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Eleições municipais e possibilidade de abuso de poder político

As eleições municipais de 2020 são bastante peculiares sob vários aspectos, mas, principalmente no tocante à desigualdade entre os candidatos. O adiamento para novembro pode ajudar um pouco na divulgação de nomes que concorrem pela primeira vez, mas, por outro lado conferem mais tempo para que candidatos à reeleição se beneficiem das facilidades proporcionadas pelo exercício de cargos e funções públicas. Uma significativa peculiaridade foi apontada pelo jornal O Estado de São Paulo de 14/07/20. Reportagem assinada por Camila Turtelli, mostra que as eleições poderão ter um número recorde de parlamentares candidatos, pois estes, além de já serem conhecidos, não precisam deixar o cargo para fazer campanha. Destaca ela, também que "Esta será a primeira vez que as campanhas de candidatos a prefeito e a vereador serão pagas com recursos do fundo eleitoral, criado em 2017. Ao todo, serão R$ 2,035 bilhões divididos entre as 32 siglas do País."

A divisão é feita considerando o número de parlamentares de cada bancada. Assim, o PT, que tem a maior bancada, ficará com 201,3 milhões de reais. A segunda bancada é a do PSL, com 199,4. Enquanto o PT é um partido tradicional, consolidado, o PSL era um partido nanico, legenda de aluguel, que, como tal, foi utilizada para a candidatura do Presidente Jair Bolsonaro, acarretando uma enxurrada de votos para uma sigla sem tradição, sem expressão e de escassa representatividade.

Outro fator de desigualdade está nos parágrafos 9º, 10 e 11, do Art. 166 da Constituição Federal (com a redação dada pela EC 86/15), que tornaram vinculantes e de execução obrigatória as emendas de parlamentares à lei orçamentária. Com isso, os atuais parlamentares alimentam seus currais eleitorais, numa troca espúria de favores e apoios. Conforme destacou o Prof. Modesto Carvalhosa (Da Cleptocracia para a Democracia”, pgs. 55 e 74) fica perfeitamente escancarada a desigualdade entre os novos candidatos e os já titulares de mandatos legislativos. Estes dispõem de um exército de "assessores" (cabos eleitorais), da estrutura inteira do gabinete, verbas para correio, gasolina etc. e, principalmente, das emendas individuais ao orçamento, consistentes em verbas públicas que cada parlamentar pode destinar, livremente, a qualquer atividade de interesse de seus apoiadores (seu curral eleitoral) e que o Chefe do Executivo não pode deixar de atender.

Essa situação de patente desigualdade viola o disposto no Art.14 da CF, no sentido de que "A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos". Tal a importância disso para a própria sobrevivência do sistema republicano democrático, que a matéria é disciplinada já diretamente pelo texto constitucional. Numa leitura descuidada, que não ultrapasse os limites da literalidade, essa parte final poderia significar, apenas e tão somente, uma proibição ao voto de qualidade. Mas, na verdade, aí está dito muito mais: está afirmado o princípio da igualdade entre os eleitores, que determina, entre outras coisas, a igualdade de informação eleitoral, a igualdade de acesso aos locais de votação, a proteção contra influências do poder econômico e, também, do poder político.

O parágrafo 9º, desse Art. 14, determina a edição de uma lei complementar (a atual LC nº 135, de 04/06/10) estabelecendo casos de inelegibilidade, para assegurar, entre outras coisas, “a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. Positivamente esses objetivos não serão concretizados nas eleições municipais de 2020, pois o voto não será igual para todos, dada a influência dessas vantagens todas no momento de escolha de seu candidato pelo eleitor. A liberdade de voto de cada eleitor será fatalmente tisnada pelas gritantes diferenças entre os candidatos, em favor daqueles que já estão no exercício de função pública.

Tradicionalmente, as eleições eram marcadas pelo abuso do poder econômico, especialmente porque grandes empresas, que mantinham contratos superfaturados, faziam generosas doações. Esse grave problema foi, em grande parte, solucionado quando o STF declarou inconstitucional o financiamento de campanhas eleitorais por empresas, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4650, que depois foi incorporado à legislação em 2015. Para as eleições deste ano, a Resolução TSE nº 23.607/2019 disciplina rigorosamente o recebimento de doações e os gastos dos partidos. Todas as doações devem ser devidamente identificadas, inclusive pelo CPF do doador, e feitas por via bancária (não se admite doação em dinheiro), devendo o partido divulgar tais doações, com os nomes dos doadores e respectivos valores. Isso não acaba com os abusos de poder econômico, pois sempre haverá meios de contornar os obstáculos, mas, sem dúvida, contribui muito para a melhoria da representatividade.

