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Tachar ataques aos Poderes como terrorismo é perigoso, diz especialista em legislação brasileira

Por Gabriel Vasconcelos / O ESTADÃO

 

RIO - Uma mistura perigosa dos vieses político e jurídico vem ditando o debate público e o tom das autoridades brasileiras ao chamarem de terrorismo atos como a invasão e depredação das sedes dos três Poderes por bolsonaristas no domingo, 8, afirma o pesquisador Guilherme France, autor do livro As Origens da Lei Antiterrorismo no Brasil. Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em História pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e doutorando no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp/Uerj), France diz que os atos do fim de semana e questões subsequentes, como a supostamente criminosa derrubada de torres de transmissão de energia, não podem ser tipificados como atos terroristas, embora sejam, em tese, crimes. Isso porque a lei brasileira sobre terror, de 2016, fixa três requisitos claros para a classificação, um dos quais, a motivação por xenofobia ou discriminação não se concretizou nos episódios.

 

O especialista defende o uso de definições como “vândalos, golpistas ou fascistas” para classificar os bolsonaristas que atacaram o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. E rechaça qualquer reforma da lei. Isso abriria o debate em um Congresso mais conservador e, em grande parte, pró-Jair Bolsonaro, diz.

 

Os bolsonaristas que invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes podem ser considerados terroristas?

Terrorismo é conceito político e jurídico amplamente contestado por ser passível de apropriações e interpretações diversas ao sabor do momento. Mas a legislação não permite que os atos de domingo sejam considerados terroristas. Juridicamente, não se aplica.

Atos feitos por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro na praça dos Três Poderes, em Brasília, no domingo, 8. Especialista entrevistado pelo 'Estadão' diz que a legislação não permite que os atos sejam considerados terroristas
Atos feitos por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro na praça dos Três Poderes, em Brasília, no domingo, 8. Especialista entrevistado pelo 'Estadão' diz que a legislação não permite que os atos sejam considerados terroristas Foto: André Borges/EFE

Por que não?

A lei antiterrorismo, 13.260/2016, exige que três requisitos estejam necessariamente presentes. O primeiro é a finalidade de provocar terror social generalizado, expondo a perigo integridade de pessoas e patrimônio. Isso aconteceu. O segundo é que os atos tenham atentado contra a vida ou determinadas instalações, o que também houve e pode ficar ainda mais evidente se comprovada a derrubada de torres de transmissão de energia no Paraná e em Rondônia. Mas o terceiro requisito, que os atos sejam motivados por xenofobia ou discriminação de raça, cor, etnia ou religião, não estava presente. A motivação foi político-ideológica.

Os extremistas têm apoiado sua defesa na Lei Antiterror.

O fato de não se enquadrar legalmente como terrorismo não impede, de forma alguma, a responsabilização daqueles indivíduos por ataques ao estado democrático de direito e dano ao patrimônio público, para ficar em só dois crimes de uma lista longa.

O uso do termo por Alexandre de Moraes indica que o STF pode ampliar o entendimento sobre terrorismo?

É difícil prever o que o STF vai fazer. Em outras ocasiões, o tribunal já teve uma interpretação extensiva do direito penal. Então, não seria de todo surpreendente que o Supremo ou outros juízes ampliassem.

Como vê a possibilidade?

 

Seria problemático. Sobretudo porque, à época, a exclusão da motivação político-ideológica foi decisão alcançada por parlamentares e considerada vitória dos movimentos sociais. Desvirtuar a lei pode gerar jurisprudência que, à frente, pode ser usada contra esses movimentos.

O fato de não se enquadrar legalmente como terrorismo não impede, de forma alguma, a responsabilização daqueles indivíduos por ataques ao estado democrático de direito e dano ao patrimônio público

Como avalia uma revisão pelo próprio Congresso?

Absolutamente temerária. Qualquer proposta de reforma da lei antiterrorismo tem de levar em consideração a atual composição do Congresso conservadora e punitivista. Não custa lembrar que o bolsonarismo foi vitorioso no Legislativo.

Autoridades deveriam parar de usar o termo terrorismo?

Essa mistura dos vieses político e jurídico do termo é perigosa. Existem outras terminologias que podem ser usadas para manifestar repúdio: golpistas, fascistas, vândalos, antidemocráticos.

