A ameaça digital
Por Daniel Becker / O GLOBO
Roberta está preocupada com o comportamento do filho adolescente, ao seu lado em meu consultório. Felipe não conversa mais como antes, fica fechado no quarto, até nos fins de semana. Anda recusando convites de amigos. Com frequência alega algum mal-estar para faltar às aulas de futebol e inglês. Vive taciturno, entristecido, sem ânimo, irritado. As notas pioraram. Engordou muito em poucos meses, está descuidando da higiene. Adorava ler, mas agora só quer saber de celular e computador.
Peço ao menino que descreva cada etapa do seu dia: ainda na cama checa as mensagens no WhatsApp, abre o Instagram, vê vídeos no Tiktok. Escova os dentes e toma café sem desligar o aparelho, que segue sendo usado no transporte escolar. Durante as aulas, assiste vídeos evitando que o professor perceba. No recreio, senta-se com um lanche e surfa no Youtube. Idem na volta para casa. Ao chegar, liga o videogame, e só para durante o almoço, engolido com o celular ligado. Na ida e na volta das atividades, mesma coisa. À noite assiste TV com a família no jantar. Logo depois, vídeo game com amigos. Vai deitar só na terceira vez que os pais ordenam, gritando, lá pelas 23h30. E fica ainda nas redes, até apagar de exaustão. “E de madrugada?”, “Eu durmo, ué”. “Mas às vezes você acorda, né?”, “Sim, acontece.” “E o que você faz no celular nessa hora? TikTok, certo?” Ele me olha surpreso e confirma.
Roberta está em lágrimas. Ela não havia se dado conta da gravidade da situação. Calculamos o tempo que Felipe passa no mundo digital: cerca de 14 horas por dia, e mais uma hora durante a madrugada, num consumo passivo e acrítico, de conteúdo duvidoso. Quem o está educando?
Com nomes fictícios, a história é adaptada, mas verdadeira. Claro que retrata um caso extremo, mas pode servir como alerta para todas as famílias. Trata-se de um adolescente, mas há crianças de 6 anos (e até menores) vivendo realidades semelhantes.
Talvez esse seja o problema que mais aflige as famílias hoje. Vamos entendê-lo em suas diversas dimensões, e também encontrar saídas.
Diante da sua magnitude e importância, vou voltar a ele muitas vezes aqui.
O que sabemos? Não resta dúvida que o excesso de telas faz muito mal. Elas viciam de verdade. Quanto mais ficamos nos aplicativos, mais as Big Techs faturam: nossa atenção é o seu produto. Por isso, investem bilhões no desenvolvimento de sofisticados mecanismos para nos viciar, mediados pela dopamina, o neurotransmissor do prazer. Se nem adultos conseguem se defender desse ataque maciço imagine crianças.
A imersão digital prejudica o desenvolvimento físico e mental em múltiplas dimensões. Provoca sedentarismo e ganho de peso, atrapalha sono, memória e aprendizado, reduz a criatividade e a atenção, corrói habilidades sócio-emocionais como empatia e capacidade de comunicação. E gera transtornos mentais e emocionais. Expõe a criança a perigos enormes, como predadores, golpistas, violência, intolerância, cyberbullying, sexualidade inadequada. Estimula comportamentos de risco. Incute valores negativos como desejo de fama fácil, narcisismo, sexismo, preconceito, futilidade, consumismo, hipervalorização da aparência. E muito mais. A associação entre uso de redes sociais com ansiedade e depressão são indubitáveis, especialmente quando próxima da puberdade.
É impossível e inútil evitar o mundo digital. Para os adultos, telas são indispensáveis. No cuidado com filhos, facilitam, distraem, permitem que a gente respire. E as crianças tocam o terror à menor menção de parar.
Mas o excesso precisa ser controlado. O risco de ignorarmos essa questão urgente é altíssimo. Trata-se da vida de nossos filhos. E do futuro da humanidade.
As famílias não podem arcar sozinhas com esse problema. Precisamos envolver a sociedade, o estado e as próprias empresas de tecnologia. A educação digital precisa estar em todas as escolas.
Há saídas, remédios, estratégias para melhorar. Fique ligado nas próximas colunas.
