O DESENCONTRO CO "FRENTE AMPLA"
notas & informaçoes / O ESTAD
Em 2022, brotou forte em uma imensa parcela do eleitorado o anseio por uma frente ampla democrática capaz de serenar o País e distensionar as relações entre as instituições, abrindo canais de comunicação entre o melhor das forças republicanas à direita e à esquerda para enfrentar desafios urgentes, como a recuperação pós-pandemia, a fome, a inflação, e pavimentar os caminhos para o crescimento econômico e para melhorar a educação, a saúde ou a segurança pública. Seja por falta de ideias, de paixão ou articulação, os candidatos da chamada terceira via não conseguiram cativar esses eleitores. Mas o candidato que acabou vencedor também não conseguiu.
A coligação de Lula da Silva não logrou reunir senão partidos de esquerda. Ela não conquistou a maioria no primeiro turno. No segundo, venceu pela margem mais apertada desde a redemocratização, perdendo em regiões importantes como o Sul, Sudeste e Centro-Oeste e entre as classes média e alta. Aqueles que não lhe deram um voto de confiança, seja por terem votado no adversário, nulo, branco ou não terem votado, representam quase dois terços do eleitorado. Na Câmara, ela conquistou pouco mais de 130 cadeiras (cerca de um quarto) e no Senado, 5 das 27 disputadas.
Longe de representarem o triunfo de uma “frente ampla democrática” consolidada, esses resultados sugerem que o grande desafio dos vencedores seria construir essa frente por meio de negociações e, inevitavelmente, concessões, distribuindo o poder e articulando projetos de conteúdos mais moderados. Mas o governo fez o oposto.
“Estamos vendo um Lula até raivoso em determinados momentos”, disse ao Estadão o ex-senador pelo PSDB Tasso Jereissati, que apoiou Lula no segundo turno contra o mal maior, Jair Bolsonaro. “Ele mesmo falou que era preciso acabar com o nós contra eles. Não veio um Lula Mandela, veio um Lula anti-Bolsonaro”, disse o ex-senador, referindo-se ao líder sul-africano que, mesmo após 27 anos na prisão, dialogou com seus algozes em nome da união do país.
Não deixa de ser um tanto surpreendente que o experiente Jereissati se diga “muito surpreso” com a radicalidade do governo na forma e no conteúdo. Não havia nada na campanha que autorizasse expectativas de que o PT teria revisto suas pretensões hegemônicas e seus programas retrógrados; não havia nenhuma proposta que autorizasse supor que Lula adotaria o pragmatismo de seu primeiro mandato; não havia nenhuma retratação pelas políticas econômicas heterodoxas gestadas em seu segundo mandato e consumadas pela sua criatura Dilma Rousseff, que mergulharam o País na pior recessão da história recente; nem pelas táticas empregadas no mensalão ou no petrolão, que o mergulharam na maior crise moral da Nova República; nem pelo sectarismo virulento que o polarizou e abriu caminho para a eleição da nêmesis petista, Jair Bolsonaro.
Lula e o PT não só não aprenderam nada nem esqueceram nada, como falam de um Brasil em estado catastrófico, como se não tivessem recebido cinco dos últimos seis mandatos e governado o País por quase 14 dos últimos 20 anos.
Já no poder, o Diretório Nacional do PT, que, como se sabe, nada mais é que um porta-voz de Lula, consolidou essa atitude em uma resolução eivada de ressentimentos e mentiras. O partido teria sido vítima de uma conspiração das elites, e seu retorno ao poder é uma espécie de reparação histórica que lhe dará a oportunidade de se vingar e implementar plenamente seus dogmas.
Lula não despreza apenas os partidos de oposição, mas seus próprios aliados. “O único partido com cabeça, tronco e membro é o PT”, disse em entrevista recente. “O restante é uma cooperativa de deputados que se juntam nas eleições.”
Assim, a rigor, não se pode dizer que a “frente ampla democrática” de Lula malogrou, porque ela nunca existiu, nem nas intenções do partido, muito menos nas suas articulações, apenas na retórica eleitoral. Mas quanto mais o engodo é evidenciado, mais se mostra necessário construir uma verdadeira frente ampla democrática, seja para frear a marcha da insensatez lulopetista rumo a um passado idealizado como glorioso que na realidade foi desastroso, seja para construir as bases de um futuro governo verdadeiramente amplo, plural, eficiente e republicano.
