A luta do nosso bravo Jair contra os moinhos de vento
09 de agosto de 2020 | 03h00
Na última terça-feira, 4/8, o presidente Jair Bolsonaro declarou que seu sonho é livrar o Brasil da esquerda. Minha primeira reação foi tentar saber o que ele entende por esquerda.
Nas redes sociais, a resposta mais comum, quase única, foi a de que esquerdistas são os adeptos do marxismo. Ora, se é isso, o presidente não terá muito trabalho. Comecemos com uma distinção: os marxistas que pegaram em armas e os que vêm os escritos de Karl Marx como uma filosofia, uma teoria da História ou mesmo uma teoria econômica rigorosa. No Brasil, grupos comunistas pegaram em armas duas vezes, evidenciando em ambas uma patética fragilidade. Nos anos 1930, quando o Partido Comunista era dirigido por Luís Carlos Prestes, o levante que se tornou conhecido como a Intentona, anterior à implantação da ditadura getulista, facilmente desbaratado pelo governo da época. Depois de 1964, a luta armada encetada contra o regime militar por Lamarca e Marighella, principalmente. Teve consequências mais profundas, levando os militares a arrochar ainda mais o regime, notadamente no período que ficou conhecido como os “anos de chumbo”.
Atualmente, nada faz crer que existam grupos comunistas inclinados a pegar em armas. Lula e alguns satélites de seu PT, o melhor exemplo sendo João Pedro Stédile, recorreram ocasionalmente a uma retórica beligerante, apresentaram-se como admiradores do chavismo e do regime cubano, mas não foram além disso. Aliás, definir o lulismo não é tarefa para principiantes. Para mim, Lula é uma variante do nosso velho populismo, uma cepa de políticos que acreditam mais no gogó social, prometendo paraísos terrestres (e de vez em quando metendo a mão em algum, que ninguém é de ferro), do que em aprimorar a economia e a administração pública. Aprimorar a economia, nem pensar; o próprio Lula declarou diversas vezes (talvez invocando Noel Rosa) que bons governos nascem é do coração. Esse singelo aparato é suficiente para enganar os incautos – acenando-lhes com um “socialismo por construir” – que proliferam nas universidades, no clero e até certo ponto na imprensa e nos corpos legislativos.
Voltar um pouco no tempo pode tornar mais proveitosa esta nossa inquirição. Jair Bolsonaro estaria empenhado em “livrar o Brasil da esquerda” quando alguns dos maiores símbolos dela desfrutavam imenso prestígio nacional. Oscar Niemeyer, por exemplo, morreu aos 103 anos sem jamais abdicar de sua devoção ao tirano russo Joseph Stalin. Foi, como todos sabemos, o arquiteto de Brasília e quem lhe conferiu tal encargo foi o mineiríssimo e conservadoríssimo presidente Juscelino Kubitschek. Bolsonaro incluiria JK em sua lista dos que, ao ver dele, precisam ser afastados? E Jorge Amado, o grande escritor baiano, consagrado e cultuado em todo o mundo como um de nossos maiores romancistas?
Os casos citados devem ser suficientes para evidenciar que combater a esquerda marxista, a esta altura do campeonato, é uma atividade quase tão inútil quanto arremessar o bravo corcel do Estado contra algum moinho de vento. O enredo melhora bastante se, em vez de circunscrever o conceito de esquerda ao marxismo, fizermos dele uma base mais ampla para um reexame sério dos programas de crescimento econômico que pusemos em prática desde a 2.ª Guerra Mundial. Aqui estaremos falando do nacional-desenvolvimentismo, do horror à economia de mercado, da burocracia pública e da inflação como demiurgos do progresso, da resistência ao investimento estrangeiro, e por aí afora. Ou seja, estaremos nos referindo ao modelo que se tornou conhecido como ISI – de industrialização por substituição de importações –, que de fato acelerou o crescimento enquanto era fácil fazê-lo e depois nos legou a prolongada estagnação de que, salvo melhor juízo, tão cedo não nos conseguiremos livrar. Livrar o Brasil dessa linha de esquerda seria uma excelente ideia, mas salta aos olhos que o presidente Bolsonaro dificilmente conseguirá fazê-lo. Embora se tenha afastado do Exército no posto de capitão, Jair Bolsonaro deve ter ciência de que o modelo a que me refiro sempre contou com ampla simpatia no meio militar. No vídeo da reunião ministerial realizada no Planalto em 22 de abril, vimos o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, sugerindo um retorno ao nacional-estatismo, no que foi prontamente contestado pelo ministro da Fazenda, que parece ser no atual governo o único consciente da arapuca em que a ISI nos meteu.
A visão do futuro brasileiro corporificada no nacional-desenvolvimentismo remonta, como sabemos, ao debate de 1944 entre o economista Eugênio Gudin, favorável a uma economia balanceada, com maior atenção à agricultura, e o historiador Roberto Simonsen, adepto da industrialização a qualquer preço. Decorridos três quartos de século, o panorama é meridianamente claro: temos uma agricultura moderna, pujante, internacionalmente competitiva, e um setor industrial em escombros, não obstante todas as “bondades” de que se beneficiou durante quase todo esse período.
*CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
Fundo partidário paga empresas de dirigentes, salário de parentes, de amigos e de políticos sem mandato
A análise detalhada das prestações de contas entregues à Justiça Eleitoral mostra que no ano passado vários partidos mantiveram a prática de usar verba pública não só para remunerar seus dirigentes, mas também empresas ligadas a eles, amigos, parentes e políticos que fracassaram nas urnas.
Ao todo, R$ 937 milhões foram gastos em 2019, sendo a maior parte dinheiro público —essa fatia, em torno de 90% do total, foi distribuída às legendas na proporção do desempenho que elas tiveram nas últimas eleições para deputado federal.
Responsável por uma das maiores cotas, o PSL, partido pelo qual Jair Bolsonaro se elegeu presidente da República, tem na sua lista de pagamentos funcionárias indiciadas pela Polícia Federal sob suspeita de terem sido candidatas laranja nas eleições de 2018, citados na investigação das "rachadinhas" da Assembleia do Rio de Janeiro e até um amigo de Bolsonaro, que nunca exerceu atividade política partidária.
O PSL, comandado pelo deputado federal Luciano Bivar (PE), também pagou mais de R$ 11 mil por mês à mulher do deputado Nereu Crispim (RS), Carolina Lomba. Bolsonaro abandonou a sigla no final do ano passado e tenta criar sua própria legenda, a Aliança pelo Brasil.
Como a Folha mostrou em fevereiro, após o partido multiplicar o recebimento de verbas devido ao sucesso eleitoral de Bolsonaro, houve registro de gastos com carros, restaurante e mobiliário de luxo, entre outras despesas.
O PT, maior partido de oposição a Bolsonaro, é o que mais recebe dinheiro do fundo pelo fato de ter obtido o maior número de votos nas eleições para a Câmara em 2018. Um dos maiores fornecedores contratados pelo partido é a Urissanê Comunicação, que recebeu R$ 5,5 milhões em 2019.
A empresa é de Otavio Augusto Antunes da Silva, que disputou eleições pelo partido em 2000 e 2004 e foi assessor parlamentar da sigla na Assembleia Legislativa de São Paulo de 2005 a 2016.
Quando se direciona a lupa para partidos médios e menores, observa-se prática similar ou em grau até superior.
O DC, do ex-candidato à Presidência José Maria Eymael, pagou salário não só a ele (R$ 109 mil em todo o ano), como direcionou R$ 45 mil ao Centro Automotivo Caminho Certo, que tem ele e familiares como sócios.
Já o PTB de Roberto Jefferson, um dos mais entusiastas apoiadores de Bolsonaro atualmente, destinou no ano passado cerca de R$ 300 mil ao dirigente, a título de prestação de serviços técnicos e profissionais.
O PROS, que é alvo de investigação sob suspeita de desvio de recursos, também é um exemplo de mistura de público e privado. O fundador da sigla, Eurípedes Jr., parentes, amigos e até o piloto do helicóptero que a legenda comprou com verba do fundo partidário ganham salário do partido.
Há casos de duas mulheres de políticos da legenda recebendo R$ 5.000 por mês, além do caso da ex-governadora do Rio de Janeiro Rosinha Garotinho. Ela, que hoje tem uma loja de doces caseiros, figura com salário de R$ 8.500 do partido.
Outra prática comum nos 33 partidos brasileiros é alojar em seus quadros, com remuneração mensal, políticos que fracassaram nas urnas ou deixaram de ocupar algum cargo público.
O oposicionista PSB tem na sua folha salarial os ex-governadores Márcio França (SP) e Ricardo Coutinho (PB) e o ex-deputado federal Beto Albuquerque (RS), todos com salários superiores a R$ 20 mil por mês.
O PDT contratou o escritório de advocacia de seu presidenciável, Ciro Gomes. Foram R$ 45 mil pagos em 2019.
O Republicanos de São Paulo contratou por R$ 133 mil a empresa Iave Assessoria, pertencente a um filiado à sigla.
Patriota, PL e Podemos também têm exemplos nessa linha. O primeiro paga salários a parentes do presidente, Adilson Barroso. O ex-presidente Ovasco Resende do PRP, que se fundiu ao Patriota, chegou a acumular salário dos dois partidos no mês de junho, somando cerca de R$ 60 mil de vencimentos.
O PL pagou R$ 11 mil por mês à esposa do deputado estadual André do Prado (SP), Clarisse Johara.
No Podemos, o filho do deputado João Carlos Bacelar (PL-BA) ganha R$ 11 mil mensais da legenda. Bacelar é aliado do partido no estado. Familiares de dirigentes da sigla também estão na folha de pagamento.