Em busca de um pacto
Por Merval Pereira / O GLOBO
A reforma tributária, um dos pilares do projeto reformista do governo Lula, que dependerá de ampla negociação no Congresso, terá um debate muito mais amplo do que apenas o aspecto financeiro, no que depender dos governadores dos sete estados que compõem o Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Consud), que se reuniram nos últimos três dias no Rio.
O aspecto político da relação entre os entes federativos (municípios, estados e governo federal) foi destacado por todos os governadores – de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – que desejam uma maior autonomia diante do governo federal e uma relação de menos submissão orçamentária.
O governador do Rio, Claudio Castro, usou o termo “agiotagem” para criticar os termos da negociação das dívidas dos estados e foi seguido por todos os demais, independente da questão partidária. Com linguagem menos coloquial, mas com o mesmo espírito, a carta do Rio de Janeiro, lançada ao final do encontro, ressalta que “os estados do Sul e do Sudeste respondem por 93% da dívida pública com a União, representando cerca de 60 bilhões e que, em alguns casos, sua dinâmica se mostra insustentável”.
“É impensável que, num ambiente onde o crescimento econômico é muito inferior aos encargos dos contratos de dívida com a União, os estados paguem suas dívidas e ainda invistam em infraestrutura, modernização e na manutenção dos serviços públicos essenciais”, ressaltam os governadores.
O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, otimista em relação às negociações, ressaltou que o equilíbrio fiscal e a política de proteção do meio ambiente são as duas diretrizes básicas para a negociação dos estados e municípios com o governo federal. O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Antônio Anastasia, ex-governador de Minas Gerais e ex-senador, fez uma análise interessante do que chamou de “DNA” do brasileiro, forjado a partir da dependência da Coroa portuguesa, que seria o de esperar a chegada de um “salvador da Pátria” para resolver as questões do país.
Essa tendência, reafirmada pela preferência do presidencialismo já constatada várias vezes em plebiscitos, seria a base da centralidade do governo federal nas decisões políticas e econômicas. Para Anastasia, essa situação só mudará se houver uma reeducação cívica dos cidadãos e “magnanimidade” do governo federal para entender que, ganhando os estados e municípios, ganhará o país como um todo.
O poder do pacto federativo foi exemplificado com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir que os estados tomassem a frente da ação contra a Covid-19, diante da inércia e, muitas vezes, da ação negativa do governo federal. A vacinação contra a Covid, que já estava atrasada, seria muito mais prejudicada se a decisão final ficasse a cargo do governo Bolsonaro.
O ministro Padilha garantiu que o governo federal está disposto a trabalhar em conjunto com estados e municípios, e na Carta do Rio de janeiro os governadores também se colocam prontos a trabalhar em conjunto com o governo federal e municípios na aprovação de uma reforma tributária de base ampla, que aumente a eficiência econômica: “Ao persistirmos neste descompasso, os estados acabarão por perder dinamismo econômico, gerando menos emprego e renda, dificultando o combate à redução da pobreza”.
O governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas, ligado ao ex-presidente Bolsonaro, defendeu que o país teve “uma série de avanços nos últimos anos com reformas estruturantes que destravaram setores da nossa economia”, ressaltando as concessões, “uma forma de diminuir os gastos” e melhorar a eficiência dos serviços. O ministro Padilha colocou as concessões e Parcerias Público-Provadas como instrumentos eficientes para o desenvolvimento do país, mostrando que a ojeriza a elas está superada.
A gota d'água
Luana Génot / O GLOBO
Nas últimas semanas, vimos o número de dezenas de mortos, milhares de desabrigados e desalojados, crescendo após as fortes chuvas no litoral de São Paulo. Infelizmente, não é um fato isolado. Mais do que números, o Brasil perde vidas, sonhos e narrativas de indivíduos, incluindo muitas crianças e jovens insubstituíveis, especialmente, para suas famílias. O que é inaceitável. Não podemos simplesmente nos conformar e virar a página.
Obviamente, a prioridade máxima é evitar novas perdas e prestar socorro imediato às vítimas, em busca de viabilizar o acolhimento e o retorno às suas atividades, assim como reorganizar, dentro do possível, as zonas atingidas. Vi amigos de organizações como a CUFA e a Gerando Falcões fazendo trabalhos junto aos governos e às instituições locais para ajudar a prover ajudas humanitárias urgentes. Se puder doar para ajudar, faça! No entanto, é importante destacar o que já sabemos: as chuvas atingem nosso país em diversas regiões todos os anos. A síntese de “tragédia anunciada” me parece mais correta. E, infelizmente, a tendência é que elas sejam ainda mais potencializadas com a intensificação das mudanças climáticas.
