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Dissonância petista

Lygia Maria

Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. FOLHA DE SP

 

A retórica do PT gira em torno do combate à pobreza e da proteção de minorias, como mulheres, negros, indígenas e LGBTQIA+. Discurso louvável, o problema são os meios propostos para alcançar os objetivos.

O ministro da Fazenda apresentou um pacote para reduzir o rombo de R$ 231,55 bilhões nas contas públicas. Prometeu-se uma melhora fiscal na casa dos R$ 242,7 bilhões (R$ 192,7 bilhões com elevação de receitas e só R$ 50 bilhões com redução).

Especialistas, contudo, apontam que apenas R$ 120 bilhões seriam factíveis. O déficit ficaria em 1,8% do PIB, diferentemente do 1% anunciado. Para conter a crise, seria necessário um superávit de 2% do PIB.

Ou seja, a economia precisa crescer e os gastos precisam cair. Torna-se imperativo, portanto, liberar o mercado, desonerando produção, consumo e trabalho por um lado e, por outro, privatizar estatais, eliminar programas ineficientes, rever reajustes do salário mínimo e dos servidores, enxugar a máquina pública.

Mas essas ações são rechaçadas por uma visão arcaica e moralista: qualquer exigência de racionalismo econômico é tida como elitismo malvado. Lula reclamou que o mercado é insensível e prefere o termo "investimento" em vez de "gasto" (como se palavras mudassem a realidade).

Essa ideologia obsoleta que opõe o mercado ao social trava o desenvolvimento do país há décadas, prejudicando os mais pobres e as minorias que a esquerda diz defender. Liberdade e bem-estar material não apenas não são estanques como estão diretamente ligados.

Ascensão social, de renda e de educação, é passo fundamental para a proteção e o fortalecimento de grupos minoritários que sofrem preconceito. Por certo, o governo deve manter programas de apoio aos mais vulneráveis, mas não pode resumir nisso sua política pública. Uma economia livre e pujante ainda é o meio mais estável e duradouro para diminuir desigualdades materiais e simbólicas. Ignorar esse fato, isso sim, é insensibilidade, além de incompetência.

A DEMOCRACIA MILITANTE

Por Denis Lerrer Rosenfield / O ESTADÃO

 

Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço

 

Situações de exceção exigem medidas excepcionais. Não se combate a violência, especialmente de cunho autoritário ou totalitário, com instrumentos paliativos, como se se tratasse de um mero acidente de percurso de pessoas inocentes ou supostamente bem-intencionadas. A defesa da democracia requer atitudes firmes, que não compactuem com o crime, a desordem e, enfim, com a sublevação ou insurreição. Houve sim uma tentativa de golpe conduzida pela extrema direita, pelo bolsonarismo e seus apoiadores, que se insurgiram contra o resultado das eleições, o que vale dizer contra a própria Constituição.

 

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tomou as medidas acertadas dada a gravidade da crise institucional que se armou. Não compactuou com a violência e chamou à responsabilidade os agentes políticos e policiais, assim como apoiadores financeiros, que sustentaram a tentativa de subversão das instituições. Alguns o fizeram por convicção, outros por omissão, outros ainda por mero oportunismo. Não importa. Puseram assim a democracia em risco, sob o manto de uma suposta tolerância com as “manifestações”.

 

Na ascensão de Adolf Hitler ao poder, houve uma extrema complacência com um projeto liberticida que já mostrava toda sua face aterradora, e o fizeram em nome de um formalismo jurídico ancorado na defesa das liberdades. Os liberticidas foram sustentados pelos defensores das liberdades e do Estado Democrático de Direito. A democracia marcha para a sua extinção quando se curva a formalidades carentes de substância, que assumem, então, a função de desintegração das instituições republicanas. Projetos autoritários e totalitários frequentemente se utilizam de instrumentos democráticos para minar a própria democracia.