Ditador companheiro
Alberto Cantalice, membro do diretório nacional do PT e diretor da Fundação Perseu Abramo, ligada ao partido, expressou não mais que um truísmo. Disse que Venezuela e Nicarágua são ditaduras —e que não faz sentido criticar o autoritarismo de Jair Bolsonaro (PL) e, ao mesmo tempo, poupar esses dois regimes latino-americanos.
A obviedade da afirmação não evitou que lideranças petistas mais identificadas com a velha guarda desautorizassem Cantalice, que também fizera crítica a Cuba, posteriormente relativizada.
Entre os representantes dessa ala, ligações afetivas com os dirigentes estrangeiros de esquerda e uma fetichização da história de movimentos populares parecem falar mais alto do que as evidências presentes de graves violações a direitos humanos e outros crimes
Enquanto esse tipo de controvérsia fica restrito ao âmbito do partido, trata-se de uma questão "interna corporis", ou seja, que diz respeito apenas à legenda e seus filiados. Se o PT quiser queimar seu capital político louvando ditaduras, é direito seu fazê-lo.
O problema é que há indícios de que a ambiguidade petista em relação às ditaduras de esquerda esteja novamente afetando posicionamentos diplomáticos do Brasil, agora sob a administração de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o que a transforma numa questão pública.
E, com efeito, o governo brasileiro demorou mais de um mês para oferecer acolhimento aos opositores do regime nicaraguense de quem Daniel Ortega, em mais um lance de sua escalada autoritária, suprimiu a cidadania, convertendo-os em mais de 300 apátridas.
Governantes sul-americanos de uma esquerda menos fossilizada, casos do Chile e da Colômbia, foram bem mais rápidos no tempo de reação e na condenação a outras violações de direitos humanos por parte do líder sandinista.
Não se pede que o Brasil rompa com países suspeitos de torturar presos ou que oriente sua atuação diplomática pelo moralismo. Relações internacionais, ninguém o ignora, são pautadas primordialmente pelo interesse. O Brasil pode e deve relacionar-se tanto com Cuba como com a Arábia Saudita.
É importante, entretanto, que os interesses sejam modulados por princípios. A própria Constituição, em seu artigo 4º, elenca dez deles, entre os quais estão a prevalência dos direitos humanos e a concessão de asilo político. A sinalização visa tanto ao público externo, isto é, a comunidade de nações, como ao interno, os cidadãos brasileiros.
Lula foi eleito para governar para todos, não apenas para petistas e aliados ideológicos. Isso exige que enterre de vez suas simpatias por ditaduras amigas, pois agora representa o Estado brasileiro.
UM CNJ CAPTURADO PELO CORPORATIVISMO
A Constituição de 1988 proíbe que juízes exerçam, ainda que tenham disponibilidade de horário, “outro cargo ou função, salvo uma de magistério” (art. 95, § único, I). Para ser efetiva na proteção da imparcialidade dos magistrados, a regra constitucional precisava ser regulamentada de maneira estável e segura. Como órgão de controle do Judiciário, cabia ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fazer a regulamentação. No entanto, o que parecia funcionar no início vem ganhando limites assustadoramente frouxos.
Em 2007, o CNJ instituiu a Resolução 34/2007, regulamentando o exercício da docência por juízes. Estabeleceu diretrizes e parâmetros. Seis anos depois, na Resolução 170/2013, sobre algumas modalidades de eventos acadêmicos, o órgão lembrou que “ao magistrado é vedado receber, a qualquer título ou pretexto, prêmios, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei”. A menção não foi gratuita. Havia casos de abusos.
Em 2016, o CNJ inovou no tema. A Resolução 226/16 estabeleceu que qualquer participação de magistrados, “na condição de palestrante, conferencista, presidente de mesa, moderador, debatedor ou membro de comissão organizadora”, deveria ser considerada “atividade docente”. Na prática, era uma autorização geral para juízes participarem dos mais diversos eventos.
Na ocasião, como contraponto à liberação irrestrita, foi instituída a obrigação de informar “ao órgão competente do Tribunal respectivo” a participação nesses simpósios, indicando, entre outros detalhes, a entidade promotora do evento. A Resolução 226/2016 também estabeleceu que cabia ao CNJ e à Corregedoria Nacional de Justiça promoverem “o acompanhamento e a avaliação periódica” das informações sobre os eventos.
