Um afeto que se encerra?
04 de março de 2020 | 03h00
O Afeto que se Encerra é um antigo livro de Paulo Francis. Não há como não fazer uma associação com esse título quando nos debruçamos sobre o sentimento que perpassa tantos brasileiros no meio dessa polarização tóxica que está afetando a sua relação com o País em que vivem. O que muitas pessoas têm colocado entre nós nos últimos anos é uma pergunta tão angustiante quanto existencial: o que fazer quando o sentimento de pertencimento a uma nação se dá em relação a algo que não existe mais?
Dizia-me recentemente um velho amigo, numa conversa sobre estas questões: “Eu sinto que, nos últimos anos, os vínculos afetivos que me uniam ao Brasil foram se diluindo”.
“Onde se nasce é um acidente”, dizia Mario Vargas Llosa. E adicionava: “A verdadeira pátria é aquela que a gente escolhe com a alma”.
Refazendo a pergunta anterior: o que fazer quando nossa alma entra em conflito com o lugar que habita? Como se estabelece esse divórcio? Ou ainda: o que fazer para que ele não ocorra?
Como evitar a sangria de algumas de nossas melhores cabeças, que, cansadas da polarização que está estragando o Brasil, desistem do País, com o qual não mais se identificam? Ubi bene ibi patria (onde se está bem, aí é a pátria), pregava Cícero, o filósofo romano. O que fazer com todos os que estão virando “apátridas afetivos”, mesmo (ainda) morando no Brasil, muitos apenas por falta de alternativa?
“Alma nacional” é uma expressão-chave. Jorge Luis Borges escreveu que “a amizade é feita dessa língua comum, dessas palavras e lembranças compartilhadas, referências. É isso que faz uma pátria”.
“Pátria”, eis o termo fundamental, ainda que talvez um pouco ultrapassado pelos fatos da vida moderna, que torna as coisas mais parecidas entre si. Uma loja da Gucci no Brasil se assemelha muito a uma que pode haver perto dos Champs Elysées, em Paris. O cappuccino da Starbucks de São Paulo tem o mesmo sabor que o dessa loja em Londres. Parte da nossa juventude das classes mais favorecidas e que fez intercâmbio se vira no Rio de Janeiro, em Madri ou em Sidney. Não há como quem viajou muito não se sentir um pouco cidadão do mundo.
E mesmo assim o ser humano se pergunta: “Com que lugar eu me identifico? A quem me sinto ligado? Por que destino eu me preocupo? Em qual causa eu me engajo?”. O leitor sente-se muito afetado quando lê notícias sobre assassinatos no Iraque ou mais um ataque terrorista no Afeganistão? Provavelmente, não. O noticiário chega aqui como se fossem coisas que acontecem em outro planeta. Todos sabem que, de alguma forma, todos moramos no “condomínio Terra”, mas ele tem muitos prédios...
Chegamos, então, à questão-chave. O filósofo Ortega y Gasset nos ensinou que “uma nação é um projeto de vida em comum”. E em seu livro Espanha Invertebrada, escrito no começo dos anos 20 do século passado, ele se queixava de que não haveria uma vértebra que permitisse aos espanhóis serem unificados por um ideal comum, que levasse cada cidadão a sair da contemplação para uma atitude ativa, em favor da construção do futuro. Nesse contexto, como alguém já resenhou opinando sobre o livro dele, cada parcela da sociedade passa a existir como um grupo à parte do resto. Ortega estava se referindo ao que hoje denominaríamos de “tribos”. A nação, porém, na concepção de Ortega, vai muito além da simples convivência no mesmo espaço geográfico e se refere a um conjunto de pessoas em que há laços de identificação e solidariedade que levam cada um a contar com o outro.
É algo que se foi perdendo no Brasil nos últimos anos. Somos um país de uma desigualdade que choca qualquer estrangeiro que nos visita, com uma divisão de classes que lembra sociedades estratificadas e com níveis de pobreza que contrastam com a riqueza de muitos lugares. Entretanto, tínhamos características em comum. Que na luta política fratricida dos últimos anos se foram perdendo. É isso que está levando tanta gente (tantos eleitores!) a se perguntar: “O que me une ainda a este lugar e seus habitantes?”. A percepção de que há cada vez menos itens nessa lista talvez seja um dos fenômenos recentes mais importantes. Vale para todas as classes. É um sentimento que, em alguns casos, exacerbado, pode levar ao egoísmo e à indiferença.