Entretanto, resta o abuso de poder político, pois, salvo raríssimas exceções, quem exerce o poder normalmente pretende ou postula nele se perpetuar, seja por si mesmo, seja mediante sua sucessão por alguém de sua confiança ou, no mínimo, de seu grupo político. Isso mostra o especial cuidado que se deve ter com a influência que detentores de cargos políticos possam ter sobre o processo eleitoral. Se, de um lado, é perfeitamente legítimo que um partido político pretenda atingir e permanecer no poder, por outro lado, é preciso assegurar a possibilidade de alternância no poder, pois sem isso não existe democracia. Os princípios e normas que disciplinam as atividades político-partidárias e eleitorais visam assegurar essa possibilidade de alternância, estabelecendo limites à atuação dos postulantes, limites esses cuja ultrapassagem configura abuso.

O tema abuso de poder costuma ser objeto de estudo pelos administrativistas porque esse fenômeno ocorre com inquietante frequência no exercício da função administrativa. Mas ele pode também ocorrer na prática dos chamados atos políticos ou de governo, tendo como sujeitos agentes políticos tanto do Executivo quanto do Legislativo. Nestes últimos casos, algumas vezes a ilicitude está voltada para a obtenção de vantagens indevidas de ordem econômica, mas também ocorre com demasiada frequência motivada por propósitos partidários e especialmente eleitorais, violando a legitimidade do processo eleitoral. Em síntese, ocorre abuso de poder político quando uma autoridade pública, no uso de prerrogativas inerentes ao poder/dever de que está investida, ultrapassa os limites da legalidade e da legitimidade, ainda que inconscientemente, produzindo ou podendo produzir situações de indevido favorecimento a correligionários, aliados ou determinados postulantes a cargos eletivos.

O abuso de poder no processo eleitoral é um problema bastante sério, quando decorrente de fatos ou situações que efetivamente ocorrem no âmbito da sociedade. A dificuldade de solução aumenta muito quando se inventa como fator de abuso algo evidentemente despropositado, como é o caso do suposto abuso de poder religioso. No âmbito do TSE, sustenta o ministro Edson Facchin: "A imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade". Do lado oposto, o ministro Alexandre de Moraes adverte que: "Não se pode transformar religiões em movimentos absolutamente neutros sem participação política e sem legítimos interesses políticos na defesa de seus interesses assim como os demais grupos que atuam nas eleições." (Abuso de poder religioso, OESP 02/07/20).

O posicionamento do ministro Facchin, como oportunista e faccioso, foi destacado em artigo do jornalista Fernão Lara Mesquita ("Notícia de falecimento", OESP, 07/07/20), lembrando que, na caminhada para a tomada do poder, um passo importante foi "cooptar a Igreja Católica, que tinha a capilaridade nacional, sem a qual não se chega ao poder". "Mas o mundo dá voltas... A partidarização da Igreja Católica fez a maioria dos brasileiros mudar de religião. Não por acaso, o ministro Facchin, que veio desse catolicismo militante, teve a ideia de propor que também o "abuso de poder" religioso" seja declarado "antidemocrático", o bastante para derrubar um governo eleito."

É preciso lembrar que a influência recíproca entre governo e religião sempre existiu, desde que o mundo é mundo. No Brasil, a religião católica já foi oficial e, durante muito tempo, foi absolutamente predominante. Há uma infinidade de cidades e acidentes geográficos com nomes de santos católicos e os feriados religiosos são também católicos. Nunca houve objeção quanto a isso, pois se trata de um valor aceito pela coletividade social brasileira. Porém, agora, há um sensível crescimento das igrejas cristãs evangélicas, com uma forte representação no Legislativo. Em resumo, não se pode ignorar que o ministro Fachin foi ativista de esquerda e está adotando um posicionamento claramente político, travestido de questão constitucional.

