STF na contramão do Direito, da ética e do País
22 de março de 2021 | 03h00
Não me canso de reafirmar meu respeito ao Supremo Tribunal Federal (STF) enquanto instituição essencial da República. No entanto, as instituições não são abstrações. Encarnam-se nas pessoas que a compõem. A credibilidade da Corte depende, e muito, das atitudes dos seus integrantes. É a base da legitimidade. Perdida a credibilidade, queiramos ou não, abre-se o perigoso atalho para o questionamento da legitimidade.
O STF, infelizmente, não tem contribuído para fortalecer a sua credibilidade. É hoje, lamentavelmente, uma das instituições com maior rejeição. E isso é um grave risco para a democracia.
Meu artigo é um alerta angustiado. Já passou da hora de os ministros descerem do Olimpo dos deuses e fazerem uma séria e honesta autocrítica. A sociedade está farta de inúmeras decisões do STF. E a instituição, goste ou não, está mergulhando numa gravíssima crise de imagem.
A decisão monocrática do ministro Edson Fachin que anulou as condenações de Lula da Silva decididas na 13.ª Vara de Curitiba pelo então juiz Sergio Moro, no âmbito da Operação Lava Jato, e tornou o ex-presidente elegível não poderia deixar de causar um terremoto político e um tsunami de indignação moral. Como disse, oportunamente, a professora Catarina Rochamonte, colunista do jornal Folha de S.Paulo, trata-se daquele que é tido como chefe do chamado petrolão, que o ministro Gilmar Mendes, antes da sua conversão garantista, considerou “o maior escândalo de corrupção de que se tem notícia”. Também “não se tem notícia de uma transmutação de valores como a de Gilmar Mendes, que, de entusiasta da Lava Jato, passou a fazer da destruição da mesma sua prioridade e obsessão”, frisou a colunista.
Fachin, misteriosa e surpreendentemente, resolveu ressuscitar argumentos já analisados (e rebatidos) à exaustão sobre a competência da 13.ª Vara para julgar as ações contra Lula. Para sustentar sua decisão inexplicável afirmou que as ações contra Lula não tratavam especificamente da Petrobrás, foco central da Operação Lava Jato de Curitiba. No entanto, o próprio ministro incluiu em sua decisão trechos da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal no caso do triplex, em que está claríssima a ligação entre os favores recebidos pela empreiteira OAS e nomeações e contratos da Petrobrás. Essa relação foi reconhecida em todas as instâncias nas quais Lula foi condenado – na primeira instância, pelo juiz Sergio Moro e no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), como voto do relator João Pedro Gebran Neto sendo seguido pelos demais membros da Oitava Turma. Por fim, o Superior Tribunal de Justiça, que manteve a condenação de Lula, também analisou os questionamentos sobre a competência para julgar o caso e concluiu que não houve irregularidade alguma ao se realizar o julgamento na 13.ª Vara e pela Oitava Turma do TFR-4.
Em nota, Fachin disse que a questão já havia sido debatida diversas vezes no Supremo, mas só agora reuniu condições de ser julgada corretamente. Ele assumiu o caso em 2017, depois da morte do ministro Teori Zavascki. Foram necessários quatro anos para decidir “corretamente” sobre um assunto que ele havia decidido outras tantas vezes de modo diverso? Nenhum problema. Faz tempo que a Corte deixou de lado os fatos e o Direito e se embrenhou no campo de um ativismo de ocasião. O STF é hoje a principal fonte de insegurança jurídica no País.
Mas a coisa não parou por aí. Fachin errou feio ao anular os processos contra Lula, mas tão evidente quanto o fato de as denúncias e sentenças desses processos desmentirem sua argumentação é o fato de que, concorde-se ou não com essa decisão, uma vez anulados os processos, qualquer recurso impetrado dentro deles também se torna nulo.
Mas aí, caro leitor, aparece no horizonte o ministro Gilmar Mendes. Após segurar o caso por quase dois anos e meio, graças a um pedido de vista, o ministro sentiu forte comichão e decidiu pautar o tema Moro na famosa Segunda Turma do STF. Em voto longo e carregado de parcialidade (afinal, é desafeto público de Moro), Mendes dedicou-se à demolição da reputação do ex-juiz, no que chamou de “maior escândalo judicial da nossa História”, e, apesar de dizer que nem seria necessário usar as supostas mensagens atribuídas ao ex-juiz e aos procuradores da Lava Jato, mencionou seu conteúdo com grande generosidade.
