MINISTÉRIO DA SAÚDE FECHOU CONTRATO EMERGENCIAL DE COVID 120% ACIMA DO PREÇO DE MERCADO
O Ministério da Saúde fechou um contrato emergencial milionário para diagnosticar a Covid-19 com um produto 120% acima do preço de mercado.
O superfaturamento foi identificado pela Controladoria-Geral da União em 23 de março, 12 dias após a assinatura do contrato de R$ 3,2 milhões, com dispensa de licitação, com a empresa Reagen Produtos Para Laboratório.
Os documentos foram obtidos pela Lei de Acesso à Informação.
À época, o ministro era Luiz Henrique Mandetta. A compra havia sido solicitada pela Secretaria de Vigilância de Saúde, então chefiada por Wanderson de Oliveira.
Ambos saíram do ministério em meados de abril, quando o comando da pasta passou para Nelson Teich.
Em 6 de maio, dois meses após a assinatura do contrato, a Saúde admitiu erros internamente e o contrato passou para R$ 22 mil, com um valor 145 vezes menor.
A CGU apontou diversos riscos de prejuízo aos cofres públicos, com um sobrepreço de R$ 1,2 milhão, mais de um terço do valor do contrato.
O preço ofertado pela Reagen para um insumo estava 120% acima do mercado.
A média de preço do produto "suplemento para meio de cultura, tipo: soro fetal bovino, aspecto físico: líquido" era de R$ 360, de acordo com registros de compras do governo federal em 2019. O valor apresentado pela empresa foi de R$ 790.
Segundo os auditores, o Ministério da Saúde foi omisso por não ter negociado preços menores.
Outro ponto que chamou a atenção dos técnicos foi que o motivo para a contratação de emergência caiu por terra oito dias após a assinatura do contrato: a companhia pediu mais prazo para entregar os produtos.
Além disso, os auditores identificaram falta de justificativas para a compra, e tampouco havia detalhes sobre como esses produtos seriam usados.
A empresa contratada já foi proibida de fazer negócios com o poder público, após ser alvo de operação da própria CGU com o Ministério Público Federal, em 2017.
"A Reagen possui um histórico de irregularidades perante a administração pública", seguiu o documento da CGU.
Atualmente, a Reagen tem pelo menos outros dois contratos emergenciais com a Saúde na pandemia, de R$ 360 mil e R$ 52 mil.
Em 6 de maio, na gestão Nelson Teich, um despacho da Saúde admitiu que a pasta havia estipulado "erroneamente" as quantidades dos produtos, sem dar mais detalhes.
O documento foi elaborado na Secretaria Executiva da Saúde e assinado por Meri Helem, coordenadora-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos para Saúde.
Em 18 de maio, já comandado interinamente por Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde firmou um termo aditivo com a empresa, reduzindo o valor do contrato em 145 vezes: a compra passou de R$ 3,2 milhões para R$ 22 mil.
Antes da mudança, a pasta compraria 4 mil frascos de 500 gramas do produto apontado como superfaturado pela CGU. Dois meses depois, adquiriria apenas 20.
Procurado, o Ministério da Saúde não respondeu.
Wanderson de Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde na época da assinatura do contrato, afirmou:
"Não me recordo. Sabendo desse valor, eu jamais teria assinado. Quem verifica os preços é o Departamento de Logística, que faz um parecer nesses casos. Esse valor exorbitante tem de ser investigado. Se baixou o preço, que bom. Naquela época, várias empresas estavam fazendo preços muito abusivos, por causa da indisponibilidade de insumos. Máscaras cirúrgicas que tínhamos comprado por centavos chegaram a ser ofertadas a R$ 6 por algumas empresas. Tivemos apoio da CGU, TCU e MP".
(Atualização às 19h20 de 21 de junho de 2020: Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que detectou “erro na quantidade do material solicitado anteriormente” e que “a situação foi corrigida para evitar danos ao Tesouro”. A pasta também declarou que trabalha em conjunto com a CGU.)
(Por Eduardo Barretto)
MAIS DE 300 EMPRESAS CONTRATADAS PARA ENFRENTAR A COVID TINHAM SÓ MESES DE VIDA
GUILHERME AMADO / ÉPOCA
Pelo menos 347 empresas abertas entre janeiro e outubro foram contratadas por União, estados e municípios no combate à Covid neste ano.
Os dados são da Controladoria-Geral da União, que apontou “níveis elevados de criticidade” em optar por fornecedores sem experiência no mercado e principalmente com pouco lastro para conseguir cumprir os contratos.
Os ministérios da Justiça e da Saúde lideram esse tipo de contratação no governo federal.
Fazer pagamento de funcionário fantasma não é crime, diz STJ
O funcionário público que recebe remuneração e, supostamente, não exerce a atividade laborativa que dele se espera não pratica crime. Da mesma forma, pagar salário não constitui desvio ou apropriação da renda pública, pois é obrigação legal. Eventuais fraudes podem ser alvo de sanções administrativas ou civis, mas não de sanção penal.
Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça trancou ação penal contra o prefeito de Ilha das Flores (SE), Christiano Rogério Rego Cavalcante, e contra um funcionário fantasma que teria sido contratado por ele, mas, segundo o Ministério Público, jamais desempenhou qualquer serviço público para o Município.
Ambos foram denunciados por pela prática do crime previsto no artigo 1º, inciso I, do Decreto-Lei 201/1967. A norma diz que comete crime de responsabilidade o prefeito que apropria-se de bens ou rendas públicas, ou desvia-os em proveito próprio ou alheio.
Primeiro, o STJ concedeu a ordem em Habeas Corpus para trancar a ação penal em relação ao servidor, por considerar que a não prestação de serviços não configura o crime indicado pelo MP.
Segundo o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, a conduta descrita sequer poderia ser enquadrada no artigo 312 do Código Penal, que tipifica o ato de “apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”.
“Afinal, está pacificado o entendimento de que servidor público que se apropria dos salários que lhe foram pagos e não presta os serviços atinentes ao cargo que ocupa não comete peculato. Configuração, em tese, de falta disciplinar ou de ato de improbidade administrativa”, entendeu.
Posteriormente, Christiano Rogério Rêgo Cavalcante pediu extensão da decisão de HC com base no artigo 580 do Código de Processo Penal. A norma diz que, no caso de concurso de agentes, a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, será aproveitada aos outros.
O pedido foi negado porque os corréus estão em situação distinta na ação. Um foi denunciado na condição de nomeado para exercício de função pública. O outro, na condição de gestor público, prefeito, responsável pela nomeação.
“Nessas condições, a denúncia até poderia descrever conduta do requerente no intuito contratar, às expensas do erário, funcionário privado, isto é, para utilizar o servidor público nomeado para a realização de serviços privados ao prefeito, mas isso não ocorreu. Assim, na minha visão, é caso de concessão da ordem de Habeas Corpus, de ofício”, concluiu.
A concessão cita jurisprudência da turma segundo a qual “pagar ao servidor público não constitui desvio ou apropriação da renda pública, tratando-se, pois, de obrigação legal. A forma de provimento, direcionada ou não, em fraude ou não, é questão diversa, passível inclusive de sanções administrativas ou civis, mas não de sanção penal”.
HC 466.378
Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2020, 14h26
O Karl Ove Knausgård: 'Você só pode ser honesto até certo ponto'
Camilo Gomide e Natalia Timerman, especial para O GLOBO*
Quando escreveu a frase final da série “Minha Luta” em 2011, o escritor norueguês Karl Ove Knausgård parecia decretar o encerramento de sua carreira. Chegava esgotado ao fim das 3.704 páginas do romance autobiográfico que o projetou internacionalmente e provocou uma infinidade de crises pessoais. Quase dez anos depois de sua publicação original, “O fim”, sexto e último volume da série, chega ao Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Guilherme da Silva Braga.
De lá para cá, contrariando a promessa de não ser mais um autor, anunciada na última linha de “O fim” (“vou aproveitar, realmente aproveitar a ideia de que já não sou mais escritor”), Knausgård jamais parou de escrever. Seu livro mais recente, “Morgenstjernen” (“A estrela da manhã”), lançado em outubro, já está em tradução para o português, também pela Companhia das Letras.
Em entrevista ao GLOBO, por Zoom, Knausgård conta as agruras de escrever sobre a própria vida, o significado que “Minha Luta” adquiriu com o tempo, o novo trabalho e as fronteiras instáveis entre realidade e ficção.
Como você vê hoje a série “Minha luta”?
O processo de escrita foi muito intenso e eu estava enjoado e cansado quando publiquei o sexto livro. A atenção do público foi enorme e eu só queria sair do meio de tudo aquilo. O livro começou a viajar para outros países, foi lido de maneiras diferentes e já falo dele há dez anos. Você poderia pensar que estou mortalmente entediado, mas o livro mudou e eu mudei, então está tudo bem. A série documenta o que aconteceu dentro de mim em todos aqueles anos e é muito diferente do que seria hoje. É disso que eu gosto. É um livro sobre a vida e a literatura, em que existe uma troca entre essas duas instâncias.
Um dos elogios que se faz a “Minha Luta” é a vontade de ser fiel aos fatos. Mas no último volume você reflete sobre a impossibilidade de alcançar a totalidade da história. Como vê a questão da verdade na literatura?
É impossível descrever a realidade fidedignamente, mas dá para atingir uma verdade subjetiva. Você pode acessar uma memória e descrevê-la, ainda que ela não tenha nada a ver com o que se passou. Tentei ser o mais honesto possível, mas você pode ser honesto até certo ponto, porque pode começar a fazer estragos. O único com quem eu poderia ser brutalmente honesto era eu. Mas existe um problema de autorrepresentação, que não é uma representação imediata. Há uma distância, porque não é você, é você escrevendo sobre você. Se você lê algo muito bom, consegue apontar: isto é verdade. Não tem nada a ver com o fato de ser ficção ou não.
Em “Minha Luta”, você diz que perdemos a experiência do real em meio a tanta virtualidade, mas a série parece ser a tentativa de recuperar essa conexão com a realidade.
A arte pode criar uma forma de presença que, de certa forma, está se dissolvendo. Minha presença está na escrita e na leitura. É meio paradoxal, porque não estou lá. Para mim, escrever sobre o mundo é uma forma de vê-lo como ele é. Por isso insisto em descrever objetos comuns e a vida mundana, porque é onde a gente vive.
Pode contar um pouco sobre a nova série de romances?
O primeiro livro tem nove narradores imersos em suas vidas mundanas. São jovens, homens e mulheres, com diferentes empregos, mas há algo acontecendo no mundo, algo que não tem uma explicação natural, um tipo de realismo mágico. Tem a ver com as fronteiras entre a vida e a morte. Há um objeto no céu, que simplesmente aparece num fim de tarde e ninguém sabe o que é. É diferente de “Minha luta”, mas dá para reconhecer a escrita realista. Estou tentando dissolver as fronteiras entre as diferentes compreensões que temos sobre o mundo, a física, a religião, etc. Não é um livro bom, mas estou tentando ir além... Leva tempo.
“A pequena outubrista”, de sua ex-mulher Linda Boström Knausgård, foi recentemente lançado no Brasil. Muito do que se disse sobre o livro focou na relação dela com você. Daqui a 50 anos, no entanto, provavelmente nada do que diz respeito à vida pessoal de vocês vai importar. O que você acha que vai ficar, da sua obra e da de Linda?
Não acredito que os livros sobreviverão 50 anos, mas se sobreviverem... Há uma ótima biografia de Henri Troyat sobre Tolstói. Em uma cena, ele está lendo “Guerra e paz” para os amigos e um ficou olhando para o outro e apontando, “aquele é você”, “aquela é você”. O livro está cheio de referências biográficas, mas o que restou foi a presença dos personagens e a vida que há neles. E a vida consiste de casamentos, casamentos em ruínas, e todas essas coisas. Se os personagens são reais ou não, é irrelevante para o leitor. Poucos leitores conhecem Linda de fato. Tudo o que se sabe é o que está no livro, e que ela é uma personagem. Por outro lado, por que alguém se interessaria pela minha vida? É uma vida banal, comum, em nada interessante.
Como foi dar vida a personagens reais em “Minha luta”?
“Minha luta” é tão autobiográfico porque eu queria irromper na vida como eu a vivo. O problema era que, antes, havia algo semelhante a um véu de ficção que a transformava o tempo todo em outra coisa. Esta foi a descoberta: esqueça a literatura, esqueça tudo e apenas escreva. Tentei chegar à vida como eu a sinto. É uma questão de forma. Não posso usar esse artifício de novo, preciso encontrar outro. Não posso chegar tão perto da vida de novo.
Algumas críticas ao ensaio sobre Hitler em “O fim” apontam imprecisões históricas. Como você responde a essas críticas?
Não leio nenhuma resenha ou crítica sobre meus livros para me proteger. Tentei entender Hitler. Comecei sem saber nada e, no fim, acabei tendo uma imagem dele, ainda que controversa. Quando ele está com 16 anos, por exemplo, ele ainda não fez nada, é um adolescente comum, não é mau, talvez tenha tido notas ruins, ou algo assim. Algumas biografias o colocam como um monstro desde o começo. Se criarmos monstros, o que aconteceu na Alemanha não terá nada a ver conosco, acharemos que não pode acontecer aqui, que somos boas pessoas e eles, terríveis. Mas se você entende que Hitler era como eu aos 16 anos, vê aquela geração como pessoas comuns, percebe que o horror ainda pode acontecer. É isso o que eu quis investigar, o que me atraiu. Honestamente, acho que o meu livro é o oposto do nazismo. Ele se direciona ao complexo, ao mundano, às insignificâncias, às coisas estúpidas, aos erros, ao que não é perfeito. O nazismo é o contrário disso.
“O fim”
Autor: Karl Ove Knausgård
Tradução: Guilherme da Silva Braga
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 1.056
Preço: R$ 164,90
* Natalia Timerman é escritora, psiquiatra e doutoranda em literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Camilo Gomide é jornalista, escritor e doutorando em literatura pela Universidade de São Paulo (USP)
Karl Ove Knausgård: 'Você só pode ser honesto até certo ponto'
Camilo Gomide e Natalia Timerman, especial para O GLOBO*
Brasil precisa cuidar melhor dos idosos que vivem em instituições
Os pilares do envelhecimento ativo incluem saúde, aprendizagem ao longo da vida, participação e segurança. Aspiramos os três primeiros, mas temos dificuldade em lidar com o último, a necessidade de proteger e cuidar dos mais frágeis.
Em todo o mundo, a pandemia da Covid-19 tornou evidente a vulnerabilidade das pessoas idosas, especialmente as institucionalizadas. Eram pessoas até então invisíveis para o Estado e para a sociedade.
No Brasil, fala-se em “instituição de longa permanência para idosos” (ILPI), mas se você perguntar a alguém como ou onde encontrar uma ILPI, o olhar de perplexidade será a reação mais provável.
O que seria uma ILPI? Os nomes mais conhecidos são asilo, lar, hotel ou clínica geriátrica, casa de repouso, residencial para idosos, entre outras variantes. Infelizmente, não sabemos quantas instituições existem, onde estão, quanto custa o cuidado, quem cuida e como.
Em 8 de abril, quando havia registro de 822 mortes por Covid-19 no Brasil, surgiu o movimento chamado Frente Nacional de Fortalecimento às ILPI (frentenacionalilpi.com.br), ao qual rapidamente se juntaram mais de 1.200 voluntários de todo o país.
Essa frente tem produzido e divulgado, de forma gratuita e por meio virtual, orientações baseadas em evidências científicas, voltadas para a prevenção e o cuidado da Covid em ILPI. Já contabiliza mais de 130 mil acessos a documentos e vídeos de capacitação.
O movimento trabalha para superar a visão preconceituosa fortemente presente na sociedade e nas leis brasileiras, que ligam negligência e abandono à institucionalização.
A Constituição, a Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso determinam que uma pessoa idosa somente poderá residir em uma instituição depois de ter esgotado todas as outras possibilidades de cuidado –que só existem no papel— e de fortalecimento de vínculos sociofamiliares –que muitas vezes já não existem.
Assim, quando uma pessoa idosa frágil e vulnerável precisa de cuidado, ela acaba se tornando uma questão da vida privada, pois o Estado permanece omisso e a sociedade se mantém distanciada. Resta, então, a cada família tentar cuidar dessa pessoa, conforme seus recursos ou a falta deles.
Por isso, a frente tem defendido a necessidade urgente de uma política de Estado, que seja abrangente e adequada, e que ofereça cuidados continuados no domicílio ou na instituição. A ideia é apoiar as pessoas –idosas ou não— que precisam de cuidados, mas que não têm família ou que a família não pode ou não consegue oferecer os cuidados necessários.
Essa iniciativa tem o apoio do Centro Internacional de Longevidade - Brasil, da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e de outras entidades nacionais e internacionais, inclusive a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Afinal, a vida de toda pessoa idosa importa.