo paraibano, no ano passado, para fiscalizar os contratos.

"Nossa visão é mais no macro. As ações que apareceram até agora contra as empresas são iniciativas individuais, não algo coletivo. Até porque os contratos são entre privados", completa Godoy, expondo o maior problema para quem reclama da forma como foram feitos os contratos: são acordos entre empresas privadas e indivíduos.

A assessoria do Incra informa ter publicado Instrução Normativa 112, em dezembro de 2021, para regulamentar a anuência do uso de terras de assentamentos para investimentos de energia. Esta apresenta todos os documentos, outorgas e licenciamentos necessários para autorização do projeto. Mas nem todas as terras usadas para parques eólicos ou solares são espaços usados para assentamentos da reforma agrária.

Existe também a possibilidade de o agricultor arrendar a sua terra mas, por decisão da empresa, esta não receber nenhum aerogerador. Neste caso, durante todo o contrato, ele receberá o valor equivalente ao pago durante a construção.

"O avanço de energias renováveis de fonte eólica e solar no Nordeste brasileiro, com seus múltiplos e invisibilizados impactos sobre as comunidades, é mais uma faceta do que chamamos de racismo. Reproduz a exclusão de populações diretamente afetadas pelos empreendimentos. Verifica-se uma sobreposição de interesses econômicos privados em detrimento do bem-estar de comunidades no âmbito da exploração de energias renováveis no Brasil", diz relatório do Inesc, ONG que trata de políticas públicas e direitos humanos, publicado no ano passado.

Os relatos ouvidos pela Folha, em diferentes regiões da Paraíba e do Rio Grande do Norte, têm alguns pontos em comum. O principal é a abordagem. No início, era um representante da companhia, engravatado, que fazia promessas de prosperidade e de uma renda que garantiria o futuro da família. O pedido era quase sempre para manter o contrato em sigilo após assinado. O documento não poderia ser levado para vizinhos, sindicatos ou associações de moradores.

Quando a estratégia ficou muito conhecida, os elos passaram a ser líderes comunitários encarregados de falar bem dos parques. Nos últimos tempos, a pressão passou a ser de governos municipais, interessados também na arrecadação do ISS (Imposto sobre Serviços).

Uma agricultora que se recusou a assinar disse que um dos argumentos para tentar convencê-la foi a obrigatoriedade de concordar porque seria pelo bem da humanidade.

"As empresas usam também os contratos como banco de terras. Arrendam bem mais do que vão usar agora porque no futuro já têm o espaço garantido e evitam a concorrência", analisa o advogado Claudionor Vital, 55, sócio da Centrac, Centro de Ação Cultural da Paraíba, que atua no semiárido do estado.

Ele também critica que as companhias avaliam quanto querem pagar pelas terras sem levar em conta o valor agregado mais importante: o vento ou o sol.

Questionado pela reportagem, o Governo da Paraíba, por meio da Sudema (Superintendência de Administração do Meio Ambiente), disse que os contratos entre empresas de parques eólicos e solares e pequenos agricultores são firmados entre particulares e o Estado não tem poder para interferir.

O Governo do Rio Grande do Norte declara atuar em "várias frentes com articulação multidisciplinar para mitigar os eventuais impactos dessas atividades" para que a transição energética ocorra da maneira mais justa possível.

A Abeeólica informa liderar um grupo de trabalho há dois anos para discutir e compartilhar boas práticas "e facilitar ações para solucionar as questões apontadas por comunidades vizinhas aos parques." A entidade considera que as queixas são "minoria em relação ao número de parques no país" e que as empresas cumprem a legislação vigente, "inclusive como forma de segurança jurídica e financeira quanto aos altos investimentos feitos nos empreendimentos."

A Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica) declara que a implantação de grandes usinas solares no Brasil atende a rigorosos requisitos legais e que são realizadas interações com as comunidades dos territórios e com os gestores públicos. Segundo a associação, os associados são incentivados a atuar nos mais elevados padrões internacionais que considerem que as "tratativas locais sejam justas e transparentes."

Responsável pelo complexo eólico Acauã, no Rio Grande do Norte, a Aliança Energia afirma que os contratos de arrendamento foram negociados com os proprietários das terras, que nenhum possui cláusula restringindo direito de associação ou representação jurídica. "A base de remuneração, após a entrada em operação do parque, é o percentual da receita e a área do imóvel", diz a empresa.