 

China registra quase 60 mil mortes por Covid-19 em pouco mais de um mês

Por O GLOBO com AFP

 

A China afirmou, neste sábado, ter registrado quase 60 mil mortes relacionadas à Covid-19 em pouco mais de um mês. É a primeira divulgação de um número significativo de óbitos pela doença desde que o governo chinês relaxou as medidas sanitárias da política da Covid zero em dezembro.

 

"Um total de 59.938" mortes relacionadas com a Covid-19 foram registadas "entre 8 de dezembro de 2022 e 12 de janeiro de 2023", disse Jiao Yahui, chefe do gabinete de administração médica da Comissão Nacional de Saúde. O saldo não inclui os óbitos registados fora dos hospitais.

 

 

O número inclui 5.503 mortes causadas por insuficiência respiratória diretamente devido ao vírus e 54.435 mortes causadas por doenças subjacentes combinadas com a Covid-19, disse Jiao. Segundo as autoridades de saúde, a idade média dos falecidos é de 80,3 anos, e mais de 90% das vítimas mortais tinham mais de 65 anos. A maioria sofria com comorbidades.

 

 

A China tem sido acusada de não declarar todos os óbitos causados pelo novo coronavírus desde que abandonou as restrições mais rígidas. Na última quarta-feira, a Organização Mundial da Saúde (OMS) voltou a criticar a resistência do país em publicar informações confiáveis sobre a onda da doença.

 

A organização disse na ocasião estar convencida de que “o número de mortos na China continua a ser grosseiramente subestimado”, como afirmou Michael Ryan, diretor executivo do Programa de Emergências de Saúde da OMS, em entrevista coletiva em Genebra.

 

Ryan apontou para a definição extremamente estreita que as autoridades chinesas impuseram ao diagnóstico de morte por Covid, dizendo que os médicos “devem ser encorajados a relatar casos, não desencorajados”.

 

No fim de dezembro, o país alterou os critérios de definição de mortes pela Covid-19. Somente as pessoas que faleceram diretamente por insuficiência respiratória causada pelo novo coronavírus passaram a ser contabilizadas nas estatísticas, de modo diferente dos demais países, que incluem óbitos por outras causas agravadas pela doença.

 

De acordo com o novo critério, portanto, apenas 5,5 mil, das quase 60 mil mortes anunciadas, cumprem os requisitos chineses para entrar nos registros oficiais. Na época em que alterou os critérios, o país foi alvo de críticas que alegavam uma falta de transparência em meio a uma explosão de casos na região.

Com intervenção civil, Lula adota política que tenta superar tutela militar

Francisco Carlos Teixeira da Silva

Professor titular de história moderna e contemporânea da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e professor emérito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército). Autor de "A República Sitiada", com Karl Schurster (no prelo), e organizador de “Dicionário de História Militar do Brasil”, entre outros livros / FOLHA DE SP

 

[RESUMO] Depois do ataque de milhares de bolsonaristas às sedes dos Poderes em Brasília, setores das Forças Armadas esperavam o recurso à GLO (garantia da lei e da ordem) pelo governo Lula, o que permitiria a um general estabelecer um regime de tutela sobre a capital. A repressão dos extremistas por meio de uma inédita "intervenção civil" rompe com a prática usada à exaustão nos últimos anos e pode levar à superação do cacoete secular de tratar militares como responsáveis por sanear os problemas da República.

 

Passados os primeiros momentos do grande susto de domingo (8), quando grupos bolsonaristas atacaram as icônicas sedes dos três Poderes projetadas por Oscar Niemeyer, começamos a refletir sobre a destruição do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal e a vandalização das duas casas do Congresso.

Os primeiros depoimentos dos presos começam a dar conteúdo àquilo que já sabíamos: (1) Não foi um movimento espontâneo ou uma explosão repentina de ódio que motivou os milhares de bolsonaristas; calcula-se que a mobilização reuniu 20 mil pessoas, das quais ao menos 4.000 participaram do ataque às sedes dos Poderes; (2) Houve não só uma mobilização prévia, que se valeu de meios como WhatsApp e Twitter, como uma ampla rede de suporte com pelo menos 150 ônibus que levaram, boa parte com todas as despesas previamente pagas, os extremistas a Brasília; (3) A PM do Distrito Federal fugiu de suas funções básicas quando seu contingente foi reduzido; mais que isso, uma parcela importante dos policiais do DF apoiou, por ação ou inação, a marcha até os palácios, inclusive escoltando o grupo de extremistas, com quem, em vários momentos, confraternizaram.

