Lei não se negocia; cumpre-se
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
A propósito da demarcação de terras indígenas, em toda a existência da Nova República vigorou a tese do marco temporal, fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009: os povos indígenas só poderiam reivindicar as terras que ocupavam (ou, no mínimo, disputavam) na data de promulgação da Constituição. Em setembro de 2023, o STF reverteu sua própria jurisprudência e derrubou a tese. Antes que a decisão fosse publicada, no entanto, o Congresso aprovou uma lei normatizando o marco temporal. Partidos e organizações civis entraram com processos questionando a sua constitucionalidade.
Agora, o relator das ações, ministro Gilmar Mendes, suspendeu-as e abriu um processo de “conciliação”, convocando os autores das ações, os chefes do Executivo e do Legislativo, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República a apresentarem “propostas”.
Não é a primeira vez que o STF lança mão deste expediente exótico. Recentemente, o governo entrou com uma ação questionando a constitucionalidade da lei que regulamentou a desestatização da Eletrobras. Segundo a lei, nenhum acionista, seja qual for sua participação acionária, pode ter mais que 10% das ações com direito a voto, conforme o modelo de corporation. Ocorre que a União, ao invés de vender suas ações, optou por manter 42% do capital, e o governo reivindica um poder de voto proporcional a essa participação.
Ou seja, a União, que vendeu o seu controle para novos acionistas, agora quer anular as regras estabelecidas por ela mesma. Diante de um ato jurídico perfeito, o STF nem sequer deveria ter reconhecido a ação. Ao invés disso, porém, a Corte estabeleceu uma “negociação” entre o governo e a Eletrobras.
A “mesa de conciliação” sobre o marco temporal é ainda mais surreal, porque entre as partes de um suposto litígio constam os próprios chefes das Casas Legislativas. Segundo o ministro, é preciso “disposição política” para resolver a questão. Ora, a aprovação da lei seguiu os ritos, passou pelas comissões e pelos plenários, onde foi aprovada pelas devidas maiorias dos parlamentares. Que outra “disposição política” pode haver além dessa? Que tipo de “acordo” o ministro espera de uma negociação com representantes do Executivo e ONGs? Acaso os presidentes da Câmara e do Senado devem chegar a uma solução de compromisso e reescrever a lei de próprio punho?
Esse é só um aspecto da confusão institucional fabricada pela própria Corte. Impaciente com o contrato social consagrado na Constituição e desdobrado nas leis, o STF parece não se resignar à sua condição de intérprete e quer ser reformador, avançando sobre pautas legislativas como a descriminalização das drogas, o aborto ou a regulação das redes digitais.
O caso do marco é exemplar. A Constituição reconheceu os direitos dos indígenas sobre as terras que “tradicionalmente ocupam” (verbo no presente, não no passado nem no futuro). Para não deixar dúvida sobre a fixação temporal, o constituinte estabeleceu nas Disposições Transitórias um prazo de cinco anos para que a União concluísse as demarcações.
Agora que o STF decidiu que o marco constitucional, ora vejam, viola a Constituição, a consequência seria declarar a nova lei inconstitucional. É evidente que tal decisão causaria ainda mais tensão na relação do STF com o Congresso, mas essa perspectiva não deveria ser pretexto para que a Corte, em vez de cumprir sua função de simplesmente se pronunciar a respeito da lei, se apresentasse como mediadora de um acordo sobre essa lei. Ora, a lei só é objeto de negociação no momento em que se discute sua aprovação no Congresso; uma vez aprovada, a lei deve ser apenas cumprida.
O STF não é câmara de conciliação, muito menos para negociar direito previsto em lei. A título de, nas palavras do ministro Gilmar Mendes, evitar “grave insegurança jurídica”, o Supremo colabora para acentuá-la. Quando um Poder invade a competência de outro, pouco importa o mérito da sua decisão: há um vício de origem, e a “grave insegurança jurídica” está instalada.
A canelada do governo no Congresso
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
De maneira intempestiva, o governo adotou mais uma manobra arriscada ao pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) a suspensão da desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia e dos municípios. Ainda que saia vencedor, a estratégia pode custar caro ao Executivo, especialmente no momento em que acaba de enviar a regulamentação da reforma tributária ao Congresso.