O quadro, ainda assim, não se trata de um acaso da natureza. Não dá para continuar reforçando, como vimos em muitos noticiários, que “a tragédia foi provocada pelas chuvas”. Muitos casos do tipo não se tratam de desastres naturais, mas de consequências da ação humana coletiva ao longo da história.Não espanta o porquê do projeto de Elon Musk e de outros bilionários que estão explorando a corrida espacial para outros lugares do universo chamar tanta atenção. Parece que a galera que entendeu que aqui está dando ruim quer uma nova morada para chamar de sua e vender os lotes.
Uma espécie de novo “Elysium”, um condomínio em outro planeta para seres privilegiados (não vou dar spoiler se você não viu o filme com o ator Wagner Moura). Enquanto a passagem para Marte ou Elysium não chega para quem pode pagar por elas, a maioria de nós está colhendo, de algum modo, os efeitos da crise climática planetária. Que foram construídos por uma exploração exacerbada da natureza e de pessoas ao longo da História e, em especial, dos países e regiões mais ricas sem cuidado e proteção aos bens naturais. Se a natureza somos nós, em simbiose com o meio em que vivemos, jogar no ambiente a culpa pelas tragédias que causamos é, no mínimo, irresponsável. E uma das formas de agir de modo mais coerente é reconhecendo a nossa corresponsabilidade no problema.
Sabemos também que não é acaso o perfil das vítimas mais letais deste tipo de tragédia anunciada. Geralmente, são populações periféricas, faveladas, negras, indígenas que passaram por processos de remoção, gentrificação e foram, literalmente, varridas para áreas de risco com moradias precarizadas.Entre essas populações, muitas não têm acesso a esgoto tratado e são mais suscetíveis aos picos de energia, já que nestes lugares a eletricidade é uma das últimas a ser estabelecida, quando há fornecimento frequente. Isso tem nome: racismo ambiental.
Será importante para governos, autoridades e sociedade civil olhar o passivo histórico e tratar do tema do racismo ambiental de modo mais enfático dentro da pauta climática e ESG para conseguirmos avançar e mitigar possíveis efeitos de novas tragédias anunciadas cada vez mais previsíveis, frequentes e intensas.
Sem causa
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra já era um tanto farsesco na década retrasada, quando empregava métodos violentos em nome de uma causa duvidosa sob complacência camarada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Já se questionavam, na época, a eficácia e os limites da reforma agrária como política social, dados os custos elevados, a urbanização irreversível do país e a produtividade da agropecuária mecanizada.
Mesmo com o ritmo inaudito das desapropriações, o MST mantinha o discurso radical e prosseguia com suas invasões de propriedades a qualquer pretexto, enquanto obtinha cargos e verbas públicas.
Mais recentemente, os sem-terra ficaram em relativa calmaria sob Jair Bolsonaro (PL) —que se gabava de ter posto fim ao movimento com a entrega de centenas de milhares de títulos de posse a assentados em governos anteriores.
Eis que agora, no retorno de Lula ao poder, o MST volta a ter destaque no noticiário com a invasão de três fazendas de cultivo de eucaliptos da Suzano Celulose, no extremo sul da Bahia, mobilizando cerca de 1.500 integrantes.
Trata-se de terras produtivas, o que contraria a tradicional propaganda a respeito das ações do movimento. Este apresentou a versão oficial de que o objetivo era pressionar a empresa a cumprir um acordo de 2010 envolvendo a cessão de terras para 600 famílias.
No próprio site do MST na internet, sugerem-se motivações bem menos revolucionárias. "O MST acionou o alerta amarelo diante da demora do governo federal em nomear a presidência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)", relatou-se ali na segunda-feira (27), dia da invasão das fazendas na Bahia.
Na mesma data, o governo federal efetivou o servidor de carreira César Aldrighi, até então interino, no comando do órgão. A nomeação estava atrasada em razão de disputas políticas pelo posto.
A reforma agrária há muito perdeu relevância entre as principais bandeiras do PT —já sob Dilma Rousseff, que não era dada a economizar dinheiro, o ritmo de incorporações de terras para o programa desabara. Não há expectativa de retomada vigorosa agora.
