O que é falso? J.R. Guzzo, O Estado de S.Paulo
Só se pode proibir legalmente alguma coisa se a lei diz o que é essa coisa. O que é ‘fake news’?
Está em discussão, ou pelo menos senadores e deputados dizem que está, mais um desses projetos de lei que fazem do Brasil um país realmente fora de série. É a lei das chamadas “fake news”, que se propõe a obrigar os brasileiros, a partir de sua aprovação, a dizerem só a verdade nas comunicações que fazem pela internet – nada menos que isso. Se publicarem alguma “notícia falsa” nas redes sociais, ou alguma “desinformação”, serão castigados. Ainda não se sabe direito quais seriam os castigos, mas a ideia geral é essa: banir a circulação de mentiras, nos meios de comunicação eletrônicos, em todo o território nacional.
Nunca se viu nada parecido neste país, em seus 520 anos de história oficial: políticos querendo que se diga a verdade. Num primeiro momento, tentou-se aprovar o projeto por “teleconferência”, sem reunião do plenário do Senado, sem aprovação prévia nas comissões técnicas, sem ouvir ninguém – nem os próprios senadores. Alguém lembrou que seria preciso dizer quem, exatamente, vai decidir sobre a aplicação das penas; ao que parece, estão pensando em dar esse serviço para os 18 mil juízes brasileiros. Foi apontado, também, que a correria para a aprovação da nova lei era incompreensível: não há, simplesmente, uma emergência nacional capaz de justificar esses extremos de urgência urgentíssima. No fim, adiou-se a decisão para mais tarde.
Um mínimo de bom senso comum aconselharia os nossos parlamentares, antes de qualquer outra consideração, a pensarem no seguinte: será que eles teriam, sinceramente, a capacidade de legislar sobre a verdade? Mas o bom senso comum nunca foi um elemento obrigatório na vida política nacional – e o resultado, mais uma vez, está aí. Basta, no caso, fazer uma pergunta-chave: o que é uma notícia falsa? Só é possível proibir legalmente alguma coisa se a lei diz, com 100% de clareza, o que é essa coisa. Ninguém tem dúvida sobre o que é um homicídio. O Código Penal, no artigo 121, diz que homicídio é “matar alguém”. E “fake news”? O que é?
É muito justo, claro, proibir o uso de “robôs”, identidades falsas e outras patifarias eletrônicas. Mas para que todo o resto? A única coisa boa que poderia acontecer com a lei das “fake news” é cair no arquivo morto. Notícias falsas, nas redes sociais ou em qualquer meio de comunicação, só podem ter um juiz: o público. É a ele que cabe decidir se acredita ou não no que lê, ouve ou vê – e a ele é que cabe punir, com o seu descrédito, quem está dizendo a mentira. Não pode ser tratado como um idiota, incapaz de julgar as informações que recebe. O resto é violar o artigo 5 da Constituição brasileira.
Elite intocada - FOLHA DE SP
Nutrida por generosos recursos públicos, a elite dos servidores do Estado brasileiro tem o dever de partilhar dos custos econômicos impostos a toda a população pela pandemia de Covid-19. Não é o que pensam, no entanto, as autoridades consultadas por esta Folha ao longo das últimas duas semanas.
A lista inclui o presidente Jair Bolsonaro, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, todos os ministros do Poder Executivo e do Supremo Tribunal Federal, o procurador-geral da República, os presidentes dos dez maiores partidos políticos, governadores e prefeitos de capitais.
Questionados sobre a possibilidade de cortes em seus próprios salários e nos do funcionalismo, quase todos ficaram calados ou se manifestaram contra a ideia.
A elite pública brasileira parece crer em uma realidade paralela de fartura de recursos. Nem de longe é o caso. As projeções para o déficit orçamentário neste ano já se aproximam dos R$ 800 bilhões, e isso sem contar os juros de uma dívida pública em disparada.
Enquanto a suspensão de contratos de trabalho e a redução de até 70% nos salários atingem cerca de 9 milhões de trabalhadores, as corporações estatais se eximem da responsabilidade de propor medidas de cortes de gastos fixos. Em cálculos simples, uma redução de vencimentos em 25% por três meses geraria R$ 35 bilhões.