No entanto, toda essa dinâmica foi alterada em 2021. Por meio da Resolução 373/21, o CNJ revogou o dever de informar sobre a participação nos eventos, bem como o acompanhamento pelo CNJ dessas informações. Ao mesmo tempo, manteve a liberação geral, ratificando a atribuição de caráter acadêmico a todos esses eventos.
Como mostrou o Estadão, sob pretexto de participação em eventos “acadêmicos”, magistrados têm recebido generosas benesses bancadas por alguns dos maiores litigantes do País. Entre outras, há shows exclusivos com artistas renomados, jantar em cassino, baladas, estadia em hotéis cinco-estrelas e aluguel de lanchas com direito a espumante de brinde.
Fundado por dirigentes de um fundo de investimentos em ativos de insolvências, o Instituto Brasileiro da Insolvência (Ibajud) levou, no ano passado, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), além de juízes de recuperação judicial, para o Algarve, em Portugal. O congresso terminou com show em um cassino. Por sua vez, o Instituto Brasileiro de Direito da Empresa (IBDE) promoveu um encontro em resort na cidade do Porto. Aos olhos do CNJ, tudo isso é evento acadêmico.
Por óbvio, não basta alegar o “caráter acadêmico” para que a concessão de mimos e benefícios a juízes esteja liberada. Segundo Rafael Mafei, professor de Direito da USP, há uma enorme diferença entre custear uma palestra e “a oferta de uma viagem de luxo”. Além disso, considera problemática a situação em que o promotor do evento, “diretamente ou por meio de associações que despistam o vínculo, é parte interessada em casos julgados pelo magistrado”.
É preciso resgatar a função de controle do CNJ. Criado em 2004, no âmbito da reforma do Judiciário, ele foi uma tentativa de moralizar o funcionamento da Justiça. Ao longo desses anos, o CNJ tomou medidas importantes. Suas inspeções e correições expuseram problemas graves de nepotismo e corporativismo existentes em tribunais pelo País. No entanto, como se vê no tema dos eventos acadêmicos, o próprio CNJ parece ter sido capturado pelo corporativismo.
Além de afetar a imagem do Judiciário e tornar uma ficção a imparcialidade do magistrado, tudo isso representa descumprimento direto da Constituição. O ESTADÃO
LULA E OS DITADORES "COMPANHEIROS'
Por Notas & Informações / O ESTADÃO
Há poucos dias, durante reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, o Brasil se recusou a acompanhar os mais de 50 países que denunciaram a prática de crimes contra a humanidade pela tirania de Daniel Ortega na Nicarágua.
É compreensível. Como é que o presidente Lula da Silva pode endossar uma denúncia grave como essa contra um amigão que o chama de “irmão e companheiro”? As profundas afinidades entre Lula e Ortega passam pela devoção a Fidel Castro e pelo cacoete de culpar os EUA por todo o mal da América Latina. Para muitos petistas, censurar Ortega (ou o ditador Nicolás Maduro, ou o comandante Fidel) equivaleria a fazer o jogo dos imperialistas americanos e, pior, trair a esquerda.
Pouco importa que governos esquerdistas acima de qualquer suspeita, como os do Chile e da Colômbia, firmaram o documento crítico ao regime de Ortega. Quando o esquerdismo se torna “doença infantil”, patologia desse lulopetismo de grêmio estudantil, qualquer manifestação de racionalidade é desde logo denunciada como “desvio”.
Quem sentiu isso na pele foi Alberto Cantalice, membro do Diretório Nacional do PT, que ousou criticar os ditadores Ortega e Maduro. No Twitter, escreveu que o nicaraguense “enxovalha a esquerda latino-americana” e que os petistas não podem criticar o autoritarismo de Jair Bolsonaro enquanto fazem vista grossa às barbaridades cometidas pelos ditadores “companheiros”. Foi o bastante para que Cantalice fosse qualificado como traidor do “campo democrático popular” em favor do “campo imperialista”.
É claro que qualquer presidente brasileiro deve adotar a prudência, sobretudo em temas espinhosos, em que os interesses do País estejam em risco. Não é, no entanto, o caso da condenação da ditadura nicaraguense. Abster-se de denunciar essa ditadura e seus crimes contra a humanidade equivale a insultar as vítimas dessa tirania. Não cabe, aqui, falar em respeito à “soberania”, como habitualmente dizem os petistas, pois nenhum governo é soberano para massacrar seu próprio povo; também não cabe falar em respeito à “autodeterminação” dos nicaraguenses, pois nenhum povo submetido a uma ditadura é capaz de determinar seu próprio futuro.