O Executivo sempre bateu na tese de que o Legislativo deveria analisar o impacto financeiro da desoneração da folha, bem como medidas que compensassem as perdas de arrecadação que a medida acarretaria. No entanto, ausentou-se deliberadamente do debate com o Legislativo, que aprovou a prorrogação com apoio da ampla maioria dos parlamentares, inclusive de boa parte da base aliada.
Sem saída, o governo vetou a proposta, mas o veto foi derrubado sem qualquer dificuldade. Ainda assim, o Executivo insistiu no erro e publicou uma medida provisória (MP) para reonerar a folha – em pleno recesso parlamentar, no dia seguinte à promulgação da lei e logo após a aprovação de praticamente toda a agenda econômica proposta pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
O ato, por óbvio, foi interpretado como uma afronta. Não faltaram parlamentares a cobrar do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que devolvesse a proposta ao Executivo sem sequer analisá-la. O diplomático presidente do Senado, no entanto, atuou para esfriar os ânimos de parte a parte.
Em vez de devolver a MP, Pacheco concedeu tempo ao governo para que enviasse um projeto de lei para tratar do tema e tentasse chegar a um meio-termo com o Congresso e os setores envolvidos. Se isso não ocorreu até agora, não foi por teimosia dos parlamentares, mas principalmente porque a articulação política do governo falhou ao entrar atrasada no debate com o Legislativo.
O melhor, nesse caso, seria reconhecer esse erro e construir uma solução em conjunto com o Congresso. Ao ajuizar a ação nesta semana, no entanto, a Advocacia-Geral da União (AGU) surpreendeu todos e, aparentemente, a equipe econômica não soube calcular as consequências políticas dessa decisão.
Afinal, a petição ataca justamente alguns dos atos de Pacheco, como a prorrogação parcial de trechos da polêmica medida provisória editada no fim do ano passado. O ato do presidente do Senado, em si, até poderia ser questionado sob o ponto de vista jurídico, mas a ação da AGU insulta não apenas um aliado, mas o principal avalista da tentativa de construção do acordo entre governo e Congresso.
Sentindo-se traído, o presidente do Senado anunciou que entrará com recurso no STF contra a decisão do ministro Cristiano Zanin, que prontamente atendeu ao pedido da AGU e suspendeu a desoneração em caráter liminar. Os ministros Flávio Dino e Gilmar Mendes também já se manifestaram pela manutenção da decisão de Zanin, o que talvez dê ao governo a ilusão de que poderá vencer essa batalha.
Em nota divulgada após a decisão, Pacheco disse que o governo “erra ao judicializar a política e impor suas próprias razões, num aparente terceiro turno de discussão sobre o tema da desoneração da folha de pagamento”. “Só quando a discussão política é exaurida que se recorre à Justiça”, disse o senador. Ele tem toda a razão, mas o governo, sem maioria no Congresso, parece incapaz de aceitar essa derrota e não hesita em aumentar a tensão entre os Poderes para fazer valer sua posição.
Arredio a qualquer iniciativa para rever seus gastos e sabendo dos efeitos limitados das medidas de recuperação de receitas, o governo elegeu a desoneração como o bode expiatório do alcance da meta fiscal. Independentemente do que venha a ocorrer, o governo terá de lidar com as sequelas políticas de mais uma decisão desastrada.
Pacheco, por exemplo, que não é nenhum fiscalista de carteirinha, já fez a pergunta retórica à qual o governo não tem como responder. “Além de arrecadar, qual a proposta de corte de gastos para poder equilibrar as contas?”, questionou o senador. É algo que todos os que se preocupam com o futuro do País gostariam de saber.
Pacheco anuncia que recorrerá ainda hoje à decisão de Zanin contra a desoneração: 'Não há inconstitucionalidade em prorrogação'
Por Gabriel Sabóia — Brasília / O GLOBO
O presidente do Senado e do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que vai recorrer ainda nesta sexta-feira da decisão do ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu a desoneração da folha de pagamento de setores intensivos em mão de obra. Pacheco afirmou que a prorrogação da desoneração é constitucional e citou antecedentes do próprio STF a favor da prorrogação da medida.