Virou moda a menção à frase de J. Carville, o famoso “marqueteiro” de Clinton, “It’s the economy, stupid”, dando a ideia de que é a situação da economia que comanda o voto do eleitor em qualquer eleição. A economia é um elemento poderoso na hora de o cidadão decidir quem vai eleger. E o Brasil precisa, desesperadamente, deixar para trás a crise, o desemprego elevado e a piora do nível de vida. Há também, contudo, no País elevada demanda por unificação, para deixar para trás esta “era da infâmia” do atual século, de divisão de amizades e famílias. Quem tiver essa leitura estará em boa posição para o futuro, diante de uma população cada vez mais cansada do País em que vivemos. Antes que o afeto pelo Brasil acabe de vez.
*ECONOMISTA
A crise na representação que ainda assola o País
04 de março de 2020 | 03h00
Está em plena ebulição no Planalto Central do Brasil uma luta aberta entre os Poderes Executivo e Legislativo em torno da liberação de R$ 46 bilhões, R$ 31 bilhões ou R$ 15 bilhões para emendas parlamentares que beneficiarão prefeitos e governadores estaduais sem necessidade de fiscalização. Na prática, é uma queda de braço na qual quem puder mais chorará menos. Qual das partes tem mais legitimidade para decidir sobre o Orçamento da União? Eis a questão, a ser definida por três princípios básicos da democracia: todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, todos são iguais perante a lei e cada cidadão, um voto.
Em teoria, nem deveria ser aberta a polêmica. Afinal, sabe-se que o Poder que realmente representa a sociedade não é o Executivo, que executa leis e orçamentos, nem o Judiciário, que, como determina o próprio nome, julga se a ordem dada está, ou não, dentro da lei e fiel à Constituição. Certo? Não necessariamente. Afinal, no rigor matemático dos fatos o único Poder com mandatário escolhido na base de cada cidadão, um voto é o Executivo. Seja federal, estadual ou municipal. Em mandatos de quatro anos, que só podem ser repetidos uma vez, os chefes de governos federal, estaduais e municipais passam por processos eleitorais de dois turnos para que se garanta sua legitimidade. Na aferição dos votos nas urnas eletrônicas não há dúvidas: garantida a igualdade de condições na disputa, toma posse o eleitor mais votado.
O mesmo não se pode dizer da escolha para a composição do Parlamento de 513 deputados federais e 81 senadores. Os primeiros são eleitos pelo sistema de voto proporcional. Os últimos preenchem três vagas, com oito anos de mandato, dois num pleito e um no outro, e podem ser reeleitos para todo o sempre, amém.
No caso da dita Câmara Alta o cidadão não é representado nem em teoria. Afinal, o plenário dos seniores (do latim “mais velhos”, mas nem sempre) representa cada Estado da Federação por absurdos mandatos de oito anos, inexistentes no modelo do qual a democracia brasileira só imitou o exemplo teórico, o dos Estados Unidos da América, inventados pelos pais fundadores, no que interessava diretamente à oligarquia monarquista que deu o golpe da República em 1889. Senadores americanos têm mandatos de quatro anos e a chamada Casa dos Representantes, modelo de nossa Câmara federal, de dois. O modelo adotado ao norte do Rio Grande contempla a condição especial da história de sua independência de um conjunto de colônias.
A Federação, essencial para os inspiradores, é uma ficção que nunca se justificou nos 131 anos de nossa insana República. O sistema bicameral é uma excrescência tropicalista do Atlântico Sul, herdada do império dos Bourbons, que ruiu 11 anos antes da chegada do século 20. Na República à brasileira dos barões da monarquia que se adaptaram ao novo regime imposto por militares irredentos e positivistas autoritários, o Senado do império derrubado virou uma tal câmara de revisão, que tem servido ao longo deste século de instituições surrealistas. Mas o que revê o Senado e o Senado revê o quê?
No cotidiano sujo do truco do poder, o mando é executado pelo chefe do Executivo, quando este tem força política. Ou, quando não tem ou a perde, pela Câmara dos Deputados. Em teoria, essa é a prática mais aproximada do cidadão. Mas a composição de seu plenário o nega.
Deputados federais e estaduais e vereadores municipais são escolhidos por um regime do “me engana que eu gosto”. No processo herdado da Constituição de 1946 o voto proporcional deu o mando às elites dirigentes dos Estados atrasados sobre os eleitores mais numerosos dos Estados mais ricos. O voto de um acriano em São Paulo tem um poder 13 vezes menor na escolha de seu representante do que o de um mineiro em Roraima. A distorção matemática foi ampliada pela Constituição fajuta dos militares em 1967 e da dita, mas nunca provada, “cidadã” da soi-disant Nova República. No meio disso, o tal pacote de abril dos generais Geisel e Golbery destruiu de vez a representação, criando senadores indiretos, “biônicos”, uma versão exacerbada que não vingou do que são, no fundo, os eleitos.