O PSC tem a mulher do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, uma mãe de deputado e alguns pastores na folha de pagamento. Alvo da Polícia Federal, a primeira-dama do Rio, Helena Witzel, recebeu desde janeiro de 2019 mais de R$ 350 mil brutos do PSC, a título de salário por integrar a equipe jurídica da legenda.
Os dados analisados pela Folha se referem às esferas nacional, estadual e municipal das legendas e foram coletados e compilados pela ONG Transparência Partidária, com base na prestação de contas de 2019 entregue pelas legendas ao Tribunal Superior Eleitoral. Pela lei, elas têm até junho do ano seguinte para entregar a prestação anual de contas.
Depois das transferências obrigatórias para as fundações partidárias e as instâncias estaduais e municipais, o gasto com pessoal ocupou a maior fatia, com 14%.
"O levantamento [relativo a 2019] identificou uma série de situações que merecem análises mais aprofundadas quanto à regularidade e à legitimidade desses gastos, mas que ainda esbarram em algumas deficiências do ponto de vista da transparência e do controle social", afirma Marcelo Issa, diretor-executivo da Transparência Partidária.
Em relatório divulgado pela organização relativo ao uso do fundo partidário em 2017, a entidade detectou "dezenas de casos de contratação de empresas das quais dirigentes partidários das próprias legendas contratantes são sócios ou proprietários", no valor de ao menos R$ 4,5 milhões.
O relatório apontou também que doadores receberam de volta mais do que o dobro do valor que repassaram às legendas, por meio de contratos com empresas das quais eram sócios ou proprietários.
OUTRO LADO
Em nota, o PSL afirmou que Carolina Lompa é secretária-executiva do PSL Mulher e atua diariamente dentro do partido. O deputado Nereu Crispim não se manifestou.
O PT afirmou que investe recursos na comunicação "por ter acesso restrito, quando não censurado" à mídia e que não há impedimento para a contratação da empresa de um filiado. "Se o fosse, seria uma discriminação autoritária."
O Republicanos de São Paulo afirmou que a empresa contratada prestou serviços de contabilidade, consultoria e gestão de RH, em valores dentro dos padrões de mercado. "Já em relação ao fato da prestação de serviço estar relacionada com um de nossos filiados, isso apenas indica que há uma confiança mútua na relação entre as partes."
O PDT disse que Ciro Gomes é advogado com vasto conhecimento e vice-presidente do partido. "Como tal, tem feito inúmeras peças jurídicas, como a que o PDT deu entrada no Tribunal Penal Internacional, acionando a corte pela forma como Bolsonaro vem enfrentando a pandemia, entre outras".
O PTB afirmou que o valor total recebido por Roberto Jefferson em 2019 "é proveniente de suas competências como presidente nacional", conforme definido no estatuto da sigla.
O PL afirmou que a esposa do parlamentar trabalha na legenda "onde, sem qualquer óbice, desempenha trabalho regular, nos termos da lei". A Folha não conseguiu contato com o parlamentar ou com a funcionária da legenda.
O presidente do Patriota, Adilson Barroso, afirmou que o irmão Aguinaldo Barroso é tesoureiro nacional da legenda responsável por assinar "todos os cheques do partido" e que seu salário —cerca de R$ 8.000— está dentro da lei e é menor do que a média do mercado.
O Podemos afirmou, em nota, que o advogado João Claudio Bacelar Batista responde por três áreas da legenda na Bahia: coordenação administrativa, jurídica e articulação política, junto aos 417 municípios.
Em nota, a assessoria do PROS afirma que o piloto de helicóptero recebe remuneração dentro da categoria e que as funcionárias que são mulheres de políticos da legenda exercem funções administrativas dentro do que determina a lei.
Sobre os pagamentos à ex-governadora do Rio de Janeiro Rosinha Garotinho, a legenda afirma que ela exerce um importante papel na organização partidária na "formação de quadros e adesão de filiados".
Ovasco Resende, ex-presidente do PRP, afirmou ter recebido dois salários em junho pois no sistema da antiga sigla a remuneração paga era relativa ao mês anterior. No Patriota, o pagamento é feito no próprio mês.
PSC e o PSB não se manifestaram. A Folha não conseguiu falar com a assessoria do DC.