— A lei, que é desde 2011, que vem sendo prorrogada, se sustenta inclusive no precedente do próprio Supremo Tribunal Federal, da lavra do então ministro Ricardo Lewandowski, que diz que não há inconstitucionalidade no caso de uma prorrogação — afirmou, acrescentando:
— Há o cumprimento restrito da Constituição Federal, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Não há, definitivamente, inconstitucionalidade alguma nesta prorrogação.
Na decisão, o ministro Zanin entendeu que a aprovação da desoneração pelo Congresso não indicou o impacto financeiro da medida para as contas públicas. A lei prorrogou a desoneração até 2027. Discussões no próprio STF, porém, já atestaram a constitucionalidade da desoneração das empresas, pois se trata de uma prorrogação e não de uma nova política.
Em 2021, o então ministro do STF Ricardo Lewandowski — hoje ministro da Justiça — votou para rejeitar outro pedido da AGU contra uma prorrogação anterior da desoneração das empresas.
No voto, Lewandowski afirmou que “a prorrogação do prazo de validade da substituição não pode ser considerada uma nova instituição, por não traduzir um novo regime, mas sim a manutenção de um regime já vigente e autorizado”. O julgamento não chegou a ser concluído.
Pacheco disse que a lei obedeceu a Constituição.
— Sobre qualquer ótica, há constitucionalidade do projeto. Há estimativa do impacto financeiro. São situações muito claras. É necessário analisar a ADI (ação direta de inconstitucionalidade) da AGU (Advocacia-Geral da União), que se assenta sobre um pressuposto de que proposições legislativas que criem despesas precisam de estimativa dos impactos. Isto não é verdadeiro, há, sim, a previsão e estimativa financeira e orçamentária. Este requisito evocado para acolher uma ADI não procede. Tomaremos hoje um recurso de agravo para demonstrar a realidade do que se apresenta — disse Pacheco.
'Ação precipitada'
O presidente do Senado disse que “foi uma ação precipitada, descontextualizada e fora do momento”. Pacheco reforçou também que as premissas da Advocacia da União para recorrer ao STF não são verdadeiras.
— Em relação a decisões judiciais, não se faz ataques. Sempre respeitaremos decisões judiciais. O que nos gerou perplexidade foi o comportamento do governo federal. Isto alimenta o fenômeno da judicialização da política, num momento em que resolvemos a questão do Perse (programa para setor de eventos), debatemos o adiamento de sessões do Congresso. Isto cria-se uma celeuma para municipios e setores empregadores. É uma ação precipitada, descontextualizada e fora do momento — afirmou.
Reações à Reforma Tributária: Supermercados querem mexer na cesta básica, e montadoras temem atraso na renovação de frota
O presidente do Senado acrescentou: — É preciso, sempre, exaurir a discussão política antes da judicialização. Foi uma precipitação infeliz do governo federal.
Corte de gastos
Para o presidente do Senado, o pedido da Advocacia-Geral da União apresentou é uma petição “catastrófica” e cobrou discussão sobre corte de gastos públicos.
— Petição que parece muito catastrófica da AGU como se a desoneração da folha fosse o grande mal do país e os municípios brasileiros o grande problema. É preciso então ter uma ampla discussão agora sobre gasto público e corte de gastos por parte do governo federal. Qual a proposta do governo. Além de arrecadar, qual a proposta do governo para equilibrar as contas? — questionou Pacheco.
Pacheco disse que os empresários estão perplexos e reforçou a necessidade de corte de gastos públicos.
— Todo o empresariados hoje está perplexo. Já que há uma provocação quanto a isto, vamos iniciar um grande debate, com cortes de gastos públicos. Seja do ponto de vista político, onde o Congresso só ajudou o governo, ou do ponto de vista técnico, nós temos muita convicção do bom trabalho feito.
O presidente do Congresso disse que o ano de 2023 foi proposição de meios para governabilidade e arrecadação do governo.
— Houve uma engajamento muito grande em casas onde o governo não tem maioria. É incrível deparar com isto, como se os problemas de Brasil se resumisse a desoneração de 17 setores e municípios. Isto não é verdade. A razão da desoneração sempre foi manter a empregabilidade, há uma lógica nisso — defendeu.