Em síntese, já é mais do que tempo de se abandonar a legislação eleitoral temporária e casuística. A normalidade institucional e a maturidade democrática são incompatíveis com o amoldamento da legislação aos interesses dos detentores temporários do poder. Somente uma legislação permanente, disciplinando a atividade política partidária e eleitoral com o propósito de definitividade, ou, pelo menos, de constância, de continuidade, pode trazer um aprimoramento técnico e moral, além da segurança e da certeza jurídicas.

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 é professor titular de Direito Administrativo da PUC-SP e consultor jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2020, 8h00

Escolha às cegas - ISTOÉ

URNAS E PREFEITOS

 

 

A quatro meses das eleições municipais, o pleito foi adiado para os dias 15 e 29 de novembro, a maioria dos pré-candidatos continua desconhecida. Em São Paulo (SP) e no Rio de Janeiro (RJ), por exemplo, cidades nas quais os prefeitos vão tentar a reeleição, há mais 20 pré-candidatos nessas disputas. Na lógica do modelo tradicional, eles teriam vantagem por deter o comando da máquina administrativa e pela contínua exposição na mídia.

 

Com o isolamento social imposto pela Covid-19 se prevê uma alteração na dinâmica das campanhas eleitorais e o uso mais intenso da comunicação digital. Mas, sem a realização dos comícios e atos públicos comuns nas campanhas, e com o baixo acesso à internet, a massa do eleitorado vai ter que escolher e votar em candidatos sobre os quais sabe muito pouco.

 

Ex-vice do governador João Doria (PSDB-SP), o prefeito tucano Bruno Covas tem um perfil discreto como gestor. Ganhou visibilidade ao expor a doença. Ele enfrenta um câncer no sistema digestivo desde outubro de 2019 e, após vários tratamentos, segue firme na disputa pela reeleição. Um de seus futuros adversários é o “Carteiro Reaça”, apelido do deputado estadual Gil Diniz (PSL-SP). Pré-candidato bolsonarista à Prefeitura paulistana, ele tem uma trajetória política ignorada pela maioria dos eleitores.

Outro desconhecido é o pré-candidato do Novo, o empresário Filipe Sabará. Batizado de “mini-Doria”, de quem foi secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, Sabará é a aposta de renovação do partido.

 Na capital fluminense, o bispo Marcelo Crivella (Republicanos) vai tentar a reeleição numa disputa feroz pelo voto do eleitor evangélico, também base eleitoral da pré-candidata e deputada federal Clarissa Garotinho (Pros), filha dos ex-governadores Anthony e Rosinha. De olho nessa fatia, o deputado federal Hélio Lopes (PSL) conta com a simpatia do presidente Jair Bolsonaro. Conhecido como Hélio Negão, foi o deputado mais votado em 2018, mas é visto como figurante nos eventos presidenciais. Correndo por fora da raia religiosa, e sem experiência na política partidária, o ex-presidente do Flamengo Eduardo Bandeira de Mello (Rede) deve dividir a chapa com a deputada estadual Martha Rocha (PDT).

 

Em outras capitais, como Belo Horizonte e Porto Alegre, onde, respectivamente, Alexandre Kalil (PSD) e Nelson Marchezan Jr. (PSDB) tentarão a reeleição, candidatos desconhecidos também terão dificuldades para sair do anonimato. Se o cenário de pandemia piorar, por conta de erros dos atuais prefeitos, pode ser que os novatos tenham mais chances. Mas o eleitor continuará no escuro e corre o sério risco de trocar gato por lebre.

 

 

 

Por verba e TV, Centrão apoia eleição em novembro

Antes resistentes, integrantes do Centrão passaram na segunda-feira, 29, a apoiar o adiamento das eleições para novembro. A mudança de opinião ocorre após a cúpula do Congresso indicar que pode incluir contrapartidas para a medida ser aprovada na Câmara, como até R$ 5 bilhões para prefeituras enfrentarem a pandemia da covid-19 e a retomada dos programas de partidos no rádio e na TV. Hoje, só é permitida a publicidade eleitoral.

 

A negociação foi costurada no fim de semana pelos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Segundo o deputado Marcos Pereira (SP), presidente do Republicanos, uma das siglas do Centrão, após conversar com médicos e com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, ele foi “convencido” de que adiar a votação é o melhor a se fazer.