 

O roteiro estava claro, só não viu aquele que não quis ver. Ato primeiro, a suposta defesa das liberdades e da Constituição, o jogar dentro daquelas quatro linhas, quando todo o jogo era já instrumentalizado de fora. A defesa das liberdades se delineava como liberdade para transgredir. Ato segundo, manifestações ditas democráticas em todo o País e, em particular, no entorno dos quartéis, como se fosse próprio da democracia acolher discursos cujo único objetivo consiste em destruir essa mesma democracia. Um regime que transige com seus fundamentos cessa progressivamente de existir. Ato terceiro, sentindo-se suficientemente fortes e apoiados, os “manifestantes” abandonaram a sua máscara democrática e assumiram a sua verdadeira natureza autoritária e golpista. Vandalizaram e destruíram os símbolos mesmos da República: o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

 

Cabiam sim medidas excepcionais, como as tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes e pelo presidente Lula da Silva. Manifestantes/golpistas devem ser sim presos e julgados, não podendo haver aqui nenhuma tergiversação. Se isso não for feito, dá-se ainda mais força para que tais atos se repitam. Ou se para agora, ou o futuro se tornará ainda mais incerto. Que mais de mil pessoas sejam presas, é da natureza da defesa democrática, fundada na responsabilização desses supostos “revolucionários”, boa parte deles já solta uma vez identificados, sobretudo crianças e idosos. A analogia com campos de concentração é literalmente grotesca. Alguém foi morto? Alguém foi torturado? Quem são esses pais e mães que levam seus filhos a manifestações golpistas? Não deveriam ser eles também responsabilizados? Quando a polícia cumpre o seu dever, procura-se denunciá-la.

 

Os dirigentes do Distrito Federal, governador, secretário de Segurança Pública e comandantes militares, foram responsabilizados. É propriamente intolerável que golpistas tenham sido protegidos, se não apoiados, pela Polícia Militar. Responsabilidades devem ser apuradas e, em particular, o governador deveria ser reinstituído em suas funções se nada for provado contra ele. Dito isso, não se deve tomá-los como bodes expiatórios, pois a responsabilidade é compartilhada, pois, dentre outras questões, convém destacar: onde estava o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável pelos palácios presidenciais? Por que não reforçou ou chamou o Batalhão da Guarda Presidencial antes de a violência ganhar aquela proporção? Onde estava a Agência Brasileira de Inteligência (Abin)? Onde estava a Polícia Rodoviária Federal (PRF) quando ônibus de todo o País levavam os golpistas para Brasília?

 

Como muito bem lembrado por Marcelo Godoy, em artigo neste jornal, citando Karl Loewenstein, a propósito de seu texto clássico Democracia militante e direitos fundamentais, publicado em 1937, a defesa da democracia não pode transigir com a destruição de seus fundamentos utilizando-se de meios democráticos e de mero formalismo jurídico. Judeu alemão, teve ele de fugir de sua terra natal, refugiando-se nos EUA, onde se tornou professor universitário e consultor do Departamento de Estado. Sob os auspícios deste, escreveu dois livros que merecem ser lidos para melhor compreendermos o Brasil atual: Brasil sob Vargas e A Alemanha de Hitler.

Fortaleza amanhece com chuva forte; veja a previsão para os próximos dias

Fortaleza amanheceu com chuva forte nesta segunda-feira (16). Até as 8 horas, o precipitado acumulado foi de 9.4 milímetros (mm), segundo dados parciais da Fundação Cearense de Meteorologia (Funceme) - o suficiente para deixar o trânsito lento nas primeiras horas do dia. 

 

A previsão para esta segunda é de céu variando de nublado a parcialmente nublado, com chuvas isoladas no período da manhã e céu parcialmente nublado nos demais horários.

CHUVA NO CEARÁ

Ceará registrou chuva em 69 municípios nas últimas 24 horas. O observado pela Funceme se deu entre as 7h do domingo (15) e o mesmo horário desta segunda.

O posicionamento de um Vórtice Ciclônico de Altos Níveis (VCAN), e efeitos locais como brisa, relevo e temperatura deverão colaborar para ocorrência de chuva no decorrer desta segunda e da terça-feira (17) em todas as macrorregiões do Ceará, ainda conforme a Funceme. 

Destaque para a faixa litorânea, Ibiapaba e Maciço de Baturité; assim como no centro-sul do Sertão Central e nas regiões do Inhamuns e Cariri.  DIARIONORDESTE

Ministros de Lula deixaram governos nos estados com recordes de desmatamento do cerrado

Vinicius Sassine / FOLHA DE SP

 

Ministros do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deixaram as gestões de seus estados com recordes de desmatamento do cerrado em um período de oito a dez anos.