Por fim, Pacheco disse que colocará o tema em pauta na próxima reunião de líderes do Senado.
— Conovocarei este e outros temas da pauta, em uma reunião de líderes na semana que vem. A partir de todo processo que vier, a partir de agora, carimbaremos que isto precisa atender os municípios brasileiros. Não é só a arrecadação do governo federal que importa.
17 setores
Durante as discussões sobre o assunto pelo Congresso, especialistas, centrais sindicais e entidades empresariais defenderam a prorrogação até 2027 era constitucional.
O projeto de lei que trata da desoneração foi aprovado pelo Congresso por ampla maioria no ano passado. Depois, foi vetado integralmente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. O texto prorroga até 2027 a desoneração da folha dos 17 setores da economia que mais empregam no país.
A proposta de desoneração da folha substituiu a contribuição previdenciária patronal de empresas de setores que são grandes empregadores, de 20%, por alíquotas de 1% a 4,5% sobre a receita bruta. Essa troca diminui custos com contratações para 17 setores, como têxtil, calçados, construção civil, call center, comunicação, fabricação de veículos, tecnologia e transportes.
Zanin também suspendeu a desoneração da folha de municípios de médio porte. Essa é válida para municípios com menos de 156 mil habitantes e reduz a alíquota da Previdência de 20% para 8%.
O Brasil não precisa de mais médicos
Por Antonio José Gonçalves / O ESTADÃO DE SP
O Brasil não precisa de mais médicos nem de mais faculdades de Medicina. O essencial é garantir a qualidade da formação. Hoje, temos mais de 560 mil médicos em atuação, ultrapassando a marca de 2,7 médicos para cada mil habitantes. Também temos 389 instituições de ensino superior que oferecem o curso, e este número corre o risco de aumentar ainda mais, pois houve o lançamento de um edital, em outubro de 2023, para a obtenção de autorização do funcionamento de até 95 novos cursos privados de Medicina pelo programa Mais Médicos.
A quantidade de médicos para cada mil habitantes no Brasil supera por pouco o número dos EUA (2,6), mas vale ressaltar que o país norte-americano conta com apenas 184 escolas de Medicina, ou seja, menos da metade do que temos no Brasil hoje. A quantidade dessas instituições em território brasileiro nos garante a segunda posição mundial, atrás apenas da Índia, que, entretanto, tem uma população seis vezes maior que a brasileira, de mais de 1,4 bilhão de pessoas.
De acordo com a pesquisa Demografia Médica no Brasil 2023, realizada pela Faculdade de Medicina da USP em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB), se todos os cursos de Medicina pretendidos via ações judiciais fossem abertos, a estimativa é de que o País contaria com 1,3 milhão de médicos e 6,3 profissionais por mil habitantes em 2035, o que não é compatível com o sistema de saúde brasileiro.
Atualmente, está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação (ADC 81) que discute a constitucionalidade do artigo 3.º da Lei do Mais Médicos, sobre a abertura de cursos e vagas de Medicina em instituições privadas de ensino, incluindo os 95 previstos no edital de outubro. O objetivo seria implementar faculdades de Medicina em regiões com poucos médicos, com a pretensão de fixá-los nesses locais. Na prática, entretanto, isso não funciona e contribuiria ainda mais para a piora na educação dos profissionais, pois são localidades sem estrutura para oferecer a formação mínima adequada.
Nos últimos dez anos foram abertas cerca de 150 escolas de Medicina, a imensa maioria delas sem capacidade de atender a critérios básicos e essenciais para a formação do estudante, como a existência de leitos do SUS para a prática médica, programas de residência, presença de hospital de ensino e a existência de um corpo docente qualificado. De acordo com o Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira, cerca de 80% das escolas médicas existentes não cumprem ao menos um desses requisitos, o que demanda uma ação contundente de fiscalização.
Caso sejam criadas faculdades em regiões longínquas, com poucos médicos, é provável também que haja uma escassez de professores preparados para lecionar, o que só agravaria o cenário de má formação generalizada visto nos últimos anos. Além disso, apostar em que o aumento do número de instituições em localidades com lacunas de assistência médica resolveria o problema é um equívoco, pois nada garante que o profissional formado lá se fixe naquela cidade. A tendência é de que esses médicos busquem se especializar e atuar em lugares mais qualificados, buscando crescimento na carreira.