O gasto público com pessoal ativo no Brasil —estimado, segundo metodologia internacional, em quase 14% do Produto Interno Bruto— está entre os mais altos do mundo, graças principalmente aos salários muito superiores aos do setor privado. O Judiciário, em particular, apresenta custos sem paralelo entre os principais países.
Ressalve-se o bom exemplo de autoridades como os governadores do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), e do Piauí, Wellington Dias (PT), que reduziram voluntariamente seus contracheques e os de auxiliares.
Trata-se, porém, de iniciativas apenas simbólicas, de ínfimo impacto orçamentário. A nova realidade trazida pela pandemia exige o enfrentamento amplo de privilégios e desperdícios. Desde já.
Fachin suspende operações policiais no Rio durante a pandemia
O GLOBO
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, determinou nesta sexta a suspensão das operações policiais em favelas do Rio até o fim da pandemia do coronavírus.
Em decisão liminar, o ministro afirmou que as operações só deverão ocorrer "em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com comunicação imediata ao Ministério Público".
Leia também: Seu Creysson do bolsonarismo virou caso de polícia
Nesses casos, a polícia terá que adotar "cuidados excepcionais" para "não colocar em risco ainda maior a população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária".
No último dia 20, uma operação da PM causou pânico na Cidade de Deus enquanto voluntários distribuíam cestas básicas e itens de higiene. A ação matou João Vitor Gomes da Rocha, de 18 anos. Segundo a polícia, ele era investigado por suspeita de roubo de veículo.
Fachin atendeu a pedido do Partido Socialista Brasileiro, que recorre ao Supremo contra a política de segurança de Wilson Witzel desde novembro passado.
A decisão é mais uma derrota política para o governador, que já perdeu seis secretários desde que foi alvo de buscas na Operação Placebo, no último dia 26. A Polícia Federal investiga se ele participou de um esquema de corrupção na saúde.
Moro equipara PT e Bolsonaro e acena pela primeira vez a movimentos contrários ao presidente
O ex-ministro Sergio Moro acena pela primeira vez aos recém-criados movimentos que se autodenominam pró-democracia e equipara o PT (Partido dos Trabalhadores) ao presidente Jair Bolsonaro.
Para Moro, o partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não reconhece erros cometidos durante seu período no governo federal em relação aos desvios na Petrobras. Isso equivale, nas palavras do ex-juiz da Lava Jato, ao discurso negacionista de Bolsonaro sobre a pandemia do coronavírus. "É um erro isso", diz.
Em entrevista à Folha, Moro diz que está "em aberto" a possibilidade de ele aderir a esses movimentos em defesa da democracia e contra o governo.
Afirma não ver constrangimento em integrar manifestos que possam ter membros críticos a seu trabalho como juiz da Lava Jato, apesar das resistências de alguns setores a seu nome. "Na democracia temos muito mais pontos em comum do que divergências. As questões pessoais devem ser deixadas de lado", disse. "Não fui algoz de ninguém".
No dia 23 de abril, a Folha revelou que Moro havia pedido demissão do Ministério da Justiça após ser avisado por Bolsonaro da troca no comando da Polícia Federal.
Ele deixou o governo acusando o presidente de interferência na PF. Na entrevista, disse esperar que o procurador-geral da República, Augusto Aras, atue com independência na investigação que tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o caso.
O ex-ministro da Justiça fala em "arroubos autoritários" por parte de Bolsonaro, mas diz não ver nas Forças Armadas espaço para um golpe.
Grupo que inspirou #Somos70PorCento é heterogêneo, mas crítico a Bolsonaro, indica Datafolha
No último final de semana uma hashtag se espalhou pelas redes sociais do país com base na mais recente pesquisa nacional do Datafolha sobre a avaliação do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O movimento #Somos70PorCento leva em conta o percentual aproximado de brasileiros que não aprova o governo em contraposição aos 33% que o consideram ótimo ou bom.
