Os 300 de morte e o voto de cabresto - CARLOS JOSÉ MARQUES
Na terra do calango, da casa de taipa e da pouca água extraída do mandacaru — o cacto pestilento e espinhoso do agreste —, trezentos reais é fortuna na vendinha do seu Zé do vilarejo, que aceita fiado, mas apenas “rico” com dinheiro pode comprar. Ninguém tem nem R$ 1 para ir lá. Boa parte vive à base do que planta e caça de bicho do mato.
Quem consegue emprego na plantação de cana do usineiro, como cortador da lavoura, leva R$ 1,90 por dia pesado de trabalho. Do nada com coisa alguma, no semiárido nordestino ou nos rincões onde a pobreza espreita como sina, 300 reais é fortuna e muda a vida de muita gente. Quem dá, vira deus. Quem recebe, venera o mito. Pode ser quem for, transforma-se naquele “deus e o diabo na terra do sol”, recordando a obra clássica do cineasta Glauber Rocha.
É a realidade nua e crua da parcela setentrional desse País imenso, só bonito por natureza. O demiurgo do sertão – pode ser de esquerda, de direita, quem se importa? Não vem ao caso – ganha licença para delinquir, falar baboseiras, perseguir, destruir o meio ambiente, ser arrogante, até roubar se quiser. O que der na telha. Terá mesmo assim, e garantido, o voto do açoitado pelo destino.
Humildes lavradores, incrédulos sofredores, dão a dimensão real da miséria extrema desse Brasil grande. Ali a ignorância graça com fervor. Por falta de educação e informação mesmo, artigos raros e inalcançáveis a essa parcela da população. Ali, qualquer redentor é bem-vindo, aclamado, celebrado como “salvador”. Carregue o chapéu de coco, de palha, de cangaceiro, suba no jegue da região, use e abuse de qualquer pantomima. Trouxe a ajuda? É o que importa. Será saudado e serão feitas as suas vontades.
O voto de cabresto está à disposição de quem pode pagar mais, regateado a granel. E assim se repetirá por décadas e séculos, até que a chaga da brutal desigualdade social seja curada. Não irá, todos sabem! É do interesse da elite manter tamanha injustiça no recorte do bolo. A extraordinária obra “Casa Grande & Senzala”, do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, retrata à perfeição a natureza dos contrastes que prevalecem nessas paragens tropicais desde o Descobrimento.
A obra do “Mestre de Apipucos” escancara os meandros de como o regime econômico patriarcal e assistencialista foi danoso, causando ao mesmo tempo o atraso endêmico e a degeneração das relações sociais e do caráter político brasileiro. Sem o fim da desigualdade, resta o aliciamento. Imoral, covarde, enganoso, torpe. Bolsonaro é o redentor da vez. Ganhou quase 10 pontos percentuais nas pesquisas com o auxílio emergencial. Eram 600 reais. Viraram 300. Ainda tá de bom tamanho. Maior do que o de Lula, decerto. E assim venceu a pendenga dos indecisos ou arredios por lá. Prorrogou o benefício.
O mandatário se afia agora ao donativo não por compaixão ou caridade, mas como boia eleitoreira. Um e outro não podem mais se desprender. Do contrário, a turba some. Pobres sedentos e esfomeados precisam do assistencialismo que faz a diferença entre vida e morte. Quem mora nas grandes capitais não entende o drama. Não nessa dimensão. Ter dinheiro nos sertões é raridade. 10 reais? Nem em um mês bom. E a iniquidade dos oportunistas de plantão avança e cria raízes nesse ambiente.
Bolsonaro, que classificava o “Bolsa Família” de mero instrumento para “comprar o voto do idiota”, alegando ser uma maneira de “tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda”, tomou a fórmula para si. Curiosa metamorfose. Vale até a confraternização com aqueles a quem antes se referia, jocosamente, como “paraíbas”. Eis a transmutação débil e obscena: De um degenerado radical do “golden shower”, que defende a tortura e a morte de 30 mil, no populista de ocasião.
Quem há de resistir e não atender ao chamado providencial dos 300? No pináculo do populismo, o drama dos necessitados é a argamassa. Nele se montam as retumbantes promessas de que “tudo vai melhorar”, sem que nada nesse sentido efetivamente seja feito. A narrativa enganosa comove o rebanho, malgrado as infâmias sobre uma revolução social que nunca chega.
Jair Messias Bolsonaro foi tomado por um súbito e despudorado interesse pelos necessitados, enxergando neles mera massa de manobra. Não quer transformar ou remodelar a dura rotina local ou ajudar aquela gente a superar a realidade. Ao contrário. Caso assim pensasse, implementaria mudanças estruturais capazes de prover, de maneira sustentável, carências elementares como saneamento básico, transporte, saúde, luz, água, ensino. Afinal, é ele o governo. Não mero candidato.
Poderia fazer, ao invés de prometer. Não está no escopo. Para que? Demora e não rende voto no prazo até às urnas. Com menos da metade do mandato, Messias traçou uma cruzada de peregrinações de campanha na qual o que valem são os aplausos, discursos vazios e encenações. Tudo em troca dos 300. Tá bem pago. É vida e morte errante, Severina, que segue. Meus conterrâneos um dia, rogo e suplico, poderão ter sina melhor. ISTOÉ
Obra no Nordeste não é eleitoreira, é emancipatória, diz ministro Rogério Marinho
O governo está unido em torno do objetivo de mudar a Constituição para permitir o aumento dos investimentos sem acabar com o teto de gastos, segundo o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
O ministro minimiza as discordâncias com a equipe econômica, afirma não estar defendendo gastos públicos de maneira irresponsável e diz trabalhar para atrair o capital privado para bons projetos públicos.
“Quando se fala que nós temos visões diferentes, temos. Eu sou do Nordeste brasileiro. Sou uma pessoa que sou do Parlamento brasileiro, eu acredito na política, na negociação, na transigência. Acredito no país, em política de Estado, e tenho tido o respaldo do presidente para fazer o que eu estou fazendo”, afirma.
O governo atualmente está divido. O Ministério da Economia está preocupado com o teto de gastos, com o ajuste fiscal. Outra parte acha que tem de ter investimentos em obras para fazer a economia rodar. O senhor está desse lado? Eu sou ministro, mas, como parlamentar, participei de forma muito ativa das mudanças macroeconômicas que foram iniciadas em 2016. Acredito até hoje que era necessária uma sinalização para a sociedade de que o Estado brasileiro continuaria solvente, em função da explosão da dívida pública e dos equívocos que haviam sido cometidos nos governos anteriores, mas sabíamos da necessidade de dar passos subsequentes.
De lá para cá, o teto tem colocado a seguinte consideração: as despesas obrigatórias têm subido acima da inflação e as despesas de investimento têm caído em função da sua discricionaridade e do regramento do teto.
Por isso, o governo entende —e aí não há divisão— que há necessidade de se trabalhar a legislação para permitir que haja espaço para investimento. O ministro Paulo Guedes [Economia] inclusive defende que ocorra a desindexação do Orçamento, para permitir que haja espaço fiscal no próximo ano, que haja desvinculação de receitas constitucionais, que haja desobrigações.
Estamos trabalhando a implosão, a flexibilização do piso para permitir que tenhamos no próximo ano espaço para fazer mais investimentos, manter ações importantes e ao mesmo tempo corrigir desequilíbrios regionais e investir na infraestrutura e logística do país, com recursos públicos, em parceria com a iniciativa privada.
O senhor citou a questão em que o governo não está divido. E em que pontos está dividido? Temos visões que são absolutamente normais de como os objetivos têm de ser alcançados, como em qualquer equipe, mas são discussões que precisam ficar no âmbito do governo. Não é saudável quando essa discussão, antes de estar amadurecida e com o martelo batido, se torne pública. Agora, alguém arbitra opiniões distintas para sair com uma posição, e a posição do governo quem arbitra é o presidente da República.
Qual a sua opinião sobre o programa Pró Brasil? Deixa ele ser lançado. Quando for lançado em posso opinar a respeito dele. O que eu posso falar é que é uma ação coordenada pelo ministro Braga Netto [Casa Civil], conversando hoje de uma forma mais estreita com o ministro Paulo Guedes, em que vão ser definidas estratégias de retomada de crescimento, levando em consideração a Parceria Público-Privada e também a condição que o Estado brasileiro tem de fazer frente a esse desafio que é do país como um todo, inclusive com modernização de marcos regulatórios, alterações legislativas. Vamos aguardar o produto final.
E quando será divulgado? Quem sabe disso é Braga Netto. E Paulo Guedes.
Quais obras, na visão do governo, são importantes hoje? Eu tenho falado muito da necessidade de tratarmos as nossas bacias hidrográficas como prioridade. Nós somos o ministério das águas e esse, sem dúvida, é o insumo mais importante do desenvolvimento e do crescimento populacional e humano com qualidade. Somos um país que tem regiões deprimidas economicamente por falta de segurança hídrica.
As pessoas falam muito de Amazônia e esquecem que temos uma caatinga, um cerrado. As pessoas esquecem que o Nordeste brasileiro é acometido há 500 anos por um fenômeno climático [a seca] que deprime economicamente uma região. Outras regiões do mundo resolveram o problema, com inovação tecnológica, vontade política, com pactos nacionais para resolver o problema. Essa é uma situação que nós não vamos varrer para debaixo do tapete.
Quando a gente fala de não parar obras hídricas importantes do Nordeste, não significa uma obra eleitoreira, significa uma obra emancipatória. Não estamos defendendo gasto público de maneira irresponsável. Estamos defendendo políticas emancipatórias e estruturantes para diminuir desigualdades regionais.
Quem especulava com o capital está verificando que só há uma maneira de ganhar dinheiro, investir em ações produtivas. Essa mudança, nós temos de surfar nela.
Mais do que ninguém, eu estou preocupado com isso e estou trabalhando para que isso aconteça. Quando se fala que nós temos visões diferentes, temos. Eu sou do Nordeste brasileiro. Sou uma pessoa que sou do Parlamento brasileiro, eu acredito na política, na negociação, na transigência. Acredito no país, em política de Estado, e tenho tido o respaldo do presidente para fazer o que eu estou fazendo.
O senhor falou que as obras não são eleitoreiras, e isso é uma referência aos comentários que de essa preocupação maior com o Nordeste, de alguma maneira, vai beneficiar Bolsonaro. Então teria, sim, um conteúdo eleitoreiro, não? Qualquer ação do governo tem uma implicação diante do eleitorado que o elegeu e acompanha, supervisiona e fiscaliza o mandato do presidente da República e dos seus ministros.
A alternativa é a seguinte: fazer o que precisa ser feito, porque temos responsabilidade como