Em vez de nos preocuparmos com a quantidade de médicos, é imperativo que foquemos na qualidade da formação, pois é isso que garantirá um bom atendimento ao paciente. Um médico com uma formação ruim resulta numa grande oneração ao serviço de saúde como um todo, pois pode demorar mais para chegar a um diagnóstico e até mesmo pedir a realização de exames desnecessários, por exemplo, por causa de sua insegurança e má qualificação.
Nesse sentido, é necessária uma forma de avaliar os conhecimentos dos médicos recém-formados. Hoje, egressos brasileiros ou estrangeiros de instituições de Medicina fora do Brasil precisam realizar o Revalida, exame obrigatório para validar o diploma obtido internacionalmente. Da mesma forma, a Associação Paulista de Medicina e outras entidades da classe defendem a criação de um exame como esse para todos os médicos recém-formados no Brasil, garantindo que estão aptos a exercer a profissão – assim como já foi feito no passado com o exame do Cremesp e é feito na prova da OAB para os futuros advogados.
Não devemos somente aumentar o número de médicos em locais com baixo índice de assistência, mas sim elaborar estratégias para promover a interiorização dos profissionais que acabam se concentrando em grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro. O problema é complexo e demanda um esforço conjunto de uma série de agentes da sociedade. Mas uma coisa é certa: não precisamos de mais médicos.
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É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA (APM)
Liberdade ilusória, liberdade real
Por Fernando Gabeira / O ESTADÃO DE SP
A mais recente manifestação promovida por Bolsonaro, no Rio de Janeiro, reuniu menos gente e marcou também uma inflexão tática. Em São Paulo, em fevereiro, a ênfase era evitar a prisão de Bolsonaro e lembrar os presos do 8 de Janeiro, por meio do pedido de anistia. No Rio, o tema central era liberdade de expressão e apoio internacional.
A experiência acabou mostrando que esse caminho era mais promissor por duas razões. As denúncias de censura são potencialmente capazes de impressionar estrangeiros, especialmente norte-americanos. Culturalmente abertos para a liberdade de expressão, alguns são ingênuos o bastante para achar que suas leis devem valer para todo mundo.
Um outro fator importante é a abertura das grandes plataformas para a ideia de liberdade de expressão absoluta, fator essencial para a garantia dos lucros. No momento, Elon Musk e seu X estão em choque com o governo da Austrália, em torno da divulgação das imagens de um ataque a faca numa igreja. O governo acha que a divulgação estimula o crime.
Em termos teóricos, não seria necessário discutir com Bolsonaro sobre liberdade de expressão, pois é defensor da ditadura militar, aceita a tortura como forma de luta e embarca nessa luta por oportunismo.
O problema central são as pessoas que genuinamente defendem a liberdade de expressão como um valor absoluto e não aceitam nenhum tipo de limitação.
Recentemente, no Brasil, o jornalista que divulgou os Twitter Files, Michael Shellenberger, dizia orgulhosamente que a Corte americana permitiu uma manifestação nazista num bairro judeu, em 1977.
Nem todo país do mundo faria isso e por razões bem claras. Um grande teórico da liberdade, Isaiah Berlin, diria apenas que a liberdade do lobo é a destruição do cordeiro.
Berlin fez sua célebre conferência sobre o tema em 1958. Mas, ainda assim, seus argumentos são válidos. O que decorre de suas teses é que uma sociedade pluralista pode não proteger o conjunto completo de liberdades liberais, mas pode ser mais humanamente desejável do que uma sociedade liberal na qual alguns requisitos de decência mínima são violados.
Depois da 2.ª Guerra, ficou bastante evidente e acabou se consolidando em tratados que algumas práticas são tão hostis à vida humana que sua erradicação deve ter prioridade. Escravidão, tortura e perseguição racial são alguns exemplos.
Numa sociedade pluralista vista por ele, a liberdade pode entrar em choque com a igualdade, segurança e outros valores de coesão comunitária e social. Neste caso, não se pode garantir à liberdade qualquer tipo de prioridade absoluta.