A defesa dos direitos humanos é, por definição, uma questão que está além das fronteiras nacionais. É um imperativo da comunidade internacional demandar que os direitos básicos dos cidadãos em qualquer país sejam respeitados. Não é por outra razão que governantes autoritários menosprezam os direitos humanos e consideram sua defesa uma interferência indevida em assuntos internos.
Por isso, o Brasil não podia se abster no caso da Nicarágua, ainda que fosse sob o argumento, invocado pelo Itamaraty, de que a declaração conjunta não abria “canais de diálogo” com a Nicarágua. Ora, não se pode falar em “diálogo” sem que haja antes, da parte de quem agride, a iniciativa de interromper a agressão. Não há como igualar algozes e vítimas, como faz o Brasil sob Lula.
Depois da reação negativa ante o posicionamento brasileiro, o Brasil, numa manifestação em separado no Conselho de Direitos Humanos, expressou “extrema preocupação com os relatos de sérias violações de direitos humanos e restrições de direitos democráticos” na Nicarágua e se ofereceu para receber os cidadãos nicaraguenses degredados por serem considerados opositores do regime. No entanto, em nenhum momento o Brasil condenou a ditadura de Ortega com a firmeza e a veemência que as incontestáveis violações de direitos humanos – atestadas por um grupo de peritos independentes a serviço da ONU – impõem.
Se Lula da Silva tem a pretensão de reposicionar o Brasil no mundo, depois de quatro anos de ostracismo voluntário determinado pelo bolsonarismo, precisa livrar-se urgentemente das amarras ideológicas que o impedem de se alinhar ao mundo civilizado quando isso é tão flagrantemente necessário. Para voltar, de fato, a ser um país relevante em áreas outras que não apenas a ambiental, como deseja Lula, o Brasil deve perfilar com os países que definem suas políticas externas a partir de um patamar mínimo de civilização.
Lira, Lula e Juscelino
Pode-se criticar por muitos motivos o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), mas não por irrealismo político.
Foram precisas suas observações a respeito da sustentação partidária do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante uma palestra na Associação Comercial de São Paulo nesta segunda-feira (6). O petista, disse, não dispõe de votos garantidos nem para projetos que exigem maioria simples, que dirá para reformas constitucionais.
Trata-se de um governo de centro-esquerda que terá de lidar com um Legislativo que se tornou mais liberal neste ano, conforme sua descrição —um tanto benevolente, diga-se, com a expansão do reacionarismo bolsonarista e do fisiologismo do centrão, do qual Lira é um dos expoentes.
Ele tratou de moderar expectativas quanto ao redesenho do sistema tributário, uma das prioridades da agenda econômica: "Ninguém vai chegar na reforma ideal".
Lula foi eleito com margem mínima de votos, recordou, e "precisa entender que temos Banco Central independente, agências reguladoras, Lei das Estatais e um Congresso com atribuições mais amplas".
Em outras palavras, o petista não conseguirá —não sem negociar com um Parlamento de preferências distintas, ao menos— dar concretude a bandeiras que tem empunhado desde a campanha.
Uma demonstração de que o diagnóstico de Lira é acertado se deu no mesmo dia, quando o presidente da República decidiu manter na Esplanada o titular da pasta das Comunicações, Juscelino Filho, a despeito de suspeitas variadas levantadas quanto à conduta do auxiliar nas últimas semanas.
O ministro é um dos três nomes do União Brasil no governo, mas nem assim o partido —uma fusão do ex-bolsonarista PSL com o DEM de pretensões liberais, que tem 59 dos 513 deputados e 10 dos 81 senadores— se assume como parte da base de sustentação ao Planalto.
Ruim com Juscelino, pior sem ele, raciocinou Lula, cujos aliados mais fiéis fizeram saber que agora o presidente espera um apoio mais decidido da legenda. Esta, aliás, anda em tratativas para formar uma federação com o PP de Lira, que se situa no grupo dos independentes.
Sem o União Brasil, a coalizão governista teria apenas 223 deputados, ou 43,5% da Câmara. É verdade que se podem conseguir votos avulsos em outras siglas, mas não há garantia do suficiente para projetos mais difíceis. Se contadas só as forças mais à esquerda, são, quando muito, 139 cadeiras.