Após instantes de perplexidade inicial, o Ministério da Justiça iniciou, ainda na noite de domingo, um decisivo processo de intervenção na Segurança Pública do DF, ordenando a desocupação dos prédios e a prisão dos invasores-depredadores. À ação do ministério, se somou uma cirúrgica intervenção do STF, por meio de decisão do ministro Alexandre Moraes, que conduz o inquérito contra atividades antidemocráticas no governo Bolsonaro.

Assim, a mão pesada da Justiça, vinda do Executivo e do Judiciário, se abateu sobre o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), e sobre seu (ausente) secretário de Justiça, Anderson Torres, exatamente um ex-ministro da Justiça de Bolsonaro (que estava na Flórida e, de acordo com um colunista do UOL, visitou o ex-presidente) cuja gestão foi marcada por medidas negacionistas e ameaças à democracia.

Até aí, houve uma certa unanimidade, expressa na aprovação da intervenção federal no DF pelo Congresso e na confirmação, pelo plenário do STF, do afastamento do governador. Rapidamente, Ibaneis Rocha e Anderson Torres foram transformados nos "malvados da ocasião", a face do golpe e da manipulação perigosa das forças policiais de Brasília.

No entanto, já eram visíveis algumas fissuras na unanimidade em torno das medidas contra o golpismo: além do incômodo do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), com o afastamento do colega do DF, setores militares ligados ao Comando Militar do Planalto e o próprio comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda, estranharam que houvesse intervenção federal, não o recurso —transformado em lugar-comum nos governos Temer e Bolsonaro— ao instituto da GLO (garantia da lei e da ordem), conforme o artigo 142 da Constituição.

Ao preferir o artigo 34 da Carta, aconselhado fortemente por alguns especialistas e com apoio de seu secretário Wadih Damous, o ministro da Justiça, Flávio Dino, descartou o recurso à força militar, amplamente utilizada antes, inclusive pelos governos do PT.

No caso da intervenção no DF e da ordem de controlar e restabelecer a segurança das instituições da República, Dino se distinguiu nitidamente da prática anterior, em especial da intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada em fevereiro de 2018, ao que se seguiu o misterioso assassinato da vereadora Marielle Franco em 14 de março, em plena intervenção comandada pelo general Braga Netto, futuro braço direito de Bolsonaro.

Na verdade, os setores militares esperavam o recurso à GLO e, com isso, a indicação de um general para estabelecer um verdadeiro regime de tutela sobre a capital federal. A nomeação de Ricardo Cappelli
como interventor frustrou as expectativas dos militares.

Capelli, jornalista com grande experiência política, foi secretário nacional de Esportes do primeiro governo Lula, secretário de Comunicação de Dino no governo do Maranhão e, apenas uma semana antes, havia sido nomeado secretário-executivo da própria pasta da Justiça. Assim, o ministro enfeixava em suas mãos, firmemente, a segurança da capital, incluindo o controle da PM local.

Tal estremecimento entre entes do governo se aprofundou quando vários vídeos circularam na internet mostrando que a invasão do Palácio do Planalto havia tido uma dinâmica diversa da invasão do STF e do Congresso Nacional. Nestes dois prédios, as guardas locais esboçaram resistência, agentes foram agredidos e, em minoria, tiveram que se retirar. Em alguns casos, no STF e no Congresso, a resistência das guardas locais salvou alguns espaços da completa destruição.

No caso do Planalto, não houve qualquer resistência. Os corpos de segurança que deveriam proteger o prédio arrojado de Niemeyer desertaram das suas funções.

Não só os homens ao dispor do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) não interferiram para impedir a invasão como o ente de inteligência e de previsão de riscos da Presidência não foi capaz, nos dias anteriores, de diagnosticar a ameaça que se avolumava. Ocorre que a invasão, tratada no WhatsApp dos extremistas como um "convite para a festa da Selma", era um segredo de papel.