Operadora do Parque Eólico Serra do Seridó, a EDP diz que seus projetos "atendem todas as exigências dos órgãos reguladores e ambientais, garantindo a conformidade com as normas vigentes." Segundo a companhia, durante a fase pré-operacional, a área continua disponível para uso dos proprietários, enquanto são conduzidos estudos técnicos necessários. "Ao longo da operação do parque eólico, mantemos uma convivência harmoniosa com as atividades agropecuárias (…) respeitando os requisitos de segurança inerentes à natureza do empreendimento de geração de energia elétrica", completa.

Consulado pela reportagem, o Ministério das Minas e Energia não respondeu até a publicação desse texto.

"Sabe qual foi o benefício que ficou para a gente? Nenhum. O legado foi dos impactos. Ficou a zoada", constata, melancólico José Antoniel de Lima, 37, presidente da Associação Assentamento Acauã, no Rio Grande do Norte.

"Zoada" é o barulho que os aerogeradores fazem dia e noite.

AGRICULTOR E A EOLICA

Câmara e Senado dizem ao STF que não podem identificar autores de emendas de comissão

O GLOBO

 

A Câmara e Senado afirmaram, durante reunião no Supremo Tribunal Federal (STF), que não conseguem identificar os autores das emendas de comissão, instrumento que passou a ser mais utilizado com o fim das emendas de relator, que compunham o chamado orçamento secreto.

A reunião foi realizada para detalhar o cumprimento da decisão do ministro Flávio Dino, que determinou que as emendas de comissão e os restos a pagar das emendas de relator só podem ser pagos pelo Poder Executivo quando houver "total transparência e rastreabilidade" dos recursos.

 

Os representantes da Câmara afirmaram não que existe a figura do "patrocinador" das emendas de comissão (RP8), e por isso não é possível identificá-los. "Em relação à RP8, as informações estão disponíveis e atendem o procedimento do regimento, mas a figura do patrocinador não existe no Congresso, de modo que o Congresso não tem como colaborar", diz a ata do encontro.

 

Em seguida, os representantes do Senado afirmaram que endossavam a manifestação da Câmara. Eles também alegaram que as emendas de comissão não estão no escopo original da ação na qual Dino tomou a decisão.

 

O valor das emendas de comissão, que não chegavam a R$ 1 bilhão até 2022, saltaram para R$ 7 bilhões em 2023 e R$ 15 bilhões neste ano. Como o GLOBO mostrou, esses recursos continuam sendo repassados de forma desigual pelo país.

 

Na semana passada, durante audiência de conciliação, o ministro do STF afirmou que é preciso esclarecer se as características do orçamento secreto estão sendo aplicadas em outros mecanismos, como as emendas de relator.

 

— A razão de decidir no Supremo é que qualquer modalidade de orçamento secreto fica banida — afirmou Dino. — Não basta mudar o número para mudar a essência. Se não é possível uma execução privada de recursos públicos com opacidade sob a modalidade de RP-9 do mesmo modo isto está vedado sobre qualquer outra classificação.

Ex-assessor de Bolsonaro está preso com base em alegação falsa

Glenn Greenwald

Jornalista, advogado constitucionalista e fundador do The Intercept / FOLHA DE SP

 

Filipe Martins, ex-assessor de assuntos internacionais de Jair Bolsonaro (PL), está preso desde 8 de fevereiro. Sua prisão preventiva foi decretada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. Martins permanece preso há quase seis meses, apesar de nunca ter sido condenado por qualquer crime —nem sequer acusado.

Pouco depois da ordem de Moraes, a PGR (Procuradoria-Geral da República), que inicialmente havia defendido a prisão, se manifestou favoravelmente à libertação de Martins. Em um parecer do início de março, o órgão admitiu que a alegação central na ordem de Moraes havia sido amplamente refutada. A PGR recomendou novamente nesta semana que Martins seja libertado porque "não há indicativos" de que ele tenha tentado fugir do país, justificativa original para a sua prisão.