Arthur Lira, convém lembrar, chegou ao comando da Casa com um recorde de 464 votos, de partidos tão diferentes quanto o PL de Bolsonaro e o PT. Lula, pois, não apenas precisa rumar ao centro se quiser levar adiante uma agenda mas ambiciosa, mas também não pode se dar ao luxo de brigar com o centrão e seus satélites.
Invasões de terra pelo MST, a velha novidade
Por Eduardo Diamantino* / O ESTADÃO
Nos últimos dias retornou à página de Política dos jornais a questão das invasões de propriedades rurais, capitaneadas pelo MST. A sensação inicial é que isso é coisa do passado; mas como já ensinou Ivan Lessa, "a cada 15 anos o Brasil se esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos" -- e o assunto volta a ser atual.
A primeira anomalia a se registrar é que o assunto está na página de Política ao invés de estar na página Judicial. Algo estranho. O exercício da propriedade é matéria de Direito Civil há mais de 100 anos entre nós. Constava da redação originária do Código Civil de 1916. Logo, havendo esbulho, ou na iminência de ser esbulhado, o proprietário toma as medidas junto ao Poder Judiciário, que determina a desocupação ou impede a sua ocupação. Tudo isso através da polícia. É o Estado exercendo o seu "jus puniendi" e mantendo as relações sociais em harmonia. Em maior ou menor quantidade isso existe há anos e não é um tema inovador no Direito brasileiro.
Como a notícia está na seção errada, também errado estão os protagonistas e as soluções imaginadas para o caso. Nasce a segunda anomalia. Na última das invasões, acompanhei declarações do representante do MST explicando o que era função social da propriedade através de uma ótica enviesada e um tanto particular. Vi também o ministro da Reforma Agrária convocando reuniões e encontros para a não invasão dos imóveis. Proprietários rurais alarmados por redes falaciosas de WhatsApp temem a perda de suas propriedades. Ao largo de todo esse espetáculo, o juiz Renan Souza Moreira, da Vara de Mucuri (BA), determinou a desocupação dos imóveis, nos moldes da boa e velha lei (anexa, a decisão da Vara dos Feitos de Relação de Consumo Cível e Comercial da Comarca de Mucuri).
Esse processo de discutir o problema no fórum errado é algo que tem se agravado em nosso País. Essa transmutação dos poderes, é algo perigoso e que se não for freado terá consequências graves. Ativismo judicial, edição de decretos pelo Executivo, e aplicação de verbas pelo Legislativo são exemplos dessa perigosa aventura de quebras de regras estruturais em nosso País. Judiciário deveria julgar, Legislativo legislar e Executivo, aplicar a lei. Levar as questões de uma forma distinta da prevista no ordenamento é um caminho certo para o arbítrio.
O Direito de Propriedade em nosso País tem garantia constitucional. Está insculpido no artigo quinto em seu inciso XXIII, no 184 e no 186 da Lei Maior. Está regulamentado de forma clara e segura no Estatuto da Terra. Parece-me claro que é um direito firme desde que respeitada a função social -- também explicada em inúmeros artigos de lei. Logo, pode-se dizer que qualquer propriedade rural que está cumprindo sua função social não será expropriada e não poderá ser invadida. Nessa linha vale registrar que a Lei N° 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, estabelece em seu Art. 2° (...) § 6o , que o imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações (incluído pela Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001). Ou seja, ao ocupar as áreas, impede-se que elas sejam objeto de reforma agrária. Agora, se a invasão vier a acontecer o Judiciário aplicará as normas postas. Essas decisões eram proferidas tempos atrás e voltarão a ser. Essa questão é do Poder Judiciário.
Obviamente, podem colaborar com o tema o Legislativo e o Executivo. Há tempos a questão fundiária brasileira reclama uma reorganização legal e a implantação de políticas que deem ao produtor rural estabilidade. A última tentativa nesse sentido, feita através da Medida Provisória 910/19, restou esquecida e abandonada no Congresso. Por que não retomar os trabalhos? Nessa linha, nomear o presidente do Incra e suas diretorias é algo mais produtivo do que marcar reunião com movimentos ideológicos.
Pela parte dos produtores rurais, vale conferir se seus imóveis atendem a função social. Se forem produtivos, ambientalmente regularizados e estiverem perfeitamente aderentes às normas, podem dormir tranquilos. Caso contrário é hora de se mexer. A letargia do governo anterior para essas questões terminou.
*Eduardo Diamantino é sócio do Diamantino Advogados Associados