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Males da vinculação de receitas a despesas

Maílson da Nóbrega, O Estado de S.Paulo

22 de março de 2021 | 03h00

A proposta de eliminar a vinculação de receitas para a educação e a saúde, via PEC Emergencial, mexeu num vespeiro. Choveram protestos. Vieram até de parlamentares, embora a medida lhes devolvesse o poder de decidir nessas áreas. Não fazia sentido, todavia, agir a toque de caixa sem uma discussão ampla, incluídas as regras de transição. Seja como for, a proposta era correta sob o aspecto histórico, institucional, econômico e político. Nenhum país que leve as finanças públicas a sério vincula receitas a despesas.

Definir anualmente o orçamento público é uma das tarefas mais nobres – se não a mais nobre – do Parlamento. A função foi consagrada nas três revoluções que plasmaram os fundamentos da democracia contemporânea: a Revolução Gloriosa inglesa (1688), a Revolução americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). O absolutismo – indireto no caso americano – foi abolido nos três casos.

O orçamento define, por excelência, as prioridades do Estado e o financiamento das atividades governamentais. Por isso, esses três países o tratam com responsabilidade e simbolismo. Acontece que somos herdeiros de outras tradições, as do patrimonialismo. As finanças pessoais dos reis ibéricos se confundiam com o orçamento público. O absolutismo português sobreviveu até 1820.

A vinculação de receitas a despesas com educação e saúde provoca disfunções no processo orçamentário. A primeira, a da educação, nasceu em 1983, no regime militar, e foi ampliada na Constituição de 1988. A segunda, a da saúde, veio no ano 2000. Em ambas o Congresso Nacional renunciou à sua função primordial, castrando seu poder de decidir nessas áreas.

A vinculação aumenta a obrigatoriedade de gastos e causa desperdícios. A garantia de recursos inibe os incentivos à boa gestão. Municípios em que rareiam crianças são obrigados a gastar 25% da receita de impostos em educação. Prefeitos despendem à toa para evitar denúncia do Ministério Público, pois é crime de responsabilidade não cumprir o mínimo constitucional. Se a arrecadação cresce no fim do ano, é um deus nos acuda para usar o excesso. No País, escolas são pintadas três vezes ao ano para atender à regra.

Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado, 94,3% das despesas primárias do governo federal são obrigatórias. Somados os encargos financeiros da dívida, que na prática também são mandatórios, o porcentual é de 107,9% dos gastos totais. Não há paralelo dessa barbaridade no mundo.

É uma loucura gastar obrigatoriamente mais do que as receitas. Recorre-se, assim, ao endividamento para financiar gastos não mandatórios, como os de investimento público, ciência e tecnologia e de ataque à pobreza extrema. A dívida pública ficará insustentável, com risco de perda de confiança, fuga de capitais e volta da inflação alta e sem controle.

A reação mais estridente à proposta veio da área da educação. Afirmou-se que os baixos investimentos em educação no passado decorreram da ausência da vinculação, mas a explicação é outra. Até os anos 1950 dizia-se que a prioridade deveria ser o crescimento econômico. A educação seria o seu efeito. Por isso se investia apenas 1,4% do produto interno bruto (PIB) na área.

Hoje se sabe que a educação é causa, e não efeito do desenvolvimento. É uma prioridade natural. Daí por que o governo federal gasta mais do que os 18% da receita de impostos previstos na vinculação. Segundo Marcos Mendes, foram 23% em 2020. O mesmo ocorre na saúde, cujas despesas superaram o piso em 4%. Como mostrou Mendes, a vinculação em favor da educação acarretou aumento de salários, não necessariamente a melhora da qualidade.

O Brasil investe em educação 6,2% do PIB, acima da média dos países ricos, 5,8% do PIB, mas estamos nos últimos lugares na avaliação internacional do desempenho de nossos jovens. Mesmo assim, há quem ache pouco. Defende-se a ideia de que a meta deve ser o gasto médio por aluno dos países desenvolvidos.

É o que diz a deputada Tabata Amaral, uma das grandes promessas da nova geração do Congresso. Em sua coluna na Folha de S.Paulo de 27/2, vê-se que a média da OCDE é 2,3 vezes a do Brasil. Se fosse assim, investiríamos 15,6% do PIB, mais do que qualquer outro país. Ao mesmo tempo, a dívida pública explodiria.

O raciocínio é equivocado. No mundo inteiro, as comparações adequadas são as feitas como proporção do PIB, e não em valores absolutos. É assim com carga tributária, dívida pública, investimento e gastos militares de educação e saúde. Já imaginou se os aposentados, invocando tal ideia, reivindicassem ganhar tanto quanto os dos países ricos? A conta da Previdência saltaria para 70% do PIB!

Em algum momento, vamos ter de eliminar as vinculações orçamentárias. Elas criam distorções, pioram a qualidade das finanças públicas e prejudicam o desenvolvimento. A mudança não implicará investir menos em educação e saúde.

Precisamos refletir sobre os males das vinculações e os problemas que delas derivam.


ECONOMISTA, SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA

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