 

“A beleza da democracia é a capacidade que temos de convencer e ser convencidos pelo diálogo. Eu fui convencido de que o adiamento das eleições para novembro é a melhor decisão a ser tomada. Estamos construindo esse consenso necessário”, disse Pereira. O parlamentar era um dos principais opositores ao adiamento.

A proposta que recebeu sinal verde do Senado prevê que a escolha de prefeitos e vereadores seja realizada em 15 de novembro (primeiro turno) e 29 de novembro (segundo turno, onde houver). Pelo atual calendário, as datas são 4 e 25 de outubro.

Até a semana passada, o discurso oficial dos parlamentares contrários à mudança era que nada garante que postergar a votação em 42 dias fará com que a pandemia seja controlada nesse período. Na prática, porém, prefeitos pressionavam integrantes do Centrão a não adiar com o argumento de que jogar as eleições para 15 de novembro, beneficiaria a oposição.

Com a possibilidade de reforço no caixa das prefeituras, porém, o discurso mudou. “Apoiamos a posição do Barroso, fazer as eleições em um calendário mais seguro para população”, afirmou ontem o prefeito de Campinas, Jonas Donizete (PSB), presidente da Frente Nacional de Prefeitos.

O valor a mais para os municípios deve ser liberado por meio da prorrogação da vigência da Medida Provisória 938, de 2020, que reservou R$ 16 bilhões para recompor perdas com a arrecadação de impostos na pandemia. Originalmente, a ajuda só seria válida até este mês. A proposta em negociação é prorrogá-la até dezembro.

“Estamos dialogando, tentando construir o apoio necessário, ou até a unanimidade, para que a gente possa votar (o adiamento da eleição). Nós ainda estamos longe disso, mas a nossa intenção é, com diálogo, chegar na quarta-feira com uma solução para esse tema”, afirmou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Além do Republicanos, outras siglas do Centrão aderiram ao adiamento. A bancada do PSD na Câmara, antes dividida, se comprometeu a apoiar a nova data. “Vamos encaminhar favoravelmente à PEC das Eleições a ampla maioria concorda com isso”, disse o deputado André de Paula (PSD-PE).

Para ser aprovada na Câmara, a PEC precisa do apoio de 308 deputados, em duas votações.

Vice líder do PL na Câmara, o deputado Marcelo Ramos (AM) disse que também vai votar com o partido a favor do adiamento das eleições para novembro. Segundo ele, o que pesou na decisão foi a proposta de retomada da propaganda eleitoral. Até sexta-feira, o PL era a favor de manter o calendário de votação. “Vai ser um descuido com o Brasil não resolver isso essa semana”, afirmou. ISTOÉ

Entenda como ficam os prazos após adiamento da eleição municipal pelo Congresso

SÃO PAULO

Nesta quarta-feira (1º), a Câmara dos Deputados aprovou a PEC (proposta de emenda à Constituição) que adia as eleições municipais de outubro para novembro, em decorrência da pandemia do coronavírus.

O texto aprovado determina a realização do primeiro turno no dia 15 de novembro e do segundo turno no dia 29 de novembro —as datas oficiais são 4 e 25 de outubro.

A legislação em vigor determina diversos prazos em relação à data de votação. Em geral, a PEC não alterou esses prazos. Isso significa que as datas serão outras, mas com o mesmo período de distanciamento em relação à data da eleição.

Pelo texto aprovado, prazos que já passaram não serão reabertos. Um exemplo disso é a data limite para regularização do título de eleitor, no dia 6 de maio.

Na opinião do advogado especialista em direito eleitoral Ricardo Stella, criar exceções para prazos que já transcorreram poderia causar confusão. "Já é um jogo complexo com regras complexas, quanto mais se cria exceções, pior fica [a compreensão]", afirmou.

Leia mais:Entenda como ficam os prazos após adiamento da eleição municipal pelo Congresso

Bolsonaro recorre à tática de Lula - Helio Gurovitz

Sem máscara, Bolsonaro faz visita surpresa a povoado em Goiás no domingo (27/6), onde abraça moradores — Foto: Reprodução/Facebook

Sem máscara, Bolsonaro faz visita surpresa a povoado em Goiás no domingo (27/6), onde abraça moradores — Foto: Reprodução/Facebook

Um dos maiores erros políticos na história recente do Brasil foi cometido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quando veio à tona o mensalão. O PSDB, na época segunda maior força política nacional depois do PT, preferiu “deixar sangrar” o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva a apoiar um processo de impeachment com base nas denúncias de corrupção. FHC acreditava que a derrota de Lula em 2006 seria fácil e bem menos traumática.