Um órgão de inteligência do governo não conseguiu identificar os riscos que se aproximavam da praça dos Três Poderes, embora o movimento nas redes sociais e nas estradas fosse público havia dois dias. Mais ainda, não foram tomadas as medidas daí decorrentes de prevenção. Tal como o caso da PM do DF, os homens colocados para defender o palácio presidencial eram poucos e desavisados, e muitos foram dispensados pelo próprio ministro-chefe do GSI, general Gonçalves Dias, na véspera do ataque.

Essa não era, entretanto, a situação do Batalhão da Guarda Presidencial, lotado no anexo do próprio palácio, com tropas na garagem do edifício, cuja função precípua é a defesa da sede do Executivo. O batalhão é composto de cinco companhias de infantaria de guardas, bem-treinadas, entre as quais a quarta e quinta são especializadas em garantia da lei e da ordem, uma companhia do cerimonial e uma banda de música, com cerca de mil homens.

Ou seja, o Batalhão da Guarda Presidencial, conhecido como Batalhão Duque de Caxias, possui treinamento de choque, equivalente ao da Polícia do Exército, e já participou, inclusive recentemente, de ações contra manifestações de rua em Brasília.

Contudo, em 8 de janeiro, o Batalhão Duque de Caxias não compareceu à festa da Selma. O batalhão não só se ausentou como o coronel comandante entrou em choque aberto, filmado e disponível na internet, com os primeiros comandos de PMs que chegaram ao Planalto para reprimir os extremistas. Mais: o comandante do batalhão deu fuga aos depredadores presos pela PM, gerando uma forte altercação no local entre os dois corpos militares.

Ao longo do horroroso domingo, com os invasores já dentro do Palácio do Planalto, nem o GSI nem o Batalhão Duque de Caxias solicitaram a implementação do Plano Escudo de defesa da capital federal. Somente após a destruição em curso e já com ordens de repressão do Ministério da Justiça, à tarde, o Plano Escudo foi ativado.

Nos dias imediatos aos atos extremistas em Brasília, a ação do ministro da Justiça bateu de frente com a política proposta pelo novo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, para enfrentar os extremistas. Múcio declarou, seis dias antes do ataque, que não retiraria os bolsonaristas dos acampamentos, "uma manifestação da democracia", onde disse ter amigos e familiares.

Em uma forte disputa com Flávio Dino, favorável a uma resolução firme das ocupações bolsonaristas, o ministro da Defesa defendia uma abordagem gradualista, garantindo que o movimento de sedição bolsonarista iria se extinguir sozinho com o tempo.

Mesmo depois de os bolsonaristas terem provocado uma noite de fogo e destruição em Brasília em 12 de dezembro, dia da diplomação de Lula pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ao que se seguiu a descoberta de terroristas dispostos a explodir um caminhão de combustível no aeroporto da capital, Múcio, com apoio dos militares, continuou defendendo sua abordagem gradualista, que entrou em choque aberto com a disposição do Ministério da Justiça e do STF em aprofundar as conexões dos extremistas com outras autoridades da República.

A estranha festa dessa Selma de mil rostos foi, de imediato, compreendida como uma oportunidade única para o poder civil quebrar a secular tutela militar sobre a República. Desde os anos 1920, o estamento militar brasileiro cultiva uma ideologia de desprezo pelos políticos e pelos civis em geral, considerados incapazes e corruptos.

Por sua interpretação da história da Brasil, desde as batalhas de Guararapes contra os holandeses, em 1648 e 1649, quando o "Exército" (qual Exército?) salvou o país da invasão estrangeira até a Proclamação da República, em 1889, os militares adquiriram um direito de intervir na República e restabelecer o que seria, para eles, a ordem na casa da Selma.

Acreditam, ainda, que o suprimido Poder Moderador do imperador decaído em 1889 migrou para as mãos dos próprios militares, que, assim, teriam o direito e o dever de sanar os males da República.

Contrariamente, as medidas de controle dos últimos acontecimentos, com o uso de policiais militares de estados onde a cadeia de comando não estava quebrada pelo bolsonarismo —como Bahia, Pará, Maranhão e Ceará— e uma inédita "intervenção civil", sem GLO e sem generais como condestáveis da ordem, sob controle do Ministério da Justiça, marca a nova política do governo Lula e, talvez, a superação do cacoete histórico de uma tutela militar sobre a República.