Já o MST, mesmo amansado, ainda se presta ao papel de espantalho para os setores antipetistas da sociedade, notadamente no agronegócio. Com seu ato criminoso desta semana, forneceu um discurso fácil aos seguidores de Bolsonaro.
Lula receber navios iranianos é lamentável, diz autoridade do governo Biden
Os Estados Unidos viram como "lamentável" a decisão do Brasil de receber os navios de guerra iranianos nesta semana, mas reconhecem que foi "uma decisão soberana". É o que diz Ricardo Zúniga, o principal formulador de políticas para o Brasil dentro da gestão de Joe Biden.
Vice-secretário assistente no Departamento de Estado e ex-cônsul em São Paulo, o diplomata afirma que o regime iraniano "não age apenas contra seu próprio povo", mas projeta sua influência além das fronteiras "em atividades contraproducentes para a paz e a segurança internacionais."
Em entrevista à Folha, Zúniga diz que espera que o Brasil defenda a democracia e os direitos humanos nas ditaduras de Nicarágua e Venezuela. Ele reconhece que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode ter interesses divergentes dos americanos, mas afirma que os países têm relações complexas e que a ideia é fortalecer o laço com o Brasil.
John Kerry disse no Brasil que deve-se colocar a mesma quantidade de dinheiro no combate a mudanças climáticas que se coloca na Guerra da Ucrânia. Mas o montante oferecido pelos EUA para o Fundo Amazônia foi apenas de US$ 50 milhões, menor do que o esperado e muito menor do que os EUA gastam na guerra. Os EUA vão ampliar esse valor? Vamos ter que trabalhar com o nosso Congresso para garantir que o nível de apoio seja proporcional à importância que damos a isso. Consideramos chave que o Brasil continue liderando esforços multilaterais na Bacia Amazônica. Precisamos olhar para isso além do Brasil e achamos a abordagem regional muito sábia. A incerteza do que o Congresso vai aprovar é uma das razões pelas quais não fomos capazes de avançar além disso. Os US$ 50 milhões que foram colocados na mesa foram apenas o começo, mas acho que ambos os governos concordaram que era um bom começo.
O ministro Mauro Vieira vai receber o chanceler russo, Serguei Lavrov, em abril no Brasil. O governo russo indicou que pode estar aberto a conversas mediadas pela China e possivelmente pelo Brasil. O presidente Lula tem falado em um clube da paz. Como você vê isso? Há um aspecto diplomático importante para alcançar o fim deste conflito, que os EUA reconhecem, apoiam e tem defendido. O secretário [de Estado americano, Antony] Blinken conversou com o ministro Lavrov. Mas não devemos perder de vista que há uma solução muito clara para a guerra, que é a Rússia parar a agressão e a invasão. A Ucrânia tem muito pouco espaço de manobra. Se parar de lutar, perde território. A maioria da comunidade internacional, incluindo Brasil e EUA, concorda que houve uma violação da Carta da ONU.
É importante que todos trabalhem para convencer a Rússia a pôr fim à sua agressão. Temos muito cuidado para não fazer uma falsa equivalência. Não são partes iguais do conflito. Um lado é o agressor, a Rússia, e outro é a vítima, a Ucrânia. A diplomacia é uma das componentes, mas tem que ser abordada da perspectiva de que a Ucrânia é a parte prejudicada.
Como viu o atracamento dos navios iranianos no Brasil? O Irã está claramente tentando demonstrar sua capacidade de levar força militar para qualquer lugar do mundo, e esse era o propósito da visita, demonstrar que pode operar em outras partes do mundo. Os navios foram alvo de sanções dos EUA por facilitar atividades ilícitas no passado, e deixamos claro para todos os países das Américas nossas preocupações. Receber os navios quando o Irã não apenas está agindo contra seu próprio povo, mas também tentando se envolver muito além de suas fronteiras em atividades contraproducentes para a paz e a segurança internacionais é preocupante.
Reconhecemos que é uma decisão soberana do Brasil. Mas vale notar que nenhum outro país hospedou esses navios. E há um amplo consenso de que os esforços do Irã em projetar poder no Hemisfério Ocidental, nas Américas, não são propícios para o bem-estar das Américas, devido a atos muito claros e documentados. A Argentina, vizinha do Brasil, é um exemplo muito bom dos tipos de atividades que o Irã realizou no passado [ataque contra judeus no país em 1992 e 1994 deixaram 114 mortos]. É o mesmo governo no poder até hoje. Portanto, foi lamentável, mas, novamente, uma decisão soberana do Brasil........