O trabalho inicial de Berlin foi definir as causas do totalitarismo como uma espécie de lição do século 20. Embora adote muitos valores iluministas, ele considera que o Iluminismo é responsável, de alguma forma, por um modo de pensar religioso que entra em choque com a realidade. O problema central, na sua opinião, é muitos acharem que os valores participam de um todo harmônico e não podem estar em contradição entre si, e, se estiverem, é porque há algo errado entre eles. É uma suposição de harmonia sem a qual seria difícil imaginar Deus, a Verdade Última. Um choque com a realidade contraditória de alguns valores.
Creio que essa visão harmônica e religiosa está na base da defesa de uma liberdade de expressão absoluta, sem a qual a realidade torna-se difícil de suportar.
Recentemente, esse debate eclodiu na Escócia em torno do Hate Crime Act (ato contra o discurso do ódio). A autora de Harry Potter, J. K. Rowling, insurgiu-se contra a lei e desafiou ser presa na terra onde o Iluminismo floresceu. Ela parece não aceitar que algumas palavras podem ajudar a matar, sobretudo jovens transgêneros. Eles são o alvo de oposição de Rowling.
Aqui, no Brasil, há dificuldade de avaliar todo o processo que levou à retirada de posts e contas na internet. Só poderei fazê-lo quando puder estudar os casos detalhadamente, inclusive com a fundamentação.
No entanto, tive a oportunidade de ver pessoas incitando os generais a aderirem a uma virada de mesa, chamando-os de covardes e melancias por obedecerem aos resultados legais das eleições. A conclamação aberta a um golpe militar pode até ser permitida nos EUA, mas deveria sê-lo no Brasil, vitimado por golpes inúmeras vezes em sua história? Os neonazistas podem ser tolerados nos EUA, mas deveriam sê-lo na Alemanha, lançada numa tragédia sem fim por essa corrente política? Mesmo nos EUA, qualquer alusão a um ato terrorista, qualquer indício de preparação de algo nesse sentido, é imediatamente reprimido.
É difícil aceitar a ideia de uma liberdade de expressão absoluta sobretudo no tempo das redes sociais. Por outro lado, a ausência de uma discussão mais clara permite à censura uma latitude que ela não pode ter.
Um debate transparente e um acordo nacional sobre o tema são mais que necessários. Uma vez que as regras fiquem absolutamente claras, tornam-se mais difíceis o abuso e o exagero.
As forças políticas, no que têm de mais equilibrado, deveriam refletir sobre isso. As plataformas estão focadas no lucro. A ausência de regras claras acabará sendo pior para todos: será possível um ataque selvagem seguido de uma repressão também selvagem.
No momento todos perdem, embora a direita trabalhe com a ilusão de que se possa vitimizar para dar a volta por cima nas inúmeras acusações que sofre.
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JORNALISTA
Empresas criticam suspensão da desoneração da folha e dizem que medida pode afetar empregos
O ESTADÃO DE SP
A concessão de uma liminar, pelo ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendendo a desoneração da folha de pagamentos de 17 setores da economia provocou uma forte reação dos setores envolvidos. A avaliação é que a decisão gera uma situação de insegurança jurídica e coloca em risco empregos e o equilíbrio econômico-financeiro das empresas. Um cálculo da União Geral dos Trabalhadores (UGT) aponta para a possibilidade de perda de 1 milhão de empregos no País sem a desoneração. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, prometeu recorrer da decisão de Zanin.
“Esperamos que no julgamento do mérito da ação impetrada pelo governo contra os efeitos da Lei 14.784/2023, que prorrogou a desoneração até 2027, esta seja mantida pelo STF”, disse, em nota, a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). “Caso contrário, as consequências econômicas e sociais serão graves, com agravamento do desemprego.”
De acordo com a associação, cabe considerar que “as empresas, embasadas na promulgação soberana de uma lei pelo Congresso Nacional, já fizeram investimentos, contrataram pessoas e se planejaram para um ambiente regulatório, até 2027, no qual os custos trabalhistas referentes à contribuição previdenciária patronal seriam menores. Portanto, um retrocesso da legislação seria altamente nocivo, evidenciando por que a insegurança jurídica tem sido um dos fatores mais corrosivos da competitividade e agravamento dos custos das empresas que operam no Brasil”.