A iniciativa se diz suprapartidária e se coloca em defesa da democracia. Seu cálculo, que soma taxas de avaliação regular com as de reprovação, no entanto, merece nota técnica.
A pergunta que mede a popularidade do presidente é uma variação de escalas aplicadas internacionalmente há décadas em pesquisas de mercado e opinião para se medir satisfação quanto a um determinado tema.
O objetivo é dar conta do gradiente de sentimentos da população, com simetria entre respostas positivas e negativas, contemplando-se um ponto intermediário neutro.
Nas pesquisas de avaliação de governantes, o Datafolha historicamente utiliza uma escala de cinco pontos, dois positivos (ótimo e bom), dois negativos (ruim e péssimo) e um neutro (regular). Além disso, há o percentual residual dos que espontaneamente dizem não saber se posicionar.
Nada garante que, diante de uma pergunta dicotômica (que apresenta duas alternativas para a resposta –aprova ou desaprova, por exemplo), a maioria da população se posicionaria da forma como defende o movimento #Somos70PorCento.
De qualquer forma, ao separar apenas o grupo que avalia o governo como regular, nota-se tendência preponderante de concordância com temas negativos ao atual governante.
Feita a ressalva, para verificar se de fato há uma tendência contrária ao governo nesse contingente e revelar o perfil do conjunto que ele representa, o Datafolha elaborou um exercício de recodificação de sua última pesquisa, somando os 43% que avaliam o governo como ruim ou péssimo aos 22% que o consideram regular e aos 2% que não se posicionaram.
Reuniu o grupo sob o rótulo de “não aprovam o governo Bolsonaro”. E os resultados trazem contrastes marcantes em comparação com o estrato que apoia o governo –há realmente uma postura bastante crítica ao presidente entre os que não o consideram ótimo ou bom.
É um conjunto mais feminino do que o dos que avaliam Bolsonaro positivamente (57% são mulheres, taxa que corresponde a 46% entre os que consideram o presidente ótimo ou bom).
O grupo é mais jovem, tem menor renda e a participação de empresários no estrato é inferior em seis pontos percentuais em relação ao estrato que aprova Bolsonaro.
Nos demais aspectos, o estrato se mostra diverso e heterogêneo como a população –quanto à escolaridade, cor e ocupação, por exemplo, não há variações significativas.
Cerca de um em cada quatro integrantes desse grupo votou em Bolsonaro na última eleição, mas a maioria não (74%). Quase metade do segmento (47%) é composto por antibolsonaristas heavy (intensos), isto é, além de não terem votado no presidente, reprovam o desempenho de seu governo e nunca confiam em suas declarações.
Na escala de avaliação de Bolsonaro, 52% citam o extremo negativo –péssimo— como resposta para qualificá-lo. Para 54%, Bolsonaro nunca se comporta como um presidente da República, índice que corresponde a 37% entre os brasileiros de um modo geral e apenas a 3% entre os que o consideram ótimo ou bom.
A grande maioria do estrato afirma que Bolsonaro não tem capacidade para liderar o país e as taxas de apoio ao impeachment e à renúncia do presidente superam a média em 20 pontos percentuais.
Ao contrário dos que aprovam Bolsonaro, o grupo acredita muito mais no ex-ministro Sergio Moro do que no presidente no episódio sobre a interferência na Polícia Federal, assim como, na grande maioria dos casos, critica a presença de militares no governo e enfatiza o descumprimento de promessas da campanha na negociação de cargos e verbas com o centrão em troca de apoio político.
Sobre a epidemia do novo coronavírus, a taxa dos que reprovam Bolsonaro no combate à doença é superior em 21 pontos percentuais à verificada na média da população e chega a 71%. Por outro lado, no grupo que o considera um presidente ótimo ou bom, o resultado é o inverso –69% aprovam seu desempenho na crise sanitária.
A tendência não se repete em relação ao Ministério da Saúde (as opiniões do grupo se dividem): 38% aprovam a atuação da pasta, 35% a consideram regular e 25% ruim ou péssima. Entre os que avaliam positivamente Bolsonaro como presidente, a maioria aprova seu ministério.