Folha analisou os dados do Prodes (Programa de Monitoramento do Desmatamento por Satélite), do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), referentes à devastação dos biomas brasileiros em sete estados cujos ex-governadores viraram ministros no governo Lula.

Em três desses estados, houve aumento e recorde de desmatamento do cerrado no último ano das gestões locais.

No Maranhão, governado por Flávio Dino (PSB) entre 2015 e 2022, o desmatamento do cerrado atingiu 2.834 km² no ano passado (quase cinco vezes a área da capital São Luís), segundo dados do Prodes, formulados a partir de imagens de satélite do Inpe. O cálculo leva em conta o intervalo entre agosto do ano anterior (2021) e julho do ano corrente (2022).

Dino é ministro da Justiça e Segurança Pública desde 1º de janeiro de 2023.

O Maranhão liderou o desmatamento do cerrado, concentrando mais de um quarto de devastação no último ano. O aumento foi de 24% em relação ao período de 12 meses encerrado em julho de 2021, um recorde em dez anos.

Bahia também teve um recorde de devastação em dez anos, segundo os dados do Inpe. Foram desmatados 1.428 km² entre agosto de 2021 e julho de 2022 (quase o dobro da área de Salvador), um incremento de 54% em relação ao mesmo período anterior.

O ministro da Casa Civil de Lula, Rui Costa (PT), governou a Bahia nos últimos oito anos.

No topo do desmatamento do cerrado está ainda o Piauí, com 1.189 km² desmatados de agosto de 2021 a julho de 2022 (quase a área de Teresina), mais do que o dobro do registrado no período anterior. Não havia um índice tão elevado desde o encerrado em 2014, conforme os dados do Inpe.

Atual ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias (PT) governou o Piauí por quatro mandatos, entre 2003 e 2010 e entre 2015 e 2022.

A reportagem enviou questionamentos aos três ministérios, mas não houve respostas.

O avanço do desmatamento no Maranhão, na Bahia e no Piauí confirma a manutenção da frente de devastação intensificada a partir de 2005, na região conhecida como Matopiba, que inclui ainda o Tocantins, governado por Wanderlei Barbosa (Republicanos).

No estado da região Norte, também houve aumento da perda de vegetação em 2022. A perda do bioma no Tocantins foi de 2.128 km2 no ano passado, maior valor desde 2015, segundo os dados Inpe.

Esse arco de desmatamento do cerrado segue operante e até mesmo em ritmo crescente, como mostram os satélites do Inpe. O desmatamento em todo o bioma em 2022 chegou a 10.689 km², um aumento de 25,3% em relação ao período de 12 meses encerrado em julho de 2021.

No mandato de Jair Bolsonaro (PL), foram três aumentos sucessivos do desmatamento do bioma.

O combate a ilegalidades ambientais no cerrado é uma responsabilidade dos governos federal e estaduais. Como a quantidade de terras devolutas é menor do que na Amazônia, assim como de unidades de conservação e terras indígenas, a responsabilidade recai principalmente sobre os estados.

Agora no Executivo federal, os ex-governadores de Maranhão, Bahia e Piauí integram uma gestão que diz que vai aplicar o conceito de transversalidade para o tratamento dos assuntos de meio ambiente, com replicação da agenda em diferentes ministérios. Essa abordagem é um discurso reiterado de Marina Silva (Rede), ministra do Meio Ambiente.

Dino, como ministro da Justiça, prometeu um reforço de ações de combate ao desmatamento da Amazônia. A PF (Polícia Federal), subordinada ao ministro, passou a ter uma diretoria específica para Amazônia e meio ambiente, vinculada ao diretor-geral.

Costa, por sua vez, como ministro da Casa Civil, coordena e monitora as ações do governo. Ele é um defensor da ideia de transversalidade aplicada por Marina.

"Além da Amazônia, o cerrado é o bioma onde tem crescido o desmatamento. E a maior parte é conversão para soja e pecuária", diz Julia Shimbo, coordenadora científica do MapBiomas, uma rede formada por ONGs e universidades para o mapeamento do uso do solo brasileiro. "Mais de 30% do desmatamento do país ocorre no cerrado."

O bioma já perdeu metade de sua cobertura original, e a concentração do desmatamento ocorre na fronteira agrícola de Matopiba, um fenômeno que já não é recente e que perdura e se intensifica.