Jair Bolsonaro deve ser responsabilizado criminalmente pelos ataques golpistas? NÃO

Fábio Medina Osório

Advogado e ex-ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (2016, governo Temer) FOLHA DE SP

 

Diante dos violentos e repugnantes ataques às instituições democráticas do Brasil, no último dia 8, houve o desencadeamento de investigações para apurar os atos criminosos. A tipificação desses crimes pode perpassar diversas legislações. Destaco as leis 14.197/2021 e 12.850/2013. Deverão ser identificados os autores, coautores, partícipes, mandantes e financiadores de tais atos, praticados em detrimento das instituições e do erário.

Os fatos estão sob apuração em inquérito no STF, sob relatoria do eminente ministro Alexandre de Moraes, embora os investigados não tenham prerrogativa de foro. O que se indaga, nesse espaço, é se haveria a possibilidade de buscar a responsabilização do ex-presidente Jair Bolsonaro por atos criminosos diagnosticados nas investigações. A resposta a essa indagação é bastante singela.

Num Estado democrático de Direito, ninguém está acima das leis. Ao mesmo tempo, o direito penal exige investigações republicanas e regidas pelo princípio da responsabilidade subjetiva, com a interdição à arbitrariedade dos poderes públicos. Nenhum poder de Estado pode agir na persecução penal com desvio de poder ou abuso de autoridade, extrapolando suas competências e finalidades institucionais.

Para que uma pessoa seja investigada por atos criminosos, deve haver indícios de seu envolvimento e individualização mínima da conduta a ser investigada. O objeto da pesquisa investigativa deve ser formalizado e registrado, e seus alvos devem ser identificados após a existência de pelo menos leves indícios contra eles. Do contrário, seria permitido que a autoridade investigativa elegesse alvos aleatoriamente e pudesse atuar com desvio de poder ou de finalidade para perseguir inimigos ou desafetos.

Para que Bolsonaro pudesse ser responsabilizado —e até investigado pela prática dos crimes ocorridos, considerando que ele não estava no local— seria necessário identificar indícios de participação dele como mandante ou financiador. A mesma lógica se aplica a outros personagens.

Ressalte-se que a eventual responsabilidade por omissão de agentes públicos ou ex-servidores públicos é muito problemática. A Abin teria alertado os ministérios do governo federal na véspera sobre a iminente prática de atos criminosos, conforme noticiou esta Folha. Não obstante, também houve aparente omissão de autoridades públicas governamentais federais. E certamente houve omissões de autoridades públicas do Distrito Federal.

Ocorre que essas omissões não caracterizam crimes omissivos impróprios na perspectiva da legislação penal aplicável à espécie. Pode-se examinar mais a fundo, em outro espaço, o tema dos crimes omissivos impróprios no contexto desses ilícitos, mas é certo que não se aplica a um ex-presidente da República —muito menos a um presidente da República ou a ministros de Estado— a teoria do não exercício de suas competências para responsabilizá-los pelos crimes cometidos. Essas competências devem ser analisadas no plano operacional dos comandos das polícias, as quais, no DF, inclusive têm autonomia funcional. Não seria possível, assim, responsabilizar nem o governador do DF, tampouco ministros de Estado, muito menos presidente da República ou ex-presidente da República.

Mesmo a apreensão de uma minuta de decreto para alterar o resultado das eleições, na residência do ex-ministro Anderson Torres, não é indicativo de relação causal da conduta de Bolsonaro ou do ex-ministro com os crimes do último domingo.

Trata-se de fato autônomo, ato preparatório de outro ilícito objeto de desistência voluntária, a não ser que os protagonistas tenham prosseguido nos atos de execução e ordenado as invasões ou financiado os movimentos.

Devemos prestigiar o direito penal do fato, não o direito penal do autor.

 

Golpismo no armário

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Que Jair Bolsonaro (PL) buscou meios de atacar as instituições e deslegitimar o processo eleitoral é fato há muito comprovado por suas incessantes investidas, desprovidas de qualquer fundamento, contra as urnas eletrônicas.