NOVO BO9LSA FAMILIA, VELHOS PROBLEMAS
Por Notas & Informações / O ESTADÃO
O presidente Lula da Silva assinou na quinta-feira passada a medida provisória (MP) que recriou o Bolsa Família, agora sob novos parâmetros. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, 20 milhões de famílias serão atendidas pelo programa remodelado, o que corresponde a cerca de 55 milhões de pessoas. Além do benefício mínimo, no valor de R$ 600, foram criados dois benefícios complementares, promessas de Lula durante a campanha eleitoral: um adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos de idade na composição familiar; e o benefício “Renda e Cidadania”, de R$ 50, que será pago a cada membro da família com idade entre 7 e 18 anos incompletos e às gestantes.
A um só tempo, a recriação do Bolsa Família representa acertos do governo Lula e uma vergonha para a sociedade brasileira. Comecemos pelos pontos positivos.
Em primeiro lugar, o governo agiu bem ao retomar as contrapartidas sanitárias e educacionais que sempre estiveram atreladas à concessão dos benefícios. Para receber os recursos do novo Bolsa Família, os beneficiários voltarão a ter de provar que suas crianças estão matriculadas na escola e estão em dia com a vacinação contra doenças infectocontagiosas. As gestantes terão de realizar o acompanhamento pré-natal. Essas exigências haviam sido eliminadas por Jair Bolsonaro, quando da criação do Auxílio Brasil, porque o ex-presidente jamais esteve interessado em melhorar as condições de vida dos desvalidos, mas sim em criar um programa descarado de compra de votos.
O presidente Lula também acertou ao exigir do Ministério do Desenvolvimento Social o aprimoramento do Cadastro Único (CadÚnico), base de dados cuja acurácia é fundamental para o direcionamento dos recursos do Bolsa Família às pessoas certas. Durante a cerimônia de assinatura da MP, no Palácio do Planalto, Lula afirmou que “esse programa só dará certo se o Cadastro Único for eficaz e garantir que o benefício chegue a quem precisa”. Lula pediu a ajuda “de toda a sociedade” – especialmente da imprensa – para “fiscalizar” a concessão dos benefícios. A imprensa, até por dever de ofício, não se furtará a exercer seu papel, mas não custa lembrar que é do governo o dever de zelar pela higidez do CadÚnico.
Ao estabelecer novos parâmetros para pagamento dos benefícios e reforçar a necessidade de aprimorar o CadÚnico – segundo estimativas do próprio governo, há 1,5 milhão de beneficiários em situação irregular –, Lula tende a eliminar as distorções que, nos últimos quatro anos, tornaram o programa de transferência de renda um caos, um sorvedouro de recursos públicos mal direcionados. Decerto é possível fazer mais e melhor, quiçá gastando menos, apenas depurando o quadro de beneficiários do Bolsa Família, com mais foco e inteligência.
Dito isso, é uma vergonha para a sociedade brasileira o fato de que, passadas duas décadas desde a criação do Bolsa Família, ainda haja tantos milhões de cidadãos que dependem do benefício estatal para sobreviver. Não há evidência mais cabal do absoluto fracasso de sucessivos governos, de diferentes orientações político-ideológicas, em acabar com a miséria no País. Por óbvio, não se trata de supor, ingenuamente, que no espaço de 20 anos fossem superadas as causas que constituíram a desigualdade como um traço distintivo da formação nacional. O que espanta é o Bolsa Família ainda ter a dimensão e a importância que tem em 2023.
Este jornal não é contra programas de transferência de renda, menos ainda contra o Bolsa Família, política pública que se provou bem-sucedida por meio de evidências científicas e análises de especialistas insuspeitos. O Brasil é um país que ainda não pode prescindir de um bom programa de transferência de renda. Muitos cidadãos têm essa consciência e aceitam arcar com seus custos.
O problema, portanto, não é o Bolsa Família em si, mas sua perpetuação, até como ativo eleitoral. Um estadista estaria ocupado em criar as condições que permitam que cada vez mais brasileiros resgatem sua cidadania e cada vez menos dependam do Estado para viver.