FUNDO PARTIDÁRIO E FUNDO ELEITORAL
Fundo partidário
É distribuído anualmente aos partidos que cumpriram as regras da chamada cláusula de barreira (desempenho mínimo nas eleições). Em 2020, 23 das 33 legendas estão aptas a recebê-lo. É dividido na proporção dos votos que as legendas obtiveram nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados. O valor a ser rateado em 2020 é de R$ 959 milhões
Fundo eleitoral
Criado em 2017, destina dinheiro a todos os partidos, de dois em dois anos, para uso na campanha eleitoral daquele ano. É divido com base na combinação de vários critérios, mas também privilegia legendas com melhor desempenho nas últimas eleições. O valor a ser rateado em 2020 é de R$ 2,035 bilhões
ALGUNS GASTOS COM DIRIGENTES, ESPOSA, PARENTES E AMIGOS DE POLÍTICOS
PSL
Ex-assessores do presidente da sigla, deputado Luciano Bivar (PE), e da família de Jair Bolsonaro (que se elegeu presidente da República pela legenda em 2018) receberam salário do partido. Entre eles, citados na investigação das “rachadinhas” da Assembleia do Rio e até um amigo de Jair Bolsonaro (ex-PSL, hoje sem partido), que nunca exerceu atividade política partidária. O PSL também pagou mais de R$ 11 mil por mês à esposa do deputado Nereu Crispim (RS), Carolina Lomba.
Patriota
Tem dirigentes recebendo R$ 26 mil por mês e parentes do presidente Adilson Barroso na lista de pagamentos. O ex-presidente do PRP (Ovasco Resende), que se fundiu ao Patriota, virou vice da legenda. Durante a fusão, ele chegou a acumular salário dos dois partidos no mês de junho, somando cerca de R$ 60 mil de vencimentos.
PL
O partido paga R$ 11 mil por mês à esposa do deputado André do Prado (SP).
Podemos
O filho do deputado João Carlos Bacelar (PL-BA) ganha R$ 11 mil mensais da legenda. Bacelar é aliado do partido no estado. Familiares de dirigentes também estão na folha de pagamento.
PROS
O fundador da sigla, Eurípedes Jr., parentes, amigos e até o piloto do helicóptero ganham salário do partido. Há casos de duas esposas de políticos da legenda recebendo R$ 5.000 por mês, além da ex-governadora do Rio de Janeiro Rosinha Garotinho. Ela, que hoje tem uma loja de doces caseiros, tem salário de R$ 8.500 do partido.
PSC
A mulher do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, uma mãe de deputado e alguns pastores estão na folha de pagamento.
PSB
Virou cabide de derrotados ou políticos sem mandato. Márcio França (SP), Ricardo Coutinho (PB) e Beto Albuquerque (RS) têm salários superiores a R$ 20 mil por mês.
PTB
Presidente da sigla, o ex-deputado Roberto Jefferson, hoje um dos apoiadores mais entusiastas do presidente Jair Bolsonaro, recebeu em 2019 cerca de R$ 300 mil a título de prestação de serviços técnicos e profissionais à legenda.
O novo despontar dos semideuses - O ESTADÃO
Nestes tempos de hoje, em que a poesia desapareceu e a peste nos cerca, recordo a lamúria do poeta Fernando Pessoa: “Arre, estou farto de semideuses...”. Sim, pois tanto os semideuses quanto o profético Fernando Pessoa ressurgem em meio à pandemia, como se houvessem combinado enfrentar-se num combate impossível que o novo coronavírus fez acontecer.
E tudo aconteceu aqui pertinho, exibido nos noticiários da TV. A cidade de Santos ampliou sua condição de maior porto do País e escancarou a face dos semideuses que, como tumor maligno, corrompem o Poder Judiciário ou fazem que seja visto como uma pá de lixo para recolher os detritos da sociedade. Refiro-me à cena reproduzida na TV em que o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira ofende com palavras um guarda municipal que o multou na rua por não usar máscara. A cena foi adiante em insensatez: o desembargador rasgou o papel da multa e, alardeando uma autoridade que o Poder Judiciário não lhe deu, telefonou ao secretário municipal para se queixar do guarda e chamá-lo de “analfabeto”.
A autoridade do desembargador restringe-se ao âmbito judicial. Ou alguém pensa que os juízes estão acima da lei? E mais ainda quando a lei busca proteger a saúde e a vida, incluída a do transgressor.
Entre nós, no Brasil, a exibição de “autoridade suprema” tem até um apelido – “carteirada” –, que expressa algo comum nos mais altos níveis da sociedade e da governança.
Na recente demissão do ministro Sergio Moro, o presidente Bolsonaro proclamou-se “chefe supremo” (e o disse pelas “redes” e pela TV, assim mesmo, com essas palavras), quando, de fato, tão só comanda o Poder Executivo. “Chefe supremo”, ou simplesmente “chefão”, é algo cheio de cupim do tempo dos reis absolutistas ou pose de “xerife” dos filmes de faroeste. Os “xerifes” eram mandões supremos por terem revólver de mil tiros, que disparava sem parar. Mas truque de cinema não substitui a realidade.
Nem sequer a votação expressiva de Bolsonaro lhe outorgou “poderes supremos” como presidente. A democracia é, por definição, o sistema de equilíbrio dos Poderes, exatamente para evitar “semideuses”. O voto não o transforma em ditador supremo...
E menos ainda faz dele um semideus. Todo dia, porém, surgem semideuses, revelando que o poder político se torna, progressivamente, um núcleo de cobiçosos aventureiros, servindo a interesses que não são os do País nem os do povo.