Shimbo afirma que os elevados índices de desmatamento do cerrado têm efeitos múltiplos, como conflitos em comunidades tradicionais, impactos na crise hídrica, alteração climática –com um bioma mais quente e mais seco– e impactos diretos na própria agricultura.

"No cerrado, há pouca terra devoluta como ocorre na Amazônia. A maior parte do desmatamento é em áreas privadas, e são frequentes grandes áreas desmatadas", diz a pesquisadora. O enfraquecimento de órgãos de combate e controle do desmatamento e o incentivo oficial à agricultura de larga escala explicam o aumento da devastação, segundo Shimbo.

A reportagem analisou ainda os dados de desmatamento da Amazônia no Maranhão e da caatinga na Bahia e no Piauí. Houve reduções de desmate e estabilidade dos números durante os governos dos três ministros.

Em São Paulo, nos primeiros mandatos de Geraldo Alckmin (PSB), houve aumento do desmatamento da mata atlântica, mas os índices caíram nos mandatos seguintes. Alckmin é hoje vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio no governo Lula.

Os dados do Inpe mostram ainda redução e estabilidade do desmatamento da caatinga em Alagoas e Ceará nos períodos em que Renan Filho (MDB), ministro dos Transportes, e Camilo Santana (PT), ministro da Educação, foram governadores em seus respectivos estados –de 2015 a 2022.

O Prodes ainda mostra redução do desmatamento da Amazônia no Amapá, onde Waldez Góes (PDT), ministro da Integração e Desenvolvimento Regional, foi governador por quatro mandatos.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

Presidente do TCU e governo Lula articulam troca de dívidas de empreiteiras da Lava Jato por obras

Por Luiz Vassallo / O ESTADÃO

 

Encampada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva, a ideia de permitir que empreiteiras da Operação Lava Jato paguem multas de seus acordos de leniência com a execução de obras públicas tem como principal articulador o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas.

 

Em um passado recente, o ministro fez uma cruzada para impor sanções mais duras do que as previstas nos acordos e foi tido pelas empresas como algoz. A ideia encontra precedentes em pactos de Ministérios Públicos estaduais, mas sua legalidade e efetividade no caso das empreiteiras dividem a opinião de especialistas ouvidos pelo Estadão

 

O ministro tem trânsito político com petistas. Em dezembro de 2021, esteve no jantar em São Paulo no qual Lula apareceu pela primeira vez ao lado do ex-governador Geraldo Alckmin, hoje vice-presidente. Após as eleições, procurou interlocutores do governo, como o ministro da Casa Civil, Rui Costa, para tratar do tema das leniências.

 

Procurado pelo Estadão, Bruno Dantas não quis se manifestar sobre o assunto tratado nesta reportagem. Ele, Costa e integrantes da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Controladoria-Geral da União (CGU) já se reuniram para discutir o assunto. A Casa Civil de Lula confirmou que o ministro foi um dos que sugeriram e incentivaram a ideia.

 

A questão principal é sobre como as obras poderiam cobrir débitos bilionários. Os acordos preveem ressarcimento aos cofres principalmente de estatais, além de destinações ao Ministério Público Federal e à própria CGU – conforme cláusulas destes termos homologados pela Justiça.

 

No segundo dia de governo, Costa disse, em entrevista à GloboNews, que a proposta é uma forma de acelerar obras “sem depender do Orçamento direto da União”. “São recursos que não estão lançados no Orçamento e poderiam vir para essas obras rapidamente por serem executadas pelas próprias empresas devedoras, fruto dos acordos de leniência”, afirmou o ministro da Casa Civil.

 

Acordos de leniência são feitos na esfera penal entre empresas, a União e o Ministério Público, para que, ao final, as pessoas jurídicas confessem fatos ilícitos e se comprometam a pagar multas em troca de condenações mais brandas. Após as negociações, o documento com os compromissos assumidos pela empresa e as sanções a ela impostas, como as multas, é submetido à Justiça para homologação.

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Releia texto de 1995 de Otavio Frias Filho sobre Brasília, atacada agora

SÃO PAULO

Publicado originalmente em 25 de maio de 1995, na seção Opinião, o texto "Brasília, urgente", de Otavio Frias Filho, ganha novos sentidos após a invasão dos Três Poderes por golpistas, no domingo passado (8).