O resultado muda quanto aos governadores –a maioria dos que não aprovam Bolsonaro avaliam positivamente o desempenho dos gestores estaduais enquanto as opiniões se dividem no grupo dos que classificam o presidente como ótimo ou bom.
É fácil entender o motivo dos contrastes –o conjunto dos que não aprovam o presidente se coloca muito mais favorável ao isolamento social do que seus antagonistas, mesmo enxergando (mais do que eles) reflexos nocivos à economia do país por um longo período.
E estão mais pessimistas do que os apoiadores do presidente –ao contrário desse estrato, a maioria dos que não o apoiam se diz desanimada, com medo do futuro, triste e insegura, todas as percepções em patamares próximos ou muito superiores a 70%.
Como se vê, o desalento que predomina nesse contingente, somado a seu peso quantitativo, o torna objeto de cobiça para a oposição. Sua heterogeneidade social não anula a coesão que demonstram na crítica ao governo. Agora a comunicação que os reuniu sob um mesmo rótulo terá o desafio de definir a mensagem direta que determinará ou não o engajamento almejado.
'Bolsonaro vai de rival da quarentena a quarentenado isolado', diz psicanalista Christian Dunker
Excetuando-se os raros centenários espalhados pelo mundo, praticar quarentena com isolamento social devido a uma pandemia é algo inédito para todos. Com isso em mente, fica óbvio o humor no título de Christian Dunker, “A Arte da Quarentena para Principiantes” (Boitempo, 77 páginas): não há peritos entre nós.
Psicanalista e professor titular da USP, Dunker mira o momento atual sob dois recortes. Um, da saúde mental; outro, da regionalização do enfrentamento ao coronavírus. E conta à Folha que arrisca, mesmo no caos, tentar fazer rir.
Para ele, o Brasil é um país onde a produção de inimigos foi retórica de campanha e virou método de governo. Aqui, portanto, a estratégia de enfrentamento de um adversário real – “uma forma de vida composta de uma capa de gordura com proteína” – acaba contaminada e menos eficaz.
No livro, o psicanalista avalia como a pandemia vem para destruir o engrandecimento narcísico da sociedade atual, e fala em “oniropolítica”, conceito em que o futuro é feito de solidariedade e sonho, e onde “Bolsonaro não governa mais este país”.
“A Arte da Quarentena para Principiantes” é um livro sobre a quarentena, um livro sobre o governo ou um livro sobre o governo na quarentena? É um livro sobre o governo na quarentena, e eu diria que é um governo sob o risco de entrar em quarentena ele próprio, no sentido de se isolar, de perder contato com as instituições. Basicamente, tento ajudar as pessoas a interpretar essa situação inédita, em que a gente vai buscar referências para lidar com isso, para tornar o desconhecido um pouco mais conhecido, e não encontra. Elas são ou muito antigas, do tempo da peste, ou não são suficientemente fortes para falar da mudança que realmente aconteceu.
Você menciona que, no Brasil, havia “uma produção contínua de inimigos imaginários”. Com quais sentimentos um indivíduo afeito a essa prática tem de se deparar quando finalmente surge um inimigo real?
É um sentimento de extrema contrariedade, porque cada país foi atravessado pelo coronavírus a partir do seu próprio processo. No Brasil, a polarização exigia das pessoas que se eliminasse a posição do terceiro. Só existia ser a favor ou ser contra.
Quando você tem um terceiro, que não é vermelho, nem azul, você introduz um lugar, e isso coloca a gente em contato com o resto do mundo. Isso dá mais valor para a comunidade de cientistas, pesquisadores, que estavam envolvidos justamente nessa produção de inimigos. Eles tinham se tornado verdadeiros inimigos inclusive do ministro da Educação, como se fossem inconsequentes, plantadores de maconha, de quem se deve tirar bolsas, insumos e financiamento.
É muito contraditório quando você tem a aparição de um terceiro que nega essa lógica. As pessoas eventualmente vão cair desse negacionismo quando forem elas mesmas contaminadas ou perderem um familiar.