O resultado é conhecido: Lula foi reeleito numa votação em que seu adversário, o tucano Geraldo Alckmin, logrou a proeza de obter menos votos no segundo turno que no primeiro. Venceu em virtude de dois fatores. Primeiro, os acenos aos partidos fisiológicos, distribuindo cargos e verbas, lhe garantiram apoio de caciques regionais. Segundo, as políticas sociais, em especial o programa Bolsa-Família, trouxeram para a base petista a população mais pobre, cuja rejeição a Lula antes era alta.

Em seu livro Os sentidos do lulismo, o cientista político André Singer documenta a transformação no apoio a Lula entre as eleições de 2002 e 2006. Na primeira, ele foi eleito graças ao voto da classe média. Na segunda, perdeu parte substancial desse apoio em virtude do mensalão, mas venceu por ter conquistado os pobres conservadores, que sempre rejeitaram a esquerda e costumavam apoiar candidatos que defendessem a ação dura da polícia. Em São Paulo, os malufistas pobres se tornaram petistas.

Justamente esse grupo é hoje cortejado pelo presidente Jair Bolsonaro. Não é difícil entender por que seu governo mantém aprovação de 30%, apesar de toda a tragédia decorrente da pandemia, do escândalo de corrupção envolvendo a família do presidente e milícias cariocas – e de uma recessão que se desenha a maior em décadas.

Assim como Lula, Bolsonaro perdeu apoio na classe média, que se habituou a bater panelas e gritar contra o governo nas janelas. Assim como Lula, cresceu nas classes mais populares, como resultado direto do auxílio-emergencial de R$ 600 que, em diversos casos, aumentou a renda daqueles atingidos pela crise da pandemia. Assim como Lula, fechou um acordo de conveniência com deputados sem nenhuma espinha dorsal ideológica, ligados ao grupo heterogêneo que se convencionou chamar de Centrão. Pôs-se a distribuir cargos e verbas em troca de proteção contra o impeachment.

Há tempo de sobra para Bolsonaro se recuperar até a campanha eleitoral de 2022. O eleitor brasileiro, a história não se cansa de provar, tem memória curta. O presidente será ajudado ainda mais se, como quer a esquerda, o auxílio-emergencial for transformado numa renda básica universal, se tornando uma espécie de "Bolsa-Família de Bolsonaro".

Se o vírus for controlado – há perspectiva concreta de uma vacina já no primeiro semestre de 2021 – e se a economia começar a se recuperar, o movimento favorável à reeleição de Bolsonaro poderá se tornar irresistível. Naturalmente, se perdurarem os efeitos da crise econômica global ou se seu confrade Donald Trump perder a reeleição nos Estados Unidos, as chances de Bolsonaro serão reduzidas.

A construção de uma terceira via, alternativa a Bolsonaro e ao PT, não passa por enquanto de um amontoado de boas intenções. Enquanto o PT, partido mais organizado e estruturado do país, se mantiver à distância dessa articulação, como deseja Lula, as chances de ela prosperar são virtualmente nulas. E não passa de delírio acreditar que o PT possa endossar um movimento cujo candidato com maior chance é o ex-ministro Sérgio Moro.

A fragmentação do centro poderá levar 2022 a repetir, mais uma vez, o confronto entre Bolsonaro e um candidato petista. É o cenário que interessa a ambos, pois os dois lados têm mais chance de vitória na polarização. Com o PT como adversário, a reeleição de Bolsonaro se torna ainda mais provável.

O governo Bolsonaro nunca esteve tão no fundo do poço, atingido em cheio pela pandemia, pelo Caso Queiroz e por uma crise econômica sem paralelo. Mas o bolsonarismo é o fenômeno político mais relevante a surgir no Brasil desde o petismo. Sua organização é distinta. Soube usar as redes virtuais em vez dos mecanismos tradicionais de organização: sindicatos, igrejas, universidade, ONGs e partidos. Como força política, já demonstrou capacidade. Desprezá-lo, como FHC fez com Lula em 2005, seria um erro ainda mais grave para a democracia brasileira. G1

 

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