Mentor do Projeto Folha e diretor de Redação do jornal até sua morte, em 21 de agosto de 2018, Frias Filho fala de uma Brasília em crise de identidade, que foi desqualificada como obra de arte. Relembra, inclusive, quando o escritor francês André Malraux (1901-1976) imagina como a cidade daria belas ruínas.

Durante os ataques do último domingo, manifestantes golpistas quebraram vidros, danificaram obras de arte, destruíram móveis, rasgaram documentos e arrancaram fios de edificações da praça dos Três Poderes, entre outras ações.

Há uma crise em Brasília. Os sinais ainda são esparsos e pouco visíveis, mas a coisa está para eclodir a qualquer momento. Quem passou recentemente por Brasília percebeu algo de soturno, perturbador, no mormaço pesado do ar.

Tudo começou com a visita de um antropólogo gringo que se meteu a atacar a cidade de Niemeyer. Nunca ninguém ousara defender Brasília como cidade, mas aquela foi, parece, a primeira vez que alguém tinha o topete de desqualificá-la como obra de arte.

Desde então só cresce o número de pessoas que acham Brasília não só inabitável, mas medonha. Suas propriedades sociológicas se transmitiram à estética e ela se mostra acadêmica, insípida, decadente. O stalinismo de Niemeyer, encoberto pela lírica bossa nova, irrompe a olho nu.

Cedo ou tarde, Brasília teria de enfrentar o teste definitivo: como manter a identidade de uma arquitetura que revoga a própria ideia de identidade, como preservar uma cidade futurista? Esse o paradoxo de Malraux, quando conjecturou sobre que belas ruínas Brasília daria.

A profecia se cumpre, a própria cidade viva, real, sabota o plano piloto agora também no sentido arquitetônico, além do demográfico. Fiel a sua única tradição —o frenesi imobiliário— Brasília está coalhada de prédios pós-modernos prestes a funcionar.

A ideia é desfigurar. Já que Brasília não pode ser erradicada, já que recuar a capital para o Rio é capricho que não está ao alcance nem mesmo do chefão Roberto Marinho, o negócio é destruí-la "in loco", sob colunas dóricas e arcos mussolinianos. Morte ao moderno, urram os prédios recentes.

Collor, que levou a política e a economia brasileiras ao estágio pós-moderno, introduziu o pós-modernismo também na arquitetura local, por intermédio de dois antigos companheiros de farra que até hoje dominam o panorama imobiliário da cidade.

Uma besteira pós-moderna passa batido na balbúrdia, por exemplo, de São Paulo, mas em Brasília ela é um tapa na cara, uma ofensa aos sentidos, tão grave quanto revestir uma catedral de parangolés, como pintar um bigode na Pietá de Michelangelo.

Só compreende Brasília quem a toma como síntese de uma época em que quase unificamos o original e o cosmopolita no interior da nossa cultura. Foi o tempo de Guimarães Rosa, das bienais, de João Cabral e da poesia concreta, do Centro Popular de Cultura, do cinema novo, foi o ápice de Nelson Rodrigues.

Se houve uma Renascença brasileira foi nesse curto período, fim dos 50 e começo dos 60, em que prevaleceu uma trêmula aliança entre interno e externo, folclore e vanguarda, erudito e popular, litoral e sertão, quando se esboçava, afinal, uma unidade estilística no país.

O ciclo militar abortou essa unidade, mostrou que ela era fantasiosa e reinstalou o antagonismo entre civilização e barbárie. Mantida em formol burocrático, Brasília ficou uma alucinação a prefigurar a harmonia nunca realizada, enquanto o país mergulhava no kitsch psicodélico, subversivo e ditatorial.

Brasília pode ser o marco da nossa desilusão, isso apenas a nobilita como arte. Está na base da endemia inflacionária que até hoje tentamos debelar, mas a arquitetura não tem nada a ver com o pato.

A cidade é o testemunho do que fracassamos em ser. Deveria ser respeitada como ex-utopia e pós-relíquia, esplendidamente moderna, produto da invenção humana, pois o Pão de Açúcar está ali por acaso, mas Brasília não. Brasília fomos nós.

Otavio Frias Filho
Otavio Frias Filho

Diretor de Redação folha de sp

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