O fecho de ouro foi dado pelo ministro Nunes Marques, escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para o STF. Pediu vista. Um artifício para adiar a provável degola do ex-juiz Sergio Moro e dar mais um empurrãozinho na Lava Jato rumo ao abismo diligentemente preparado num enorme acordão.
Não faz muito, terminei um de meus artigos com um comentário premonitório: Lula absolvido e Moro condenado. A narrativa começa a ser construída. Agora só falta prender o responsável pela maior operação de combate à corrupção da nossa História. Caminhamos céleres rumo à ditadura do Judiciário. Acho difícil, muito difícil, que a imensa maioria da sociedade brasileira, honrada, trabalhadora e sacrificada, aceite engolir um sapo de tamanhas proporções.
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Males da vinculação de receitas a despesas
22 de março de 2021 | 03h00
A proposta de eliminar a vinculação de receitas para a educação e a saúde, via PEC Emergencial, mexeu num vespeiro. Choveram protestos. Vieram até de parlamentares, embora a medida lhes devolvesse o poder de decidir nessas áreas. Não fazia sentido, todavia, agir a toque de caixa sem uma discussão ampla, incluídas as regras de transição. Seja como for, a proposta era correta sob o aspecto histórico, institucional, econômico e político. Nenhum país que leve as finanças públicas a sério vincula receitas a despesas.
Definir anualmente o orçamento público é uma das tarefas mais nobres – se não a mais nobre – do Parlamento. A função foi consagrada nas três revoluções que plasmaram os fundamentos da democracia contemporânea: a Revolução Gloriosa inglesa (1688), a Revolução americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). O absolutismo – indireto no caso americano – foi abolido nos três casos.
O orçamento define, por excelência, as prioridades do Estado e o financiamento das atividades governamentais. Por isso, esses três países o tratam com responsabilidade e simbolismo. Acontece que somos herdeiros de outras tradições, as do patrimonialismo. As finanças pessoais dos reis ibéricos se confundiam com o orçamento público. O absolutismo português sobreviveu até 1820.
A vinculação de receitas a despesas com educação e saúde provoca disfunções no processo orçamentário. A primeira, a da educação, nasceu em 1983, no regime militar, e foi ampliada na Constituição de 1988. A segunda, a da saúde, veio no ano 2000. Em ambas o Congresso Nacional renunciou à sua função primordial, castrando seu poder de decidir nessas áreas.
A vinculação aumenta a obrigatoriedade de gastos e causa desperdícios. A garantia de recursos inibe os incentivos à boa gestão. Municípios em que rareiam crianças são obrigados a gastar 25% da receita de impostos em educação. Prefeitos despendem à toa para evitar denúncia do Ministério Público, pois é crime de responsabilidade não cumprir o mínimo constitucional. Se a arrecadação cresce no fim do ano, é um deus nos acuda para usar o excesso. No País, escolas são pintadas três vezes ao ano para atender à regra.
Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado, 94,3% das despesas primárias do governo federal são obrigatórias. Somados os encargos financeiros da dívida, que na prática também são mandatórios, o porcentual é de 107,9% dos gastos totais. Não há paralelo dessa barbaridade no mundo.
É uma loucura gastar obrigatoriamente mais do que as receitas. Recorre-se, assim, ao endividamento para financiar gastos não mandatórios, como os de investimento público, ciência e tecnologia e de ataque à pobreza extrema. A dívida pública ficará insustentável, com risco de perda de confiança, fuga de capitais e volta da inflação alta e sem controle.
A reação mais estridente à proposta veio da área da educação. Afirmou-se que os baixos investimentos em educação no passado decorreram da ausência da vinculação, mas a explicação é outra. Até os anos 1950 dizia-se que a prioridade deveria ser o crescimento econômico. A educação seria o seu efeito. Por isso se investia apenas 1,4% do produto interno bruto (PIB) na área.