O princípio de que um cidadão só pode ser preso depois que se prove, em um julgamento justo, que cometeu algum crime é fundamental para qualquer sociedade livre. Essa é a premissa que fundamentou as reportagens da Vaza Jato no The Intercept e a mesma que levou o STF a anular as condenações de Lula por Sergio Moro.

A prisão sem julgamento justo é um dos atos mais graves que um Estado pode cometer. Existem circunstâncias muito restritas e raras em que isso pode ocorrer. A prisão preventiva é uma "medida de caráter excepcional" e se justifica apenas para "prevenir situações que podem colocar em risco um resultado judicial justo" —por exemplo, quando um acusado pode obstruir uma investigação ou apresenta grande risco de fugir do país.

Uma das críticas mais comuns à Lava Jato foi justamente que Moro expandiu radicalmente o uso das prisões preventivas, impondo, antes de qualquer julgamento, muitos meses de cárcere a diversos acusados. O ex-juiz buscava coagir os presos a fazer delações ou outros objetivos políticos ilegítimos.

Essa queixa foi feita por Gilmar Mendesbem como por muitos especialistas jurídicos. Ironicamente, Moraes, tanto no caso de Martins quanto mais amplamente, "tem recorrido a um instrumento jurídico que se popularizou durante o auge da operação [da Lava Jato] e foi alvo de contestações pelos integrantes da Suprema Corte: as extensas prisões preventivas".

No caso de Martins, Moraes justificou a prisão com base na alegação de que o ex-assessor havia deixado o Brasil "a bordo do avião presidencial no dia 30.12.2022 rumo a Orlando/EUA". Em outubro de 2023, um colunista do Metrópoles afirmou equivocadamente que Martins deixou Brasília, "foi a Orlando em 2022 e evaporou". Essa alegação do colunista foi citada pela Polícia Federal e usada por Moraes para concluir que Martins apresentava risco de fuga.

No entanto, ficou claro desde o início que essa afirmação era completamente falsa. Por essa razão, o Metrópoles finalmente inseriu em junho uma grande e longa correção em seu artigo original, admitindo que sua alegação central era improcedente. A correção publicada no site reconhece que "Martins forneceu informação ao STF que mostrava que ele estava no Brasil naquela data". Ele nunca esteve no avião e não entrou nos EUA em dezembro.

Isso não foi um mal-entendido complexo. Está inequivocamente claro que Martins não evaporou nem deixou o Brasil no avião presidencial com Bolsonaro, como Moraes alegou.

Ele esteve no Brasil o tempo todo: a Latam confirmou que o ex-assessor viajou a Curitiba em voo da empresa em 31 de dezembro de 2022. Recibos do iFood e da Uber atestam a presença de Martins no Brasil durante o período. Como foi reportado pela Folha, "dados de geolocalização do telefone celular de Filipe Martins [...] mostram que o aparelho estava no Brasil no período entre 30 de dezembro de 2022 e 9 de janeiro de 2023".

Em janeiro de 2023, o governo atual respondeu a um pedido de acesso à informação que solicitava "a lista completa de quem viajou no referido voo da FAB [que levou Bolsonaro a Orlando em 30 de dezembro de 2022]". A resposta oficial inclui dez nomes, além de Jair Bolsonaro e sua esposa, Michelle. Filipe Martins não está listado.

Foi esse conjunto de evidências que levou a PGR a recomendar duas vezes a libertação imediata de Martins. Moraes, aparentemente ansioso para manter Martins preso sob condições duras, ignorou todas essas evidências e, em maio, rejeitou um pedido de soltura do ex-assessor.

Com o surgimento de ainda mais evidências, a PGR novamente se manifestou pela libertação de Martins nesta semana. Fez isso, nas palavras do procurador-geral, para "reforçar o pedido de soltura de Martins porque não há indicativos de que o réu tenha tentado fugir do Brasil no final de 2022".

Assim como ocorre com todos os cidadãos, Filipe Martins deve ser punido se for provado, em um julgamento justo, que ele cometeu algum crime. Mas ele nunca foi acusado de ter cometido crimes, muito menos condenado por eles. Está claro, há muito tempo, que a base para a ordem de prisão de Martins por Alexandre de Moraes antes do julgamento é falsa.

Martins está há quase seis meses na prisão com base em uma alegação falsa. Já passou da hora de ele ser libertado.

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