Segundo a Abit, ao judicializar essa questão, “o Executivo cria um cenário de total imprevisibilidade, que gera incertezas, abala a confiança dos setores produtivos e conspira contra a manutenção e criação de empregos”.
Para a presidente da Federação Nacional de Call Center, Instalação e Manutenção de Infraestrutura de Redes de Telecomunicações e de Informática (Feninfra), Vivien Mello Suruagy, a decisão de Zanin mostra falta de sensibilidade com as empresas e, principalmente, com os trabalhadores. “Estamos em choque com essa decisão, que vai estimular a quebra de empresas e causar demissões. Haverá paralisação de investimentos essenciais e uma perda de credibilidade do País, por causa da insegurança jurídica”, disse, em nota.
Vivien Suruagy lembra, ainda, que a decisão liminar contraria a vontade de grande parte do Congresso. “Onde está o respeito à maioria dos parlamentares, que aprovaram no ano passado a continuidade da desoneração até 2027 e, posteriormente, derrubaram o veto presencial que restringia seus efeitos?”
A executiva ressaltou, na nota, que o próprio Supremo, por meio do então ministro Ricardo Lewandowski, já julgou em 2021 a constitucionalidade da desoneração. “O governo está alegando, agora, a inconstitucionalidade da medida. Vai mudar o que já foi decidido por Ricardo Lewandowski, que agora é ministro da Justiça?”, argumentou. “É uma incoerência de um governo que, historicamente, sempre defendeu a bandeira do emprego.”
Outro setor atingido, o calçadista, também reagiu. O presidente executivo da Abicalçados, Haroldo Ferreira, disse que a medida é um retrocesso, já que a desoneração da folha de pagamentos já havia sido amplamente discutida - e aprovada - no Congresso Nacional, inclusive com parlamentares da base de apoio do Governo Federal.
“É um balde de água fria para o setor calçadista, que recentemente reportou a criação de mais de 5 mil empregos no primeiro bimestre do ano, no que parecia ser o início de uma recuperação lenta e importante depois de um ano de 2023 de dificuldades”, disse, em nota. Segundo o executivo, a decisão do STF ilustra o crescimento dos custos produtivos no Brasil. “O assunto estava pacificado após ampla mobilização e discussões no Congresso Nacional, mas infelizmente o Governo Federal não respeitou a vontade do parlamento. É uma medida que enfraquece a política e a própria democracia.”
O presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech, foi outro que criticou a decisão de Zanin. “O entendimento geral é que a extensão da desoneração dos 17 setores é plenamente constitucional. A manutenção da desoneração tem sido decisiva na geração e preservação de empregos”, disse.
Flavio Roscoe, presidente da Federação das Indústrias dos Estados de Minas Gerais (Fiemg), disse que a decisão liminar de Zanin é um equívoco e gera insegurança jurídica. “A desoneração já existe há mais de 10 anos, foi aprovada pelo Congresso e criada pelo próprio governo que está questionando. Essa questão está mais do que fundamentada. Na nossa leitura, isso cria uma instabilidade jurídica enorme e acreditamos que esse não é o melhor caminho.”
Para ele, na prática, esse valor não estava previsto no Orçamento federal, já que a desoneração existe há uma década. Nesse caso, não há supressão de receita, que é o argumento do governo ao STF. “O governo apenas manteve um incentivo já vigente, não houve uma isenção adicional. Nesse sentido, a inconstitucionalidade não existe, tanto é que o governo não a adotou na primeira iniciativa, ele tentou mudar a medida no Congresso. Como não deu certo, ele decidiu judicializar.”
Trabalhadores
Além das empresas, a suspensão da desoneração também preocupa sindicatos de trabalhadores, por seus potenciais efeitos nos empregos. “A desoneração da folha permite que as empresas mantenham e, principalmente, aumentem o nível de emprego”, disse, em nota, Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT). “Até um estudante de economia em formação sabe que emprego gera renda, renda impulsiona o consumo, e o consumo resulta em impostos, os quais o governo afirma perder com a desoneração da folha. Logo, há uma incoerência na decisão.”
