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A crise na representação que ainda assola o País

José Nêumanne, O Estado de S.Paulo

04 de março de 2020 | 03h00

Está em plena ebulição no Planalto Central do Brasil uma luta aberta entre os Poderes Executivo e Legislativo em torno da liberação de R$ 46 bilhões, R$ 31 bilhões ou R$ 15 bilhões para emendas parlamentares que beneficiarão prefeitos e governadores estaduais sem necessidade de fiscalização. Na prática, é uma queda de braço na qual quem puder mais chorará menos. Qual das partes tem mais legitimidade para decidir sobre o Orçamento da União? Eis a questão, a ser definida por três princípios básicos da democracia: todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, todos são iguais perante a lei e cada cidadão, um voto.

Em teoria, nem deveria ser aberta a polêmica. Afinal, sabe-se que o Poder que realmente representa a sociedade não é o Executivo, que executa leis e orçamentos, nem o Judiciário, que, como determina o próprio nome, julga se a ordem dada está, ou não, dentro da lei e fiel à Constituição. Certo? Não necessariamente. Afinal, no rigor matemático dos fatos o único Poder com mandatário escolhido na base de cada cidadão, um voto é o Executivo. Seja federal, estadual ou municipal. Em mandatos de quatro anos, que só podem ser repetidos uma vez, os chefes de governos federal, estaduais e municipais passam por processos eleitorais de dois turnos para que se garanta sua legitimidade. Na aferição dos votos nas urnas eletrônicas não há dúvidas: garantida a igualdade de condições na disputa, toma posse o eleitor mais votado.

O mesmo não se pode dizer da escolha para a composição do Parlamento de 513 deputados federais e 81 senadores. Os primeiros são eleitos pelo sistema de voto proporcional. Os últimos preenchem três vagas, com oito anos de mandato, dois num pleito e um no outro, e podem ser reeleitos para todo o sempre, amém.

No caso da dita Câmara Alta o cidadão não é representado nem em teoria. Afinal, o plenário dos seniores (do latim “mais velhos”, mas nem sempre) representa cada Estado da Federação por absurdos mandatos de oito anos, inexistentes no modelo do qual a democracia brasileira só imitou o exemplo teórico, o dos Estados Unidos da América, inventados pelos pais fundadores, no que interessava diretamente à oligarquia monarquista que deu o golpe da República em 1889. Senadores americanos têm mandatos de quatro anos e a chamada Casa dos Representantes, modelo de nossa Câmara federal, de dois. O modelo adotado ao norte do Rio Grande contempla a condição especial da história de sua independência de um conjunto de colônias.

A Federação, essencial para os inspiradores, é uma ficção que nunca se justificou nos 131 anos de nossa insana República. O sistema bicameral é uma excrescência tropicalista do Atlântico Sul, herdada do império dos Bourbons, que ruiu 11 anos antes da chegada do século 20. Na República à brasileira dos barões da monarquia que se adaptaram ao novo regime imposto por militares irredentos e positivistas autoritários, o Senado do império derrubado virou uma tal câmara de revisão, que tem servido ao longo deste século de instituições surrealistas. Mas o que revê o Senado e o Senado revê o quê?

No cotidiano sujo do truco do poder, o mando é executado pelo chefe do Executivo, quando este tem força política. Ou, quando não tem ou a perde, pela Câmara dos Deputados. Em teoria, essa é a prática mais aproximada do cidadão. Mas a composição de seu plenário o nega.

Deputados federais e estaduais e vereadores municipais são escolhidos por um regime do “me engana que eu gosto”. No processo herdado da Constituição de 1946 o voto proporcional deu o mando às elites dirigentes dos Estados atrasados sobre os eleitores mais numerosos dos Estados mais ricos. O voto de um acriano em São Paulo tem um poder 13 vezes menor na escolha de seu representante do que o de um mineiro em Roraima. A distorção matemática foi ampliada pela Constituição fajuta dos militares em 1967 e da dita, mas nunca provada, “cidadã” da soi-disant Nova República. No meio disso, o tal pacote de abril dos generais Geisel e Golbery destruiu de vez a representação, criando senadores indiretos, “biônicos”, uma versão exacerbada que não vingou do que são, no fundo, os eleitos.

O Brasil oficial (apud Machado de Assis), que briga pelos bilhões do bolso furado dos pagadores de impostos, é uma aberração que cospe na lógica de Aristóteles e dos tomistas, pois só 7% dos deputados ganharam eleições com o número de votos depositados nas urnas: e são chamados de “puxadores de votos” – como Enéas, Tiririca e Janaina Paschoal. Os restantes 93% dependem do quociente eleitoral de seus partidos e coligações para serem diplomados. Os beneficiários dessa distorção se elegem chefões do Poder dito “representativo” com apoio de opostos, caso de Rodrigo Maia, elevado à presidência da Câmara pelo DEM de Onyx Lorenzoni e pelo PCdoB do Orlando “Tapioca” Silva. Davi Alcolumbre, do remoto Amapá, lançado pelo onipresente ministro da Cidadania de Bolsonaro (que ironia!), venceu o alagoano Renan Calheiros numa fraude de 81 eleitores e 82 votos.

Quem esse chinfrim teatro do absurdo representa?

*JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

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