O horror da pandemia mostrou essa deformação. Para espanto da ciência, vimos o presidente da República se transformar em médico charlatão ou “garoto-propaganda” da cloroquina. As fotos de Bolsonaro empunhando uma caixinha do medicamento como se fosse milagrosa varinha de condão das fadas infantis apareceram em jornais, na TV ou nas tais “redes sociais”, como se ele fosse improvisado semideus..
Não importaram sequer as advertências da ciência médica sobre os perigosos efeitos colaterais de usar um medicamento destinado a combater a malária como algo mágico para a peste atual. O semideus já havia decidido e, pronto, não se discute!
Nossos semideuses passaram a proliferar, especializando-se em derrubar algumas das mais sólidas construções dos últimos anos. Talvez tendo o presidente como espelho, o procurador-geral da República, Augusto Aras, investiu abertamente contra a Lava Jato para destruir a iniciativa que, pela primeira vez na História, puniu altos ladrões e mostrou como intocáveis políticos e grandes empresários eram simples assaltantes. Até um ex-presidente da República foi preso. A Lava Jato desnudou o conluio obsceno entre governantes, políticos e ricos empresários, mas, agora, enfurece o procurador-geral da República.
Por que essa fúria, que se contrapõe às próprias funções específicas do procurador-geral?
Há, ainda, os semideuses ardilosos, como mostrou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao propor (em reunião ministerial) aproveitar a covid-19 para “passar a boiada”. Ou seja, servir-se da atenção na pandemia para descuidar da preservação da natureza.
Assim, o ministro Salles opõe-se até mesmo aos três grandes bancos privados do País que advertem sobre a necessidade de preservar a Amazônia e o meio ambiente em si. Em vez disso, o ministro (num arremedo de semideus) deu o nome majestoso de “Amazônia” a um falso projeto de preservação, restrito a uma pequena área de 390 mil hectares, que abrange apenas 0,07 da cobertura florestal.
Até o ministro da Economia, Paulo Guedes (que, bancando semideus, quer restaurar a odiosa CPMF, sob outro nome) considerou “insuficiente” a ideia de Salles.
O Supremo Tribunal teve de intervir para que o ministro da Justiça não restaure a opressão da ditadura e vigie funcionários públicos por defenderem a democracia...
A queixa do poeta Fernando Pessoa virou profecia e os semideuses despontam outra vez.
FLÁVIO TAVARES = JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA / O ESTADÃO
O poder da cidadania - O ESTADO DE SP
A cidadania é o princípio e o fim da democracia. A palavra vem do civis latino, equivalente do grego polites, o membro da polis, de onde deriva nossa “política”. De um modo geral, a cidadania é o conjunto de prerrogativas e responsabilidades dos membros de uma comunidade política.
O cidadão grego era alternadamente um soldado, servidor, legislador, juiz e administrador, dedicado em tempo integral ao interesse público. Mas a cidadania era o privilégio de uma minoria definida por gênero, raça e classe. Roma, em seus inícios, era similar, mas à medida que a cidade se alargava em um império, a cidadania foi gradualmente estendida. Indivíduos de diferentes etnias, culturas e religiões podiam se dedicar aos seus interesses privados em igualdade de condições sob leis comuns, mas em contrapartida eram alheios à deliberação e execução destas leis. Construída sobre estes protótipos, a cidadania nos Estados nacionais modernos herdou deles esta tensão entre proteção legal e participação política – entre o cidadão como recipiente passivo de garantias individuais e como membro ativo da gestão pública.
No pós-guerra, consolidou-se a concepção da cidadania composta por três categorias de direitos sucessivamente acumulados nos últimos três séculos: direitos civis (como propriedade ou liberdade de expressão), direitos políticos (de eleger e ser eleito) e direitos sociais (como educação, saúde ou previdência).
Os críticos deste modelo apontam sua excessiva ênfase nos direitos e a necessidade de suplementá-los com o exercício das responsabilidades e virtudes cívicas. Por outro lado, há os que acusam a insuficiência do mero reconhecimento formal da igualdade entre todos os cidadãos e demandam medidas especiais para incluir grupos vulneráveis. Correntes feministas, por exemplo, criticam estruturas de perpetuação da subordinação das mulheres e os multiculturalistas pedem mecanismos de legitimação das identidades culturais, religiosas ou étnicas minoritárias. Na era da globalização, há ainda quem demande uma cidadania “cosmopolita” que transcenda as fronteiras nacionais.
No século 21, enquanto crescem as apreensões dos ambientalistas em relação a um modelo econômico baseado na expansão contínua da produção e do consumo, o colapso das suas bases financeiras, em 2008, assim como o impacto das novas tecnologias sobre a cadeia de trabalho, engrossaram o coro dos descontentes com este sistema e com os mecanismos de representação política, desencadeando soluções populistas e autoritárias.