Ainda assim, não deixa de ser assustador tomar conhecimento do tipo de ideia alucinada que circulou nos corredores do bolsonarismo —como se faz agora com a descoberta de uma minuta de decreto presidencial guardada em um armário da residência de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de fidelidade canina ao chefe.

O texto de três páginas, de procedência ainda a ser esclarecida, trata de providências absurdas que, compreensivelmente, não foram levadas adiante nem consideradas em público. Trata-se do roteiro de um golpe canhestro, que só poderia prosperar num cenário de degradação institucional felizmente impensável no Brasil.

Começa-se com a decretação de estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral, o que corresponderia a emprego totalmente descabido de um instrumento previsto na Constituição para situações extremas que ameacem a ordem pública ou a paz social.

A medida tresloucada teria o propósito de "garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022". Uma tal Comissão de Regularidade Eleitoral, repleta de militares, seria encarregada de apurar a legalidade do pleito —sabe-se lá com que meios e hipóteses de trabalho.

Como apontam especialistas, restam elementos a serem reunidos para que se possa avaliar a gravidade jurídica do achado. Anderson Torres já deu a entender que a minuta foi apresentada por terceira pessoa e declarou que o texto seria destruído, o que constitui uma linha de defesa óbvia para não ser acusado de ter tramado um golpe.

Quem aventou a estultice autoritária e o quanto ela chegou a ser debatida no governo são questões fundamentais a pôr a limpo.

Torres, que se tornou secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, foi exonerado e teve a prisão preventiva decretada, em decisão draconiana e sujeita a questionamentos, sob suspeita de omissão dolosa no ataque de extremistas às sedes dos três Poderes, no domingo passado (8).

No curto prazo, sua situação parece dificílima; ainda é incerto, porém, o futuro das investigações.
Quanto a Bolsonaro, o que o ex-presidente já fez à vista de todos, como espalhar lorotas sobre as urnas eletrônicas perante embaixadores, é escandaloso o bastante para justificar mais averiguação por parte das autoridades.

 

Desconfiança de Lula amplia crise com Forças Armadas

Por Andreza Matais e Vera Rosa / O ESTADÃO

 

BRASÍLIA – A desconfiança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a atuação das Forças Armadas é vista na caserna como um pedido de divórcio litigioso. Embora a relação entre Lula, o PT e os militares nunca tenha sido boa, deteriorando-se ainda mais no governo de Dilma Rousseff, a invasão de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF) por pouco não fez com que o antigo estremecimento virasse ruptura.

 

Em conversas reservadas, conselheiros de Lula com trânsito nas Forças Armadas dizem que a hora é de virar a página, e não de “caça às bruxas”. Argumentam que isso não significa o arquivamento de punições aos atos de vandalismo praticados no domingo, 8, na Praça dos Três Poderes. Ao contrário: na visão de ex-ministros da Defesa, como Nelson Jobim, Raul Jungmann e Aldo Rebelo, as penas para quem cometeu crimes precisam ser duras e exemplares, mas o discurso de Lula deve promover o distensionamento.

 

A pressão da cúpula do PT para Lula demitir o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, contraria as Forças Armadas, que hoje o veem como único nome capaz de apaziguar a relação dos militares com o Planalto. Se antes a caserna encarava o político Múcio com pé atrás, hoje ele é considerado como uma espécie de fiador da estabilidade. A portas fechadas, oficiais dizem que a eventual saída de Múcio pode agravar a crise. Na outra ponta, dirigentes do PT afirmam que, se Lula não desbolsonarizar as Forças Armadas, os militares tentarão “tutelar” o governo.

 

Três generais ouvidos pelo Estadão, sob a condição de anonimato, se mostraram preocupados com a insistência do PT em mudar o currículo das academias militares para introduzir ali temas referentes a direitos humanos. Além disso, o partido quer que a expressão “revolução de 1964″ seja substituída por “golpe” no material escolar.

 

Na economia, as Forças Armadas são contra a criação de uma moeda comum do Mercosul. A discussão já provocou ruídos. O governo alega que a ideia não diz respeito à adoção de uma cédula única, como o euro. As conversas giram em torno da possibilidade de se estabelecer uma moeda comum, que seria usada em negociações comerciais entre integrantes do bloco sul-americano. Mesmo assim, militares acham que a proposta fere a soberania nacional.

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