O Brasil oficial (apud Machado de Assis), que briga pelos bilhões do bolso furado dos pagadores de impostos, é uma aberração que cospe na lógica de Aristóteles e dos tomistas, pois só 7% dos deputados ganharam eleições com o número de votos depositados nas urnas: e são chamados de “puxadores de votos” – como Enéas, Tiririca e Janaina Paschoal. Os restantes 93% dependem do quociente eleitoral de seus partidos e coligações para serem diplomados. Os beneficiários dessa distorção se elegem chefões do Poder dito “representativo” com apoio de opostos, caso de Rodrigo Maia, elevado à presidência da Câmara pelo DEM de Onyx Lorenzoni e pelo PCdoB do Orlando “Tapioca” Silva. Davi Alcolumbre, do remoto Amapá, lançado pelo onipresente ministro da Cidadania de Bolsonaro (que ironia!), venceu o alagoano Renan Calheiros numa fraude de 81 eleitores e 82 votos.
Quem esse chinfrim teatro do absurdo representa?
*JORNALISTA, POETA E ESCRITOR
POLICIA AMOTINADA - Cheiro de pólvora no ar
A Polícia Militar do Ceará voltou às ruas, mas deixou um cheiro de pólvora no ar. O motim expôs a cumplicidade do Planalto com a agitação nos quartéis. Isso pode servir de incentivo a novos levantes armados pelo país.
No sábado, o ministro Sergio Moro admitiu que a greve era proibida, mas afirmou que os policiais amotinados não eram criminosos. Isso equivale a dizer que nenhum brasileiro está autorizado a afrontar a Constituição, exceto aqueles que vestem farda da PM.
No domingo, o diretor da Força Nacional chamou os policiais que cruzaram os braços de “gigantes” e “corajosos”. “Só os fortes conseguem atingir seus objetivos”, elogiou o coronel Antônio Aginaldo de Oliveira. Ele é casado com a deputada bolsonarista Carla Zambelli, e Moro foi padrinho do enlace.
Não houve gigantismo nem coragem no motim da PM cearense. Os grevistas aterrorizaram a população desarmada, que permaneceu nove dias como refém. Em algumas cidades, policiais adotaram práticas do tráfico e saíram encapuzados para ordenar o fechamento do comércio.
O motim deixou um saldo de 241 mortos em nove dias. Um senador tentou avançar contra os grevistas e foi baleado no peito, mas Moro declarou que “prevaleceu o bom senso, sem radicalismos”.
No Congresso, circulam duas explicações para o corpo mole do Planalto. Jair Bolsonaro sabe que os líderes do movimento são seus eleitores, e preferiu compactuar com a desordem a perder votos. Ao mesmo tempo, o presidente farejou uma nova oportunidade para enfraquecer os governos estaduais.
A oposição acredita que o capitão também aproveitou o episódio para mostrar força. Depois de se cercar de generais, o presidente indicou que conta com o apoio de escalões inferiores da PM na hipótese de uma crise que ameace seu mandato.
O fato positivo do motim foi a articulação dos governadores de diferentes partidos para socorrer o petista Camilo Santana quando Bolsonaro ameaçou retirar as tropas federais. Sem isso, o Planalto poderia ter abandonado os cearenses à própria sorte.
PT aciona PGR contra Heleno por fala sobre ‘chantagem’ do Congresso
A bancada do PT na Câmara levou à Procuradoria-Geral da República (PGR) uma representação contra o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o general Augusto Heleno, para que ele perca seu cargo. O argumento é que Heleno teria cometido crime de responsabilidade.
A ação, assinada pelos 53 deputados, solicita que a PGR investigue Heleno e aplique sanções a ele devido às declarações que deu, afirmando que o governo não deve ceder “às chantagens” do Congresso.
Na ocasião, o ministro também orientou o presidente Jair Bolsonaro a “convocar o povo às ruas”. A fala de Heleno referente à pressão do Congresso para derrubar os vetos de Bolsonaro ao orçamento impositivo e controlar parte dos recursos de 2020 foram reveladas pelo O GLOBO.
O partido também diz que as “graves acusações do general foram o ponto de partida para a convocação de manifestações de grupos radicais dentro e fora das Forças Armadas para subverter a ordem constitucional, contando com o apoio do Presidente da República”.
Os deputados pedem esclarecimentos de Heleno sobre quem são os parlamentares, bancadas ou partidos que estariam agindo, segundo sua fala, para “extorquir” o poder executivo e suas autoridades. Afirmam ainda que um ministro de Estado deve “se abster de adotar posturas belicosas, agressivas e em franco desrespeito aos demais poderes e à ordem constitucional, pois vulnera a dignidade, a honra e a probidade (decoro) do cargo”.