O choque da pandemia expôs e agravou as disfunções da democracia contemporânea, e, passado o pânico inicial, vai inflamar estes debates. Com os negócios parcial ou totalmente paralisados e as pessoas confinadas em suas casas aterrorizadas por um inimigo comum invisível, seria cínico duvidar da sinceridade de expressões generalizadas como “estamos todos juntos”. Mas o fato é que as disparidades no interior dos países e entre eles aumentarão, intensificando os conflitos políticos e sociais.
A antiga tensão no seio da cidadania parece mais retesada do que nunca. Para a tradição liberal individualista, a cidadania é primariamente um status legal de garantias das liberdades individuais que permitem aos indivíduos empreenderem e se associarem em busca de sua prosperidade privada. Por sua vez, a concepção cívica republicana vê a cidadania como um processo ativo de participação na esfera pública.
A pedra angular para a reconstrução do contrato social em nosso tempo é o reconhecimento de que estas duas concepções não são antagônicas, mas dialeticamente complementares. As liberdades passivas são a base da democracia, mas a participação ativa é a sua perfeição – se as primeiras estão na raiz da árvore da democracia, é a segunda que gera os seus frutos. Dito de outro modo: o modelo liberal é a saúde da democracia, mas o modelo republicano é a sua virtude. Uma nova concepção de cidadania que sirva de coração a uma democracia a um tempo sadia e virtuosa, próspera e justa é o maior desafio da política no pós-pandemia.
TSE volta a cassar prefeitos na pandemia
06 de agosto de 2020 | 21h09
Um mês após defender que prefeitos cassados poderiam ficar em seus cargos até o fim do ano, mesmo que condenados por compra de votos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mudou de posição. Durante julgamento nesta quinta-feira, 6, a corte entendeu que a pandemia do novo coronavírus não é mais empecilho para a realização de eleições suplementares e decidiu que chefes do Executivo municipal podem, sim, ser afastados.
Ao cassar nesta quinta o prefeito de Lins (SP), Edgar de Souza (PSDB), e seu vice Carlos Alberto Daher, por abuso de poder político durante a campanha de 2016, os ministros da Corte determinaram a realização de eleições indiretas, pela Câmara Municipal, para um mandato-tampão na prefeitura. A justificativa é que prefeito e vice deixarão seus cargos vagos a menos de seis meses do final do mandato. A decisão foi por maioria.
No dia 1.º de julho, no entanto, ao julgar os casos do prefeito de Ribeira do Piauí (PI), Arnaldo Araújo (MDB), e de Presidente Figueiredo (AM), Romeiro Mendonça (Progressistas), o TSE entendeu que a troca de chefes do Executivo municipal poderia atrapalhar as ações de combate à covid-19, e que novas eleições em meio à pandemia ofereceriam riscos à saúde pública. Isso porque, nesses casos, se ambos fossem afastados do cargo em julho, a escolha dos novos prefeitos deveria ser direta – e o mandato ainda teria de seis meses de duração. “Ao concluir nesta quinta-feira (ontem) o julgamento do recurso apresentado pelo prefeito cassado de Lins, o Plenário entendeu, por maioria, que a situação se mostra diferente no segundo semestre de 2020, sendo possível dar plena execução às decisões do TSE sobre o afastamento de prefeitos”, afirmou o tribunal.
Em seu voto, o presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, disse que a Câmara Municipal de Lins tem 15 vereadores e observou que uma eleição indireta se diferencia do pleito direto. “Está superado o problema da eleição direta e da aglomeração”, afirmou. “A pandemia já não justifica essa linha de entendimento (de não afastamento do cargo).”
O ministro Edson Fachin, relator do caso, também votou pela execução imediata do afastamento dos políticos dos cargos. Para ele, o quadro de agora é diferente do primeiro semestre, quando a eleição se daria de forma direta em caso de cassação.
O ministro Luis Felipe Salomão, que defendeu a manutenção do entendimento anterior da Corte, foi voto vencido. Para Salomão, a realização de eleições indiretas pela Câmara também traz riscos para a população. Segundo ele, haverá movimentação no local, além de reuniões de apoiadores em defesa de uma ou outra candidatura.
A Corte, porém, decidiu que ainda cabe aos tribunais regionais eleitorais (TREs) argumentar pela suspensão de eleições suplementares, mesmo que indiretas, se a avaliação for de que sua realização coloca em risco a população. Casos assim devem ser analisados individualmente.
O advogado e professor de direito eleitoral Alberto Rollo afirmou que a decisão do TSE marca “uma mudança de interpretação em relação à pandemia, e não à Lei.” “Esse entendimento demonstra que o TSE repensou a questão da pandemia e da inviabilidade da substituição da chapa cassada e mandou fazer eleição indireta.”
O advogado especialista em direito político e eleitoral Silvio Salata afirmou que a mudança de entendimento do tribunal num período tão curto de tempo pode causar “instabilidade na interpretação da jurisprudência”. “Em pouco tempo, houve uma alteração radical no entendimento da Corte. Isso, de certa forma, abala o princípio da segurança jurídica.”
