Damares anula 295 anistias concedidas a cabos por perseguição na ditadura
O governo federal anulou 295 anistias concedidas a ex-cabos da Força Aérea Brasileira (FAB) por perseguição política na época da ditadura militar (1964-1985). A lista com as nulidades foi publicada no Diário Oficial da União desta segunda-feira, 8, e faz parte da força-tarefa criada pelo governo com o intuito de reavaliar esses benefícios.
As portarias extinguindo as concessões foram assinadas pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que alegou não haver comprovação da existência de perseguição política. Em relação às verbas indenizatórias já recebidas, os agora ex-anistiados não serão obrigados a devolvê-las.
No bastidores, o governo tem falado em cortar na própria carne. Mas a força-tarefa foi implantada após uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a revisão pela administração pública, e até a anulação, de anistias concedidas a um grupo de cerca de 2,5 mil ex-cabos da FAB.
A deliberação do STF, de outubro de 2019, foi comemorada pelo governo na época, pois comprovaria a tese de que houve excessos na concessão de anistias nos governos anteriores.
Os ministros do STF analisaram o ato da Comissão de Anistia, então vinculada ao Ministério da Justiça, que concedeu indenizações a esses militares licenciados pela portaria nº 1.104-GM3, de 1964, sob o fundamento de perseguição política durante a ditadura.
O grupo de trabalho que está revisando as anistias é composto por membros da Advocacia Geral da União (AGU), Controladoria Geral da União (CGU), além de representantes do próprio ministério comandado por Damares, que coordena a equipe.
Para a AGU, os pagamentos são indevidos porque a portaria que os licenciou se baseou em tempo de serviço, e não em perseguição política. Boa parte deles, informou o MDH à coluna, foi condecorada por serviços prestados na carreira militar.
Segundo o MDH, o Ministério da Defesa, que é o responsável pelo pagamento de anistias a militares, desembolsaria de uma só vez R$ 13 bilhões em pagamentos retroativos, caso o STF tivesse decidido pela não revisão e anulação das anistias aos ex-cabos.
Para o advogado dos ex-militares, Marcelo Torreão, o valor que seria pago era menor, algo em torno de R$ 900 milhões, mas com a liberação do dinheiro em partes, escalonada entre os anistiados da força militar. VEJA
Na mira da esquerda e da direita bolsonarista, Moro vive isolamento nas redes
Rejeitado por movimentos pela democracia, o ex-ministro Sergio Moro também tem encontrado dificuldade para achar seu lugar na oposição ao presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais. Embora busque se posicionar virtualmente no campo crítico a Bolsonaro, ainda que na direita, sua posição tem sido questionada por perfis mais à esquerda que integram o grupo de oposição ao presidente no Twitter. Para o diretor da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP/FGV), Marco Aurélio Ruediger, o ex-ministro está isolado e restrito ao campo lava-jatista.
— Bolsonaro tem uma erosão da credibilidade e Moro viu nisso uma oportunidade, fez contraponto, mas não tem a máquina do bolsonarismo de circulação de narrativas. Por outro lado, segmento expressivo da esquerda, principalmente o PT e PSOL, atacam Moro até mais que a Bolsonaro. Moro fica numa situação em que quer brigar, busca um segmento de direita crítico ao bolsonarismo, mas não consegue sair dai, não consegue crescer em direção ao centro. Essa situação pode mudar a depender do enfraquecimento de Bolsonaro — avalia.
Por outro lado, de acordo com levantamento da DAPP/FGV, Moro tem sido capaz de mobilizar alto volume de postagens na rede social e tem mantido relevância no debate por lá. No período entre 24 de abril e 29 de maio, foram 10,6 milhões de postagens sobre o ex-ministro no Twitter. Apenas Jair Bolsonaro apresenta volumes regulares de menções mais altos mensalmente.
A postagem de maior impacto de Moro no período foi a da explicação, após a saída do governo, de que a permanência de Mauricio Valeixo da Policia Federal nunca foi utilizada como “moeda de troca” para a nomeação ao STF, em 24 de abril. O grupo à direita respondeu pela maior parte das interações e perfis engajados em discutir sobre o ex-ministro, e com pico de atuação pró-governo na semana entre 8 e 14 de maio, quando 59% dos perfis que falaram sobre Moro estavam incluídos nesse grupo, responsável por 72% dos retuítes.
Em todo o período analisado pela DAPP, o ministro fez apenas 38 postagens, uma média de uma publicação por dia. Em todos os tuítes, Moro somou mais de 90 mil curtidas e alto volume de retuítes. Seu número de publicações, no entanto, é inferior ao de outros políticos e influenciadores da base pró-governo Bolsonaro. Em seu perfil, Moro tem não só se dedicado a abordar a situação direta de antagonismo com o governo, mas também a pandemia de Covid-19 e a disseminação de “fake news”.
O empresário Paulo Marinho foi relevante influenciador do grupo de Moro. No fim de maio, o antigo aliado de Bolsonaro prestou depoimentos à Polícia Federal após afirmar que o senador Flávio Bolsonaro soube com antecedência de operação contra o ex-assessor Fabrício Queiroz.
Marlen Couto / FOLHA DE SP
Flexibilização do isolamento e manifestações naturalizam as mortes: Bolsonaro tinha razão?
A irresponsabilidade tomou conta do país e, agora, ninguém sabe mais o que está valendo. Aos poucos estamos caminhando para o “salve-se quem puder”, em um voo cego, com o governo federal sonegando dados e os estados e municípios sem saber bem o que fazer.
Se estávamos indo mal no enfrentamento da pandemia, agora estamos ainda pior. Não fizemos a lição de casa, o número de casos e de mortes tem crescimento exponencial mas governadores e prefeitos estão flexibilizando a quarentena, enquanto atos contra o presidente geram aglomerações físicas que colocam em risco os próprios manifestantes, suas famílias e uma maior disseminação do vírus.
Durante cem dias, Bolsonaro foi condenado por um amplo leque político (governadores, aliados neoliberais, opositores de esquerda, ONGs, mídia e autoridades sanitárias), por defender a abertura do comercio, o isolamento vertical e manifestações de rua, com aglomerações em meio à pandemia. Suas atitudes são consideradas um crime de responsabilidade por expor a população ao risco de contrair e difundiu um vírus de alta letalidade.
O país ficou dividido entre os que defendiam a vida e os negacionistas, que desconsideravam as recomendações sanitárias e naturalizavam a pandemia e suas consequências, como as mortes e o colapso do sistema de saúde.
A confusão decorrente dos sinais contraditórios emitidos pelas autoridades, contribuiu para que o isolamento físico, recomendado como a única “vacina” contra o vírus, fosse um dos mais ineficientes do planeta.
O ponto mais baixo de movimentação de pessoas no país ocorreu no final de março: 35% do fluxo de um dia normal. Países fortemente afetados, Espanha e Itália atingiram, respectivamente, 11% e 14%. A Argentina obteve um índice ainda menor, chegando a 9% da movimentação de um dia normal. País com características semelhantes, nosso vizinho tem 12,8 mortos por um milhão de habitantes, enquanto o Brasil alcançou 172 mortos por milhão, cerca de 14 vezes mais, mostrando a eficiência da quarentena, que lá foi prorrogada até o final de junho.
Mas Bolsonaro não foi o único responsável pelo baixos índices de isolamento. Governadores e prefeitos, que institucionalizaram a quarentena, não implementaram políticas públicas complementares que possibilitasse à população vulnerável cumprir essa determinação.
O desastre do Rio de Janeiro, onde o governador Wilson Witzel, imerso em um mar de lama e de mortos, sequer conseguiu colocar em funcionamento os hospitais de campanha que contratou, é um caso extremo de incompetência e escárnio pela população.
Já em São Paulo, onde a gestão da saúde vem conseguido resultados satisfatórios, prefeitura e governo do Estado foram incapazes de formular uma estratégia para garantir um isolamento efetivo e uma redução dos casos que agora pudesse permitir uma flexibilização com segurança sanitária. Como escrevi nessa coluna em 11 de maio, “Enquanto Bolsonaro, no jet sky, diz ‘e daí’, Bruno e Doria não sabem como enfrentar a pandemia”.
Não foram criadas barreiras sanitárias, de modo que o vírus se alastrou do centro expandido, onde chegou primeiro, para a periferia do município, região metropolitana e interior do Estado. Ao menos 558, dos 667 municípios do Estado, tem casos confirmados e o vírus continua se espalhando. Testes massivos não foram realizados.
Não foram criados programas de proteção social complementares à renda emergencial em escala compatível. A maior parte das famílias que tem crianças na rede de ensino não está recebendo compensação pela perda da alimentação escolar, restrita aos cadastrados no Bolsa Família.
O programa municipal Cidade Solidária tem distribuído, com o apoio da sociedade civil, cerca de 100 mil cestas básicas por mês, o que corresponde a cerca de 2% das famílias paulistanas. Apenas para comparar com um caso de sucesso (eles existem no Brasil!), Belo Horizonte, com menos de um quarto da população, criou um programa de auxílio que distribui 400 mil cestas básicas por mês.
Praticamente nada foi feito para atenuar a superocupação das moradias precárias, como a utilização de hoteis para alojamento provisório dessa população. Em São Paulo, o problema afeta três milhões e é especialmente grave para 250 mil pessoas que dividem o dormitório com outras 5 ou mais moradores.
Os distritos centrais, que concentram cortiços e ocupações de edifícios ociosos, como Pari, Belém, Brás, República e Santa Cecília, têm os mais altos índices relativos de mortes da cidade: uma morte para cada 800 habitantes.
Não se garantiu para a população de baixa renda o acesso livre e gratuito à internet, recurso essencial no isolamento para a educação à distância, o home office, a comunicação com familiares, a sociabilidade e o entretenimento.
Apenas a partir de hoje, mais de dois meses depois da prefeitura ter reduzido a frota de ônibus, adotou-se a orientação dos veículos apenas transportarem passageiros sentados. O transporte coletivo se tornou um dos vetores de transmissão do vírus. A restrição à circulação de automóveis mostrou-se ineficiente.
Como já foi alertado pela própria OMS e pesquisadores de diferentes universidades, o país ainda não atingiu o pico da pandemia. Pelo contrário: a média diária de falecimentos por Covid 19 continua crescendo, alcançando na última semana 1.013 no país contra 883 na semana anterior.
Em São Paulo, onde o mero anúncio de flexibilização do isolamento feito pelo governo provocou maior circulação de pessoas, que atingiu 53% da movimentação normal na 5ª feira.
O próprio governo, que está reabrindo o comercio, prevê um aumento expressivo de casos, que devem alcançar, no final de junho, entre 190 mil a 265 mil, ou seja, de 70 mil a 145 mil novos casos serão acrescentados ao 118 mil existentes no final de maio. Embora o índice de ocupação das UTI seja relativamente confortável nesse momento (75%), a explosão de casos pode alterar a situação, considerando-se ainda que muitas cirurgias e internações por outras doenças estão sendo adiadas.
No Rio de Janeiro, a situação é muito mais crítica, com a aceleração do número de mortes e o sistema de saúde próximo do colapso, enquanto camelôs e escolas da rede pública estão sendo autorizados a voltar a funcionar.
Nesse contexto, o lockdown, e não a flexibilização e a realização de manifestações, deveria estar sendo considerado. É certo que micro e pequenas empresas, trabalhadores informais e desempregados estão em dificuldade econômicas. Que muitos estão exaustos com a quarentena. Que metade da população gostaria de ir para a rua gritar “Fora Bolsonaro”.
Mas, afinal, não é a vida que deve ser colocada em primeiro lugar? Se não for isso, se a economia e os atos políticos devem ser priorizados, em uma naturalização de dezenas de milhares de mortes, então Bolsonaro tinha razão.
Com fila nas portas, Fortaleza reabre comércio de rua
Com filas nas portas de algumas lojas, o comércio de rua de Fortaleza voltou a funcionar nesta segunda-feira (8), depois de quase três meses fechado para evitar a disseminação do novo coronavírus. Também shoppings da capital cearense puderem abrir as portas.
Fortaleza entrou em sua primeira fase de reabertura econômica com a ocupação de UTIs próximo aos 80%, mas o governo informa que haverá monitoramento diário do sistema de saúde e fiscalização para ver se as lojas estão cumprindo o protocolo de segurança contra a Covid-19, como fornecer álcool em gel a funcionários e clientes e adotar medidas de distanciamento social.
O reinício foi confuso nesta manhã no centro da cidade. Filas de pessoas esperando a abertura de lojas, principalmente de eletrodomésticos, já estavam formadas desde as 8h, duas horas antes do horário estipulado pelo decreto do governo do estado —comércio de rua vai funcionar nessa fase das 10h às 16h com 30% da capacidade de funcionários e de clientes. Não havia marcações nas calçadas para orientar as pessoas a manterem distância.
"Preciso trocar um celular que comprei aqui antes de toda essa confusão, não tem jeito", disse Antônio Pereira, 58, na fila de uma loja na Praça do Ferreira. Ele estava de máscaras, como determina o decreto governamental, e com um tubinho de álcool em gel no bolso.
Algumas lojas colocaram fitas na entrada para bloquear a entrada de muitos clientes ao mesmo tempo e outras destacaram funcionários para receber os clientes com potes de álcool em gel na entrada. Mas algumas estavam sem qualquer tipo de bloqueio para o acesso das pessoas ou o higienizador, ao menos visível, na entrada do estabelecimento.
"Olha, está parecendo sábado até. O pessoal veio pra cá mesmo", disse o vendedor ambulante Carlos Carneiro, 37, que trabalha com um pequeno carrinho vendendo garrafas e potes de plástico. Mesmo com o decreto de fechamento do comércio, ele continuou indo ao centro, mesmo sem clientes. "Precisava colocar comida em casa. mas o com as lojas todas fechadas não tinha quase ninguém. Hoje voltou com tudo".
O calçadão da rua Liberato Barroso esteve cheio pela manhã, andando por ele era difícil desviar de outras pessoas. Em uma loja de calçados, um funcionário tentava organizar uma fila, ao mesmo tempo que segurava um tubo de álcool em gel. Enquanto pedia paciência aos clientes, viu funcionários da prefeitura jogando desinfetante na calçada. Ao menos seis homens estavam pelo centro nesta manhã com equipamentos de higienização.
Os shoppings também reabriram nesta segunda, com horário diferente das lojas de rua: podem funcionar, também com 30% da capacidade, das 12h às 20h. Aparentemente há um cuidado maior para acesso de clientes a esses estabelecimentos.
Na entrada a pessoa tem a temperatura medida —quem tiver mais de 37,5°C não poderá entrar. Foi colocado álcool em gel no acesso a cada escada rolante, na entrada e na saída, e quase todos os bancos de descanso foram retirados para evitar aglomeração. Haverá também a contagem de pessoas que entram no local, quando chegar ao limite de capacidade de 30% os demais clientes serão barrados até que outros saiam.
Cinemas, teatros, academias e espaços infantis continuam proibidos de abrir. As praças de alimentação terão restaurantes abrindo, mas somente para retirada de alimento. Não poderá haver o consumo no local.
PLANO
O governo do Ceará elaborou um plano de retomada econômica em cinco fases. A inicial, chamada de transição, durou em todo o estado por sete dias, entre os dias 1 e 7 de junho e teve a reabertura principalmente de indústrias, como a química, de lojas relacionadas à saúde, como óticas, e salões de beleza e barbearias.
A primeira fase começou a vigorar nesta segunda, com a abertura de lojas de rua e shoppings (restaurantes e bares continuam fechados para atendimento presencial), mas apenas em Fortaleza onde, segundo a Secretaria de Saúde do Estado, a capacidade hospitalar está mais controlada. Na capital cearense a ocupação de UTIs está em 79%.
Todas as cidades do interior, porém, continuam na fase de transição por pelo menos mais sete dias. A situação que mais preocupa é a da região norte, que tem quatro cidades em lockdown até o dia 14 de junho: Sobral, Acaraú, Camocim e Itarema. Sobral, que tem 132 mortes e 3.067 casos, viu o Hospital Regional Norte chegar a 97% das UTIs ocupadas.
O Ceará tem hoje 4.010 mortos e 64.615 casos confirmados, destes 2.467 óbitos e 27.640 casos em Fortaleza. A periferia tem sofrido mais na capital cearense, com o maior número de mortes. A Barra do Ceará teve 100 óbitos, seguido por Mondubim (72) e Vila Velha e Bom Jardim (66 cada), todas em áreas mais pobres de Fortaleza.
E além de conviverem com a doença, ainda há o desafio da situação de violência em especial na periferia, que não desapareceu durante a quarentena. Maio registrou 317 homicídios no estado, número bem superior aos 178 do mesmo mês em 2019. Somente em Fortaleza foram 119, a maioria nas regiões onde a Covid-19 também ataca mais, como Barra do Ceará, Pirambu e Bom Jardim.