Para Patah, a decisão do ministro Zanin tem efeito imediato. “Já na próxima semana é possível que ocorra um aumento no volume de demissões em todo o país. A UGT, representando 12,5 milhões de trabalhadores de todos os setores econômicos, espera que o STF julgue a ação de forma definitiva, rejeitando os argumentos do governo e restabelecendo o projeto aprovado pelo Congresso, evitando assim milhares de demissões”, disse.
Municípios
A decisão de Zanin, que foi acompanhada nesta sexta-feira, 26, pelos ministros Flávio Dino e Gilmar Mendes, provocou reação também dos prefeitos - a decisão suspendeu a desoneração das folhas dos municípios. Em nota, o presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, disse “repudiar profundamente” que o governo federal “atue pela retirada de uma conquista estimada em R$ 11 bilhões por ano ao judicializar a Lei 14.784/2023″.
“É lamentável retirar a redução da alíquota para aqueles que estão na ponta, prestando serviços públicos essenciais à população, enquanto há benefícios a outros segmentos, com isenção total a entidades filantrópicas e parcial a clubes de futebol, agronegócio e micro e pequenas empresas”, disse. “O movimento municipalista reitera que a Lei 14.784/2023, nesses três primeiros meses do ano, garantiu uma economia de R$ 2,5 bilhões, do total de R$ 11 bilhões estimados para o ano.”
Estudo do governo
A Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda, porém, divulgou um novo estudo nesta sexta-feira, 26, colocando em xeque a eficiência da política de desoneração da folha de pagamentos do setor privado. “Dado o elevado custo fiscal da medida (R$ 15,8 bilhões estimados para 2024), que implica menor disponibilidade de recursos para outras políticas públicas essenciais, pode-se concluir que a prorrogação irrestrita do modelo de desoneração contraria o interesse público”, diz o documento.
O estudo avaliou a dinâmica das atividades desoneradas em relação às que não tiveram o benefício. O documento diz que as atividades desoneradas representavam 17% do número de vínculos e 7% da massa salarial em 2021, números que diminuíram ao longo da vigência da política, no agregado. “Embora não se trate de números desprezíveis, não há respaldo para o rótulo de ‘17 maiores empregadores’”, diz o texto. Segundo o documento, no período entre 2015 e 2021, as atividades desoneradas tiveram retração no número de vínculos e no rendimento agregado, ao passo que as atividades não desoneradas expandiram o número de vínculos e a massa salarial.
O pedido de suspensão da desoneração, feito pela Advocacia Geral da União ao STF e acatado por Zanin, argumenta que a lei que prorrogou a desoneração é inconstitucional porque não demonstrou o impacto financeiro da medida.
Mas a judicialização do tema criou um novo embate do governo com o Legislativo. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, prometeu entrar ainda hoje com recurso contra a decisão. Segundo ele, o Congresso aprovou medidas para o governo aumentar sua arrecadação, e que esse incremento paga a desoneração sem problemas.
Idas e vindas
Adotada desde 2011, a desoneração é um benefício fiscal que substitui a contribuição previdenciária patronal de 20%, incidente sobre a folha de salários, por alíquotas de 1% a 4,5% sobre a receita bruta. Na prática, a medida reduz a carga tributária devida pelas empresas. O benefício, porém, perderia a validade no fim do ano passado.
O Congresso, então, aprovou em outubro um projeto prorrogando até 2027 a desoneração da folha de 17 setores e também reduzindo a alíquota de contribuição previdenciária de pequenos municípios. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou o projeto em novembro, mas o Congresso derrubou o veto integral em 14 de dezembro, com placares folgados. O governo tentou a reoneração via medida provisória, o que acabou não dando certo, por conta da forte reação do Congresso. A ida ao STF é, por isso, apenas o mais novo capítulo dessa briga.
Veja abaixo quais são os setores afetados pela medida:
- Confecção e vestuário;
- Calçados;
- Construção civil;
- Call center;
- Comunicação;
- Empresas de construção e obras de infraestrutura;
- Couro;
- Fabricação de veículos e carroçarias;
- Máquinas e equipamentos;
- Proteína animal;
- Têxtil;
- TI (tecnologia da informação)
- TIC (tecnologia de comunicação)
- Projeto de circuitos integrados;
- Transporte metroferroviário de passageiros;
- Transporte rodoviário coletivo;
- Transporte rodoviário de cargas.