'O pior monstro' está se espalhando. E não é o coronavírus
Apoorva Mandavilli, NYT / ESTADÃO
Começa com mal-estar e febre baixa, seguidos de falta de ar e uma tosse dolorosa. A infecção prospera nas multidões, espalhando-se para as pessoas próximas. A contenção de um surto requer rastreamento de contato, além de isolamento e tratamento dos doentes por semanas ou meses.
Esta doença insidiosa atingiu todas as partes do globo. É a tuberculose, a pior doença infecciosa do mundo, acabando com 1,5 milhão de vidas a cada ano.
Até este ano, a tuberculose e seus aliados mortais, HIV e malária, estavam acuadas. O número de vítimas de cada doença na década anterior chegou a seu ponto mais baixo em 2018, o último ano para o qual existem dados disponíveis.
Mas agora, à medida que a pandemia de coronavírus se espalha pelo mundo, consumindo os recursos de saúde globais, esses adversários eternamente negligenciados estão voltando.
“A covid-19 pode atrapalhar todos os nossos esforços e nos levar de volta para onde estávamos há vinte anos”, disse Pedro L. Alonso, diretor do programa global de malária da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Não é só que o coronavírus tenha desviado a atenção científica da tuberculose, HIV e malária. Os lockdowns, principalmente em regiões da África, Ásia e América Latina, levantaram barreiras intransponíveis aos pacientes que precisam viajar para obter diagnósticos ou medicamentos, de acordo com entrevistas com mais de duas dúzias de autoridades de saúde pública, médicos e pacientes em todo o mundo.
O medo do coronavírus e o fechamento das clínicas afastaram muitos pacientes que lutam contra o HIV, a tuberculose e a malária, enquanto as restrições às viagens aéreas e marítimas limitaram severamente a entrega de medicamentos nas regiões mais atingidas.
Cerca de 80% dos programas de tuberculose, HIV e malária em todo o mundo relataram interrupções nos serviços, e 1 em cada 4 pessoas que vivem com HIV relatou problemas com o acesso a medicamentos, de acordo com a Unaids. Interrupções ou atrasos no tratamento podem ocasionar resistência aos medicamentos, um problema que já é temido em muitos países.
Na Índia, lar de cerca de 27% dos casos de tuberculose no mundo, os diagnósticos caíram quase 75% desde o início da pandemia. Na Rússia, as clínicas de HIV foram reconfiguradas para fazer testes de coronavírus.
A temporada de malária começou na África Ocidental, que tem 90% das mortes por malária no mundo, mas as estratégias normais de prevenção – distribuição de mosquiteiros tratados com inseticida e pulverização de pesticidas – foram reduzidas devido aos lockdowns.
Segundo uma estimativa, um lockdown de três meses em diferentes partes do mundo e um retorno gradual ao normal em dez meses podem resultar em 6,3 milhões de casos adicionais de tuberculose e 1,4 milhão de mortes por causa da doença.
Uma interrupção de seis meses da terapia antirretroviral pode provocar mais de 500 mil mortes adicionais por doenças relacionadas ao HIV, de acordo com a OMS. Outro modelo da OMS previu que, no pior cenário, as mortes por malária podem dobrar para 770 mil por ano.
Vários especialistas em saúde pública, alguns quase chorando, alertaram que, se as tendências atuais continuarem, o coronavírus provavelmente representará um atraso de anos, talvez décadas, no árduo progresso contra a tuberculose, o HIV e a malária.
O Global Fund, uma parceria público-privada para combater essas doenças, estima que a mitigação desse dano exigirá pelo menos US $ 28,5 bilhões, quantia improvável de se materializar.
Se a história servir de exemplo, o impacto do coronavírus sobre os pobres continuará sendo sentido muito tempo após o término da pandemia. A crise socioeconômica no Leste Europeu no início dos anos 90, por exemplo, provocou as taxas mais altas do mundo de um tipo de tuberculose resistente a vários medicamentos, um recorde pouco lisonjeiro que a região mantém até hoje.
O ponto de partida dessa cadeia de eventos é a falha no diagnóstico: quanto mais tempo a pessoa passa sem ser diagnosticada e mais demora o início do tratamento, maior a probabilidade de uma doença infecciosa se espalhar e matar.
“Quanto mais você deixa as pessoas sem diagnóstico e sem tratamento, mais problemas terá no ano que vem e nos anos seguintes”, disse Lucica Ditiu, chefe da Stop TB Partnership, um consórcio internacional de 1.700 grupos que combatem a doença.
A infraestrutura construída para diagnosticar o HIV e a tuberculose tem sido um benefício para muitos países que lutam contra o coronavírus. GeneXpert, a ferramenta usada para detectar o material genético da bactéria da tuberculose e do vírus HIV, também pode amplificar o RNA do coronavírus para fazer o diagnóstico.