Boa parte dos assassinatos, como é comum no estado, são referentes a disputa por território entre facções criminosas, como o PCC, o Comando Vermelho e a local Guardiões do Estado. O acumulado nos cinco primeiros meses do ano no estado, de 1.838 homicídios, superou o registrado do mesmo período em 2019, que teve 937 assassinatos.
Com manifestações na pandemia, esquerda faz o que criticava
[RESUMO] Nas manifestações deste domingo (7), lideranças de esquerda aderiram animadas à promoção irresponsável de aglomerações durante a pandemia, atitude recorrente de Jair Bolsonaro nos últimos meses que tanto condenavam.
Nos últimos três meses, quando a escalada da Covid-19 no Brasil tornou-se incontornável, assistiu-se à regular participação do presidente da República e de seu rebanho na promoção de aglomerações e manifestações públicas. O espetáculo da irresponsabilidade bolsonarista foi também regularmente acompanhado pela indignação de amplos setores da mídia, especialistas em saúde pública e opositores políticos, entre os quais representantes da esquerda.
Passada a fase inicial da pandemia, no momento em que o Brasil parece ser o epicentro da propagação do novo coronavírus, com mortes que se contam a cada minuto, eis que organizações e lideranças que acenam a bandeira do antifascismo, adversárias viscerais de Bolsonaro, decidem convocar manifestantes às ruas.
Sob a alegação de que seriam tomadas precauções, que não resistiram ao teste da realidade, como uso de máscaras (por si insuficiente como proteção) e distância entre as pessoas, a esquerda aderiu animada ao que condenava —o que não chega a ser uma novidade em termos históricos.
O líder do MTST e ex-candidato do PSOL à Presidência, Guiherme Boulos, por exemplo, foi um dos protagonistas do festim —contra, aliás, ponderações mais sensatas de parte de seus apoiadores e companheiros de partido. No ato, para o qual carreou pessoas pobres ligadas ao movimento dos sem-teto, tentou se justificar: “Ninguém queria estar na rua agora. Todo mundo queria estar em casa se protegendo”... E completou: “O problema é que criou-se uma escalada fascista no Brasil. Por isso essas manifestações têm que acontecer”.
O raciocínio é roto. O que Boulos e outros chamam de “escalada fascista” precede a pandemia. Não se discute que a radicalização bolsonarista subiu de tom recentemente, mas soa infantil a crença de que levar alguns poucos milhares de pessoas ao largo da Batata ou equivalentes em outras cidades vá fazer a diferença.
Precipitadas, as manifestações de domingo não mudaram e provavelmente não vão mudar nada, a não ser, quem sabe, a contaminação entre aquelas pessoas e seus parentes. Sintomático que parte do séquito nas redes sociais tenha esquecido o que se disse sobre as aglomerações bolsonaristas e suspirado: “Foi lindo!”
Talvez incentivada pela explosão antirracista nos EUA, que reflete acontecimentos bem definidos, nossa esquerda simplesmente passou a chancelar, indiretamente que seja, mas de maneira insofismável, a campanha pelo “foda-se” defendida desde sempre por algumas autoridades obtusas e setores do empresariado —que eram acusados de querer levar os trabalhadores para o matadouro. O fato é que os rebanhos estão soltos. E esse passou a ser nosso novo normal de lidar com a pandemia.
Marcos Augusto Gonçalves é editor da Ilustríssima e editorialista da Folha.
Crise da Covid-19 eleva o risco de corrupção nas contratações públicas
O avanço da pandemia da Covid-19 no Brasil fez com que o poder público fosse incumbido da difícil tarefa de planejar e adotar medidas visando à contenção e ao combate à doença. Entre estas, optou-se pela flexibilização temporária de normas aplicáveis às contratações da Administração Pública, quando destinadas ao enfrentamento da doença, e enquanto perdurar a situação de emergência. A referida medida está prevista na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro, sancionada pelo governo federal, que também inovou ao prever a possibilidade de contratação de empresas com a inidoneidade declarada ou com o direito de licitar ou contratar com a Administração Pública suspensos, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.
O legislador, ao flexibilizar o dever constitucional de licitar, agiu com o objetivo de incentivar os ideais de desburocratização, agilidade e eficiência nas compras e serviços destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública. No entanto, a flexibilização das regras representa um sinal de alerta, na medida em que amplia os riscos de corrupção nestas contratações. Riscos, inclusive, já constatados na prática com a recente deflagração de diversas investigações para a apuração de fraudes, superfaturamentos e demais irregularidades. Nesse cenário, os atos corruptivos acabam por criar obstáculos ao fornecimento de equipamentos e insumos sanitários importantes, distanciando a gestão pública do seu objetivo inicial de conferir agilidade e eficiência às contratações emergenciais.
As limitações operacionais impostas pelo isolamento social e trabalho remoto criaram a percepção em alguns de que ações de fiscalização e controle poderiam ser adiadas ou sequer implementadas, ampliando os incentivos para a prática de ilícitos, dada a baixa probabilidade de resposta das autoridades. A realidade mostrou o contrário. Multiplicam-se notícias sobre operações do Ministério Público, da Controladoria Geral da União e da Polícia Federal para investigar irregularidades em contratos administrativos celebrados durante o enfrentamento do coronavírus. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a Secretaria de Saúde instituiu força-tarefa para analisar os contratos firmados durante a pandemia, tendo cancelado 44 dos 66 contratos celebrados até o dia 13 de maio.
Para além da flexibilização das regras de licitação, outros fatores podem ampliar os riscos de corrupção nas contratações públicas durante a pandemia. Um deles reside na edição da Medida Provisória nº 996, de 13 de maio, ao definir as hipóteses de responsabilização civil e administrativa de agentes públicos pela prática de atos durante a pandemia. O texto prevê que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados "quando agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro", porém não determina de forma clara e precisa o que se deve entender por dolo ou erro grosseiro. A constitucionalidade da medida já foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu, por maioria de votos, que os atos dos agentes públicos em relação à pandemia devem observar critérios técnicos e científicos de entidades médicas e sanitárias e o princípio da autocontenção no caso de dúvidas sobre a eficácia de eventuais medidas.
Os casos de corrupção decorrentes da pandemia não são de exclusividade brasileira. A OCDE, o Banco Mundial, a Transparência Internacional, entre outras autoridades, já se pronunciaram sobre a importância de uma cultura de integridade no contexto da pandemia. No Brasil, a Transparência Internacional e o Tribunal de Contas da União publicaram, em conjunto, um guia voltado para o poder público com recomendações para promover a transparência no contexto de contratações emergenciais. O guia se baseou nos elementos mínimos na América Latina para a redução de riscos de corrupção em contratações, incluindo a transparência sobre bens e serviços contratados, a correta administração e a prestação de contas dos recursos, o monitoramento dos gastos públicos por órgãos de fiscalização e controle e o incentivo à concorrência, evitando-se a concentração econômica.
A Controladoria Geral da União também publicou uma cartilha contendo recomendações de boas práticas de integridade em tempos de pandemia. O documento, dedicado à iniciativa privada, prevê como boas práticas a atuação proativa de lideranças para orientar colaboradores e parceiros de negócios sobre os valores das empresas e a importância da condução dos negócios de forma íntegra. A cartilha também recomenda às empresas que dediquem atenção aos procedimentos e controles de integridade preestabelecidos, mantenham registros das interações com agentes públicos, adotem medidas de transparência para divulgação de operações realizadas com a Administração Pública e utilizem e promovam os seus canais de denúncia, incluindo o canal específico criado pela CGU para recebimento de denúncias envolvendo a pandemia.
Em resumo, se por um lado o cenário de exceção criado pela pandemia tornou ainda mais sensível o risco de corrupção envolvendo as contratações públicas, por outro lado impulsionará uma nova onda de operações e investigações. Ações de fiscalização e controle têm se intensificado mesmo diante das limitações impostas pelo isolamento social e trabalho remoto. O estado de calamidade não pode resultar em um momentâneo descontrole ou falta de coordenação dos programas de compliance e ética corporativa. Para as empresas comprometidas com a promoção de um ambiente empresarial íntegro, a melhor saída é a adoção de medidas que as protejam de eventuais irregularidades nas contratações públicas, doações e nas contratações privadas.
Thiago Luís Sombra é sócio do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr e Quiroga Advogados, doutor em Direito e ex-procurador do Estado de São Paulo.
Jaqueliny Guimarães é advogada do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr e Quiroga Advogados.
Luiza Cattley é advogada do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr e Quiroga Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 7 de junho de 2020, 15h07