Hoje se sabe que a educação é causa, e não efeito do desenvolvimento. É uma prioridade natural. Daí por que o governo federal gasta mais do que os 18% da receita de impostos previstos na vinculação. Segundo Marcos Mendes, foram 23% em 2020. O mesmo ocorre na saúde, cujas despesas superaram o piso em 4%. Como mostrou Mendes, a vinculação em favor da educação acarretou aumento de salários, não necessariamente a melhora da qualidade.
O Brasil investe em educação 6,2% do PIB, acima da média dos países ricos, 5,8% do PIB, mas estamos nos últimos lugares na avaliação internacional do desempenho de nossos jovens. Mesmo assim, há quem ache pouco. Defende-se a ideia de que a meta deve ser o gasto médio por aluno dos países desenvolvidos.
É o que diz a deputada Tabata Amaral, uma das grandes promessas da nova geração do Congresso. Em sua coluna na Folha de S.Paulo de 27/2, vê-se que a média da OCDE é 2,3 vezes a do Brasil. Se fosse assim, investiríamos 15,6% do PIB, mais do que qualquer outro país. Ao mesmo tempo, a dívida pública explodiria.
O raciocínio é equivocado. No mundo inteiro, as comparações adequadas são as feitas como proporção do PIB, e não em valores absolutos. É assim com carga tributária, dívida pública, investimento e gastos militares de educação e saúde. Já imaginou se os aposentados, invocando tal ideia, reivindicassem ganhar tanto quanto os dos países ricos? A conta da Previdência saltaria para 70% do PIB!
Em algum momento, vamos ter de eliminar as vinculações orçamentárias. Elas criam distorções, pioram a qualidade das finanças públicas e prejudicam o desenvolvimento. A mudança não implicará investir menos em educação e saúde.
Precisamos refletir sobre os males das vinculações e os problemas que delas derivam.
ECONOMISTA, SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA
‘Enquanto eu for presidente, só Deus me tira daqui’, diz Bolsonaro
Leandro Prazeres / O GLOBO
BRASÍLIA — Em meio à queda de popularidade e a inúmeros pedidos de abertura de uma comissão parlamentar de inquérito para apurar a atuação do governo no combate à Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro disse neste domingo que “só Deus” o tira do cargo. A declaração foi dada diante de uma pequena multidão que se aglomerou em frente ao Palácio da Alvorada para lhe homenagear por seu aniversário. Bolsonaro faz 66 anos de idade neste domingo.
— Enquanto eu for presidente, só Deus me tira daqui — afirmou o presidente.
Ao contrário do que ocorreu em diversas outras aparições públicas do presidente, Bolsonaro foi ao encontro dos seus apoiadores usando máscara. Durante um breve discurso, o presidente fez menções a “tiranos” que estariam tentando tolher o direito de ir e vir do povo. Ele não disse a quem se referia, mas na semana passada, o governo federal ingressou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para reverter toques de recolher impostos pelos governos da Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal.
— Se alguém acha que, um dia, nós abriremos mão da nossa liberdade, estão enganados. Alguns tiranetes, ou tiranos, tolhem a liberdade de muitos de vocês. Podem ter certeza que o nosso Exército é o verde-oliva e é o de vocês também — afirmou Bolsonaro.
Bolsonaro insinuou que estariam “esticando a corda”, mas que seus apoiadores poderiam contar com as Forças Armadas.
— Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade. Estão esticando a corda. Faço qualquer coisa pelo meu povo e esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, é a nossa democracia e o nosso direito de ir e vir — disse o presidente.
Em outro ponto do discurso, Bolsonaro defendeu sua atuação no combate à Covid-19:
— Fizemos, até o momento no combate ao vírus, não só compra de vacinas desde o ano passado, bem como o maior projeto social do mundo, que foi o auxílio emergencial. O povo precisou e nós atendemos. Agora, o povo mais pede pra mim é: eu quero trabalhar.
O discurso acontece na semana seguinte à divulgação de uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha que revelou que 54% da população rejeita a condução da epidemia de Covid-19 feita por Bolsonaro. Pesquisa realizada em janeiro indicavam que esse percentual era de 48%. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
Além disso, há diversos pedidos para a instauração de uma CPI para investigar a atuação do governo no combate à epidemia. Entretanto, nem o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e nem o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), dão indicações de que podem acatar os pedidos.
A Média de mortes por covid-19 mais que duplica em 14 Estados e no DF em um mês
O drama é traduzido nos números do consórcio de veículos de imprensa. A média móvel diária de óbitos no Brasil estava em 1.056 no dia 16 de fevereiro e pulou para 2.095 um mês depois, uma alta de 98,4%. No geral, só Amazonas, Roraima (Estados que passaram por picos em janeiro e fevereiro) e o Rio não assistiram a uma alta nos registros ao longo do último mês.
A curva mais vertiginosa está sendo vista no Rio Grande do Sul. Há 30 dias, o Estado relatava média de 41 mortes por dia. Hoje, são mais de 250 vítimas diárias, alta de 500%. No Sul, a alta é acentuada: no Paraná, o aumento é de 322% e em Santa Catarina, de 391%. E há locais com fila de espera por respirador, como no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Epidemiologista da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, Pedro Hallal diz que a situação no Estado se deve a um “monte de erros” da política de contenção da pandemia, que representou uma guinada nas medidas que de março a setembro se mostraram efetivas para barrar a doença. “Depois de setembro, a coisa começa a degringolar e o vírus vai infectando muito porque havia mais gente suscetível.”
Além do Sul, a situação chama a atenção no Nordeste, onde sete dos nove Estados duplicaram o registro de óbitos em 30 dias. No Rio Grande do Norte, as mortes passaram de 7 por dia para 27, aumento de 282%. Mesmo com o caos, o prefeito de Natal, Álvaro Dias (PSDB), afrouxou restrições e recomendou terapia sem eficácia, motivo pelo qual ele agora está sendo investigado.
No Ceará, os óbitos foram de 28 para 84 por dia no período, alta de 196%. Alagoas (103%), Maranhão (160%), Paraíba (188%), Piauí (167%) e Sergipe (213%) também viram a situação piorar de forma acentuada. Na Bahia, a alta ficou em 89% e em Pernambuco, 78%, completando a alta em toda a região.
No Centro-Oeste e no Sudeste a situação não traz nenhum alívio. O aumento na média de mortes no último mês em São Paulo foi de 96%, saltando de 230 óbitos diários para 452, a maior marca da pandemia. O Estado adotou medidas mais restritivas e algumas regiões optaram pelo lockdown. Na semana passada, prefeitos do ABC pediram que o Estado também implemente o lockdown na região metropolitana, o que até agora não ocorreu. Goiás (155%) e Mato Grosso (181%) também assistiram ao mesmo movimento na curva recente.
Março, mês dos recordes
Março tem se mostrado o mês de recordes da pandemia, com os maiores registros diários e semanais até aqui. Em 13 Estados, o mês trouxe a maior média de mortes na comparação com todo o período da pandemia. Em outros dois Estados, a maior marca foi em fevereiro e nas outras 12 unidades da federação, apesar da piora recente, as maiores médias ainda pertencem ao pico do ano passado, mas que tem tudo para ser batido nas próximas semanas. A atual média nacional vem tendo o recorde quebrado dia após dia nas últimas três semanas.
O epidemiologista da Fiocruz Amazônia Jesem Orellana explica que as marcas atuais observadas no Brasil não se devem a um recrudescimento da pandemia na última semana, mas sim a uma alta de casos e internações que já se observa desde fevereiro. “A média de agora não é resultado de um agravamento dos últimos 14 dias da pandemia. O número de mortes é um indicador tardio da circulação viral. Na prática, há 30 dias a situação já estava agravada”, explica. A Fiocruz mostrou que UTIs de 24 Estados e Distrito Federal operam atualmente acima da ocupação de 80%.
Orellana vê um efeito preponderante da propagação da variante brasileira, a P.1, para o cenário trágico atual, além da transgressão a medidas já conhecidas, como o isolamento social. “Infelizmente houve uma falha estrutural da vigilância laboratorial em não identificarmos as variantes de preocupação sanitária, como a da África do Sul, do Reino Unido e especificamente a P1., a pior de todas. Descobrimos tarde e isso deveria ter levado o governo federal a fazer um bloqueio sanitário rigoroso, fechar aeroportos e não deixar o vírus se espalhar. Mas não foi o que aconteceu.”
Agora, nas palavras dele, “o Brasil se transformou em uma grande Manaus”, em referência à crise enfrentada em janeiro pela capital amazonense. Problemas como abastecimento de oxigênio e medicamentos necessários para intubação começam a despontar, aos moldes do que enfrentou a cidade no início do ano, mobilizando o País para reequilibrar a oferta de insumos essenciais para a vida dos pacientes com a doença. Para ele, o chamado “evento sentinela”, acontecimento de maior gravidade a partir do qual outros Estados poderiam tirar lições, não foi aproveitado.
Já Pedro Hallal reforça que o momento continua a pedir uma medida rígida, como um lockdown. “O lockdown é uma estratégia para alguns momentos e agora é obviamente necessário. Mas tem de ser feito de forma séria, não de mentirinha. Tem que ser curto, com ampla complementação de renda por parte do governo para pessoas e empresas”, avalia.
Em reação à situação de agravamento da pandemia, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde destacou no início de março em carta aberta que a “ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais que se intensificaram no período eleitoral, nos encontros e festividades de fim de ano, do veraneio e do carnaval”. O conselho defendeu “restrições em nível máximo” nas regiões com ocupação de leitos acima de 85%.
Na semana passada, o governo federal anunciou uma troca no comando do Ministério da Saúde, com a entrada do médico Marcelo Queiroga no lugar do general Eduardo Pazuello. O tom dos primeiros dias após a mudança foi de “continuidade das ações”. O presidente Jair Bolsonaro já se posicionou publicamente de forma contrária ao lockdown e acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar o toque de recolher na Bahia, no Distrito Federal e no Rio Grande do Sul.
Média de mortes por covid-19 mais que duplica em 14 Estados e no DF em um mês
Marco Antônio Carvalho, O Estado de S.Paulo
A média diária de mortes por covid-19 mais do que duplicou em 14 Estados e no Distrito Federal ao longo dos últimos 30 dias; em sete deles, essa média triplicou. O rápido avanço da doença em todas as regiões tem representado uma pressão inédita sobre o sistema de saúde do País, que vive o pior momento da pandemia. Especialistas veem cenário crítico influenciado pela variante brasileira do coronavírus e pedem a adoção de medidas mais rígidas de controle sobre a transmissão do vírus.
O drama é traduzido nos números do consórcio de veículos de imprensa. A média móvel diária de óbitos no Brasil estava em 1.056 no dia 16 de fevereiro e pulou para 2.095 um mês depois, uma alta de 98,4%. No geral, só Amazonas, Roraima (Estados que passaram por picos em janeiro e fevereiro) e o Rio não assistiram a uma alta nos registros ao longo do último mês.
A curva mais vertiginosa está sendo vista no Rio Grande do Sul. Há 30 dias, o Estado relatava média de 41 mortes por dia. Hoje, são mais de 250 vítimas diárias, alta de 500%. No Sul, a alta é acentuada: no Paraná, o aumento é de 322% e em Santa Catarina, de 391%. E há locais com fila de espera por respirador, como no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Epidemiologista da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, Pedro Hallal diz que a situação no Estado se deve a um “monte de erros” da política de contenção da pandemia, que representou uma guinada nas medidas que de março a setembro se mostraram efetivas para barrar a doença. “Depois de setembro, a coisa começa a degringolar e o vírus vai infectando muito porque havia mais gente suscetível.”
Além do Sul, a situação chama a atenção no Nordeste, onde sete dos nove Estados duplicaram o registro de óbitos em 30 dias. No Rio Grande do Norte, as mortes passaram de 7 por dia para 27, aumento de 282%. Mesmo com o caos, o prefeito de Natal, Álvaro Dias (PSDB), afrouxou restrições e recomendou terapia sem eficácia, motivo pelo qual ele agora está sendo investigado.
No Ceará, os óbitos foram de 28 para 84 por dia no período, alta de 196%. Alagoas (103%), Maranhão (160%), Paraíba (188%), Piauí (167%) e Sergipe (213%) também viram a situação piorar de forma acentuada. Na Bahia, a alta ficou em 89% e em Pernambuco, 78%, completando a alta em toda a região.
No Centro-Oeste e no Sudeste a situação não traz nenhum alívio. O aumento na média de mortes no último mês em São Paulo foi de 96%, saltando de 230 óbitos diários para 452, a maior marca da pandemia. O Estado adotou medidas mais restritivas e algumas regiões optaram pelo lockdown. Na semana passada, prefeitos do ABC pediram que o Estado também implemente o lockdown na região metropolitana, o que até agora não ocorreu. Goiás (155%) e Mato Grosso (181%) também assistiram ao mesmo movimento na curva recente.
Março, mês dos recordes
Março tem se mostrado o mês de recordes da pandemia, com os maiores registros diários e semanais até aqui. Em 13 Estados, o mês trouxe a maior média de mortes na comparação com todo o período da pandemia. Em outros dois Estados, a maior marca foi em fevereiro e nas outras 12 unidades da federação, apesar da piora recente, as maiores médias ainda pertencem ao pico do ano passado, mas que tem tudo para ser batido nas próximas semanas. A atual média nacional vem tendo o recorde quebrado dia após dia nas últimas três semanas.
O epidemiologista da Fiocruz Amazônia Jesem Orellana explica que as marcas atuais observadas no Brasil não se devem a um recrudescimento da pandemia na última semana, mas sim a uma alta de casos e internações que já se observa desde fevereiro. “A média de agora não é resultado de um agravamento dos últimos 14 dias da pandemia. O número de mortes é um indicador tardio da circulação viral. Na prática, há 30 dias a situação já estava agravada”, explica. A Fiocruz mostrou que UTIs de 24 Estados e Distrito Federal operam atualmente acima da ocupação de 80%.
Orellana vê um efeito preponderante da propagação da variante brasileira, a P.1, para o cenário trágico atual, além da transgressão a medidas já conhecidas, como o isolamento social. “Infelizmente houve uma falha estrutural da vigilância laboratorial em não identificarmos as variantes de preocupação sanitária, como a da África do Sul, do Reino Unido e especificamente a P1., a pior de todas. Descobrimos tarde e isso deveria ter levado o governo federal a fazer um bloqueio sanitário rigoroso, fechar aeroportos e não deixar o vírus se espalhar. Mas não foi o que aconteceu.”
Agora, nas palavras dele, “o Brasil se transformou em uma grande Manaus”, em referência à crise enfrentada em janeiro pela capital amazonense. Problemas como abastecimento de oxigênio e medicamentos necessários para intubação começam a despontar, aos moldes do que enfrentou a cidade no início do ano, mobilizando o País para reequilibrar a oferta de insumos essenciais para a vida dos pacientes com a doença. Para ele, o chamado “evento sentinela”, acontecimento de maior gravidade a partir do qual outros Estados poderiam tirar lições, não foi aproveitado.
Já Pedro Hallal reforça que o momento continua a pedir uma medida rígida, como um lockdown. “O lockdown é uma estratégia para alguns momentos e agora é obviamente necessário. Mas tem de ser feito de forma séria, não de mentirinha. Tem que ser curto, com ampla complementação de renda por parte do governo para pessoas e empresas”, avalia.
Em reação à situação de agravamento da pandemia, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde destacou no início de março em carta aberta que a “ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais que se intensificaram no período eleitoral, nos encontros e festividades de fim de ano, do veraneio e do carnaval”. O conselho defendeu “restrições em nível máximo” nas regiões com ocupação de leitos acima de 85%.
Na semana passada, o governo federal anunciou uma troca no comando do Ministério da Saúde, com a entrada do médico Marcelo Queiroga no lugar do general Eduardo Pazuello. O tom dos primeiros dias após a mudança foi de “continuidade das ações”. O presidente Jair Bolsonaro já se posicionou publicamente de forma contrária ao lockdown e acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar o toque de recolher na Bahia, no Distrito Federal e no Rio Grande do Sul.
A condena o lockdown: não salva vidas e faz os pobres muito mais pobres
A Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou os líderes contra confiar nos lockdowns para combater os surtos – após ter dito anteriormente que os países deveriam ter cuidado com a rapidez com que reabrem.