STF julga nesta quarta regra para criação de partido que pode beneficiar Aliança pelo Brasil
BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar nesta quarta-feira um processo que questiona regras para a fundação de partidos políticos, entre outros que também podem influir nas eleições municipais deste ano. A ação, de autoria do PROS, questiona trecho da reforma eleitoral de 2015 que dificultou a criação de legendas. A legislação exige a comprovação do apoiamento apenas de eleitores não filiados a outro partido político. Dependendo do resultado, o julgamento pode facilitar a criação do Aliança pelo Brasil, articulada pelo presidente Jair Bolsonaro.
Como informou o blog do colunista Lauro Jardim, porém, integrantes da cúpula do Aliança pelo Brasil avisaram a Bolsonaro, na sexta-feira anterior ao Carnaval, que é praticamente zero a chance de o partido sair do papel a tempo de lançar candidatos nas eleições deste ano.
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O PROS argumenta que a regra não pode valer, porque gera "espécie de desigualdade entre os cidadãos
“Sob o ponto de vista de um Estado Democrático, qual seria a finalidade de uma norma tendente a gerar espécie de desigualdade entre seus próprios cidadãos, isto é, desprestigiar aqueles que estejam associados a um ente partidário e dotar de prerrogativas somente aqueles que não tenham filiação? Certamente a nova regra irá desmotivar o ingresso do nacional na vida partidária e, assim, limitar a participação popular no processo democrático”, argumenta o Pros.
Outro trecho questionado da legislação estipula prazo mínimo de cinco anos de registro perante o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) antes que ele possa se fundir ou incorporar outras legendas.
Realização de novas eleições
Também está na pauta do plenário do STF desta quarta-feira outros julgamentos que podem influir nas eleições municipais deste ano. Um deles é o recurso do PSB contra trecho da reforma eleitoral que exige a realização de novas eleições quando a Justiça Eleitoral negar o registro de candidatura depois da vitória do candidato a eleição majoritária, independentemente do número de votos anulados. Parecer do Ministério Público é contra a norma, porque “não é razoável a renovação do pleito nas hipóteses em que a nulidade não atingiu mais da metade dos votos válidos”.
Há, ainda, ações apresentadas pela Procuradoria-Geral da República, pelo DEM e pelo Patriota contra outro trecho da reforma eleitoral, sobre as regras de distribuição das cadeiras remanescentes na Câmara dos Deputados. São as chamadas “sobras eleitorais”, ou seja, as vagas não preenchidas pelo resultado do quociente partidário.
A regra de divisão das cadeiras funciona assim: primeiro, o número de votos obtidos por partido é divido pela quantidade de vagas para se chegar ao quociente eleitoral. Depois, o número de votos de cada partido é divido pelo quociente eleitoral, chegando ao quociente partidário.
O resultado dessa matemática não preenche todas as 513 cadeiras da Câmara dos Deputados. As vagas não preenchidas são as sobras eleitorais. Antes, apenas os partidos que atingiram 10% do quociente eleitoral podiam disputar as sobras. Com a reforma, todos os partidos, até os que não atingiram os 10%, podem disputar as sobras. O STF vai decidir se a mudança é constitucional.
'Não tem comida em casa': o drama das mães de crianças vítimas do zika na fila do INSS
Faz meses que o peso da pequena Brenda, de 1 ano e 5 meses, não passa dos 7,3 kg. Da última vez que levou a filha ao médico, no dia 12 de fevereiro, recebeu o alerta de que, se a menina não ganhasse peso até a próxima consulta, pode precisar de uma sonda gástrica.
"Não tem comida em casa, o que tinha já acabou", conta, emocionada, a mãe Jéssica Paula Lima, 26 anos.
Quando ela conversou por telefone com a repórter da BBC News Brasil estava na casa de outra mãe para almoçar com as crianças.
Já vai fazer um ano que Jéssica pediu pela primeira vez o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e pessoas com deficiência de baixa renda, em uma agência do instituto Nacional do Seguro Social de Recife, em Pernambuco. Até hoje, não passou sequer pela perícia.
De acordo com o INSS, existem atualmente no país 420 mil pedidos de BPC como os de Jéssica, que aguardam mais de 45 dias para serem analisados. Os atrasos atingem justamente a parcela mais vulnerável da população, que em geral não tem outra alternativa de renda, nem condições de trabalhar.
No caso de Jéssica, como nos da grande maioria das mães de crianças com a síndrome congênita, conciliar outras atividades é impossível: os cuidados com as crianças, que têm pouca ou nenhuma autonomia para atividades cotidianas, exigem dedicação em tempo integral, na qual a mãe quase sempre é sobrecarregada.