Mas agora a maioria das clínicas está usando as máquinas apenas para identificar o coronavírus. Priorizar o coronavírus em detrimento da tuberculose é “muito estúpido do ponto de vista da saúde pública”, disse Ditiu. “Você precisa ser inteligente e fazer as duas coisas ao mesmo tempo”.
A pandemia resultou em quedas acentuadas nos diagnósticos de tuberculose em uma série de países: um declínio de 70% na Indonésia, 50% em Moçambique e África do Sul e 20% na China, segundo a OMS.
No fim de maio, no México, à medida que as infecções por coronavírus aumentavam, os diagnósticos de tuberculose registrados pelo governo caíram para 263 casos, contra 1.097 na mesma semana do ano passado.
A pandemia também está diminuindo o fornecimento de testes de diagnóstico para essas doenças fatais, pois as empresas preferem produzir os testes para detectar o coronavírus, que são mais caros. A Cepheid, fabricante de testes de diagnóstico de tuberculose na Califórnia, passou a se dedicar à produção de testes para o coronavírus. As empresas que fazem testes de diagnóstico da malária estão fazendo o mesmo, de acordo com Catharina Boehme, diretora executiva da Foundation for Innovative New Diagnostics.
Os testes de coronavírus são muito mais lucrativos: cerca de US $ 10, em comparação aos 18 centavos de um teste rápido de malária.
Essas empresas “têm uma enorme demanda por covid no momento”, disse Madhukar Pai, diretor do McGill International TB Center em Montreal. “Não consigo imaginar que as doenças da pobreza venham a receber qualquer atenção nesse espaço”.
A pandemia afetou a disponibilidade de medicamentos para HIV, tuberculose e malária em todo o mundo, interrompendo as cadeias de suprimentos, desviando a capacidade de fabricação e impondo barreiras físicas aos pacientes que precisam viajar até clínicas distantes para buscar os medicamentos.
E essa escassez está forçando alguns pacientes a racionar seus medicamentos, colocando sua saúde em risco. Na Indonésia, a política oficial é fornecer aos pacientes com HIV remédios suficientes para um mês, mas tem sido difícil encontrar a terapia antirretroviral nos arredores de Jacarta.
As pessoas com HIV e tuberculose que pulam dias de remédios provavelmente ficarão doentes no curto prazo. A longo prazo, há uma consequência ainda mais preocupante: um aumento nas formas dessas doenças resistentes a medicamentos. A tuberculose resistente a medicamentos já é uma ameaça tão grande que os pacientes são monitorados de perto durante o tratamento – uma prática que foi quase inteiramente suspensa durante a pandemia.
De acordo com a OMS, pelo menos 121 países relataram uma queda nas visitas de pacientes com tuberculose a clínicas desde o início da pandemia, ameaçando ganhos conquistados com muito esforço.
“É realmente difícil de digerir”, disse Ditiu. “Foi necessário muito trabalho para chegar onde estamos. Não estávamos no pico da montanha, mas estávamos bem longe da base. Aí veio essa avalanche e nos empurrou de volta à estaca zero”.
Em muitos lugares, os lockdowns foram impostos tão rapidamente que os estoques de drogas logo se esgotaram.
Mesmo que os governos estejam preparados, contando com alguma ajuda de grandes agências, para comprar medicamentos com meses de antecedência, a oferta global poderá acabar em breve.
“A ruptura das cadeias de suprimentos é realmente algo que me preocupa – pelo HIV, pela tuberculose e pela malária”, disse Carlos del Rio, presidente do conselho científico do Plano de Emergência do Presidente para o Combate à Aids.
A euforia em torno da cloroquina como potencial tratamento para o coronavírus gerou um acúmulo da droga em alguns países como Mianmar, esgotando os estoques globais do medicamento.
“Dependemos muito de alguns desenvolvedores ou fabricantes importantes para todos os medicamentos em todo o mundo, e isso precisa ser diversificado”, disse Meg Doherty, que dirige os programas de HIV na OMS. “Se você tivesse estoques ou fabricantes de medicamentos mais desenvolvidos em diversos locais, os medicamentos estariam mais perto dos pontos de necessidade”.
As organizações humanitárias e os governos estão tentando mitigar alguns dos danos, estendendo suprimentos e armazenando medicamentos. Em junho, a OMS mudou sua recomendação para o tratamento da tuberculose resistente a medicamentos. Em vez de 20 meses de injeções, os pacientes agora podem tomar pílulas por um período de 9 a 11 meses. A mudança significa que os pacientes não precisam ir até as clínicas, cada vez mais fechadas pelos lockdowns.
Em alguns países, como a África do Sul, a maioria dos pacientes já pega medicamentos em centros comunitários, e não em hospitais, disse Salim S. Abdool Karim, especialista em saúde global na África do Sul e presidente de um comitê consultivo do governo sobre a covid-19. “Tem sido uma grande vantagem, até certo ponto”. /TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU