A gota d'água
Luana Génot / O GLOBO
Nas últimas semanas, vimos o número de dezenas de mortos, milhares de desabrigados e desalojados, crescendo após as fortes chuvas no litoral de São Paulo. Infelizmente, não é um fato isolado. Mais do que números, o Brasil perde vidas, sonhos e narrativas de indivíduos, incluindo muitas crianças e jovens insubstituíveis, especialmente, para suas famílias. O que é inaceitável. Não podemos simplesmente nos conformar e virar a página.
Obviamente, a prioridade máxima é evitar novas perdas e prestar socorro imediato às vítimas, em busca de viabilizar o acolhimento e o retorno às suas atividades, assim como reorganizar, dentro do possível, as zonas atingidas. Vi amigos de organizações como a CUFA e a Gerando Falcões fazendo trabalhos junto aos governos e às instituições locais para ajudar a prover ajudas humanitárias urgentes. Se puder doar para ajudar, faça! No entanto, é importante destacar o que já sabemos: as chuvas atingem nosso país em diversas regiões todos os anos. A síntese de “tragédia anunciada” me parece mais correta. E, infelizmente, a tendência é que elas sejam ainda mais potencializadas com a intensificação das mudanças climáticas.
O quadro, ainda assim, não se trata de um acaso da natureza. Não dá para continuar reforçando, como vimos em muitos noticiários, que “a tragédia foi provocada pelas chuvas”. Muitos casos do tipo não se tratam de desastres naturais, mas de consequências da ação humana coletiva ao longo da história.Não espanta o porquê do projeto de Elon Musk e de outros bilionários que estão explorando a corrida espacial para outros lugares do universo chamar tanta atenção. Parece que a galera que entendeu que aqui está dando ruim quer uma nova morada para chamar de sua e vender os lotes.
Uma espécie de novo “Elysium”, um condomínio em outro planeta para seres privilegiados (não vou dar spoiler se você não viu o filme com o ator Wagner Moura). Enquanto a passagem para Marte ou Elysium não chega para quem pode pagar por elas, a maioria de nós está colhendo, de algum modo, os efeitos da crise climática planetária. Que foram construídos por uma exploração exacerbada da natureza e de pessoas ao longo da História e, em especial, dos países e regiões mais ricas sem cuidado e proteção aos bens naturais. Se a natureza somos nós, em simbiose com o meio em que vivemos, jogar no ambiente a culpa pelas tragédias que causamos é, no mínimo, irresponsável. E uma das formas de agir de modo mais coerente é reconhecendo a nossa corresponsabilidade no problema.
Sabemos também que não é acaso o perfil das vítimas mais letais deste tipo de tragédia anunciada. Geralmente, são populações periféricas, faveladas, negras, indígenas que passaram por processos de remoção, gentrificação e foram, literalmente, varridas para áreas de risco com moradias precarizadas.Entre essas populações, muitas não têm acesso a esgoto tratado e são mais suscetíveis aos picos de energia, já que nestes lugares a eletricidade é uma das últimas a ser estabelecida, quando há fornecimento frequente. Isso tem nome: racismo ambiental.
Será importante para governos, autoridades e sociedade civil olhar o passivo histórico e tratar do tema do racismo ambiental de modo mais enfático dentro da pauta climática e ESG para conseguirmos avançar e mitigar possíveis efeitos de novas tragédias anunciadas cada vez mais previsíveis, frequentes e intensas.