O Dr. David Nabarro, ex-candidato do Reino Unido para chefiar a OMS e atual Enviado Especial para Covid-19 da organização, disse que tais medidas restritivas devem ser tratadas apenas como último recurso,
Em entrevista à Andrew Neil, da revista britânica The Spectator, Nabarro afirmou que a única coisa que os lockdowns conseguiram foi pobreza – sem nenhuma menção ao potencial de vidas salvas.
“Nós, na Organização Mundial da Saúde, não defendemos os lockdowns como o principal meio de controle desse vírus”, disse o Dr. Nabarro.
“A única vez em que acreditamos que um lockdown se justifica é para ganhar tempo para reorganizar, reagrupar, reequilibrar seus recursos, proteger seus profissionais de saúde que estão exaustos, mas, em geral, preferimos não fazer isso”, disse o Enviado Especial da OMS.
No mês passado, Nabarro disse aos parlamentares do Comitê de Relações Exteriores do Reino Unido que “medidas de contenção” levariam a “grandes aumentos na pobreza, fome, desemprego e assim por diante”. Agora ele alertou a The Spectator para “uma catástrofe global horrível” que está se desenrolando.
Nabarro disse que há danos significativos causados por lockdowns rígidos, com impacto global devastador nos níveis de pobreza, especialmente nas economias mais pobres que estão sendo afetadas indiretamente.
“Basta olhar para o que aconteceu com a indústria do turismo no Caribe, por exemplo, ou no Pacífico porque as pessoas não estão tirando férias”, disse.
“Veja o que aconteceu com os pequenos agricultores em todo o mundo. ... Veja o que está acontecendo com os níveis de pobreza. Parece que podemos muito bem ter uma duplicação da pobreza mundial no próximo ano. Podemos muito bem ter pelo menos o dobro da desnutrição infantil”, destacou Nabarro.
O contexto nos países pobres é muito diferente das nações mais ricas, pois pode levar à fome.
"A ONU chama de 'catástrofe humanitária global', com mais de 130 milhões de pessoas em risco de passar fome este ano, a maior tragédia da pandemia: como a corrida para o lockdown desencadeou um desastre épico causado pelo homem que leva a milhões de mortes desnecessárias?", questiona Ian Birrell, da publicação britânica iNews.
Anteriormente, a agência da ONU tinha recomendado o lockdown e se posicionado contra a suspensão das restrições durante a primeira onda do vírus da Covid-19.
O Diretor-Geral da OMS Tedros Adhanom Ghebreyesus, não conseguia parar de elogiar a resposta draconiana da China no início desta pandemia e alertou repetidamente contra o levantamento dos lockdowns muito cedo.
“A última coisa que qualquer país precisa é abrir escolas e empresas, apenas para ser forçado a fechá-los novamente por causa de um ressurgimento”, dizia Tedros.
“Precisamos chegar a uma situação sustentável em que tenhamos controle adequado deste vírus sem suspender inteiramente nossas vidas, ou cambalear de um lockdown para outro – o que tem um impacto extremamente prejudicial para as sociedades”, reconheceu o chefe da OMS.
Nabarro está defendendo uma nova abordagem para conter o vírus SARS-CoV-2.
“Realmente apelamos a todos os líderes mundiais: pare de usar o lockdown como seu método de controle primário. Desenvolva sistemas melhores para fazer isso. Trabalhem juntos e aprendam uns com os outros”.
No domingo passado (4), Nabarro disse ao Financial Times que lidar com a crise do coronavírus no Reino Unido “não será o caso de todos serem vacinados”.
“Haverá uma análise definitiva de quem é a prioridade da vacina, com base em onde moram, sua ocupação e sua faixa etária”, disse Nabarro. “Não estamos fundamentalmente usando a vacina para criar imunidade da população, estamos apenas mudando a probabilidade das pessoas serem lesionadas ou sofrerem”.
É amplamente aceito que qualquer vacina contra a Covid-19 apenas limitará os danos causados pela doença, não prevenindo a transmissão do vírus.
* Com informações da The Spectator, New York Post, iNews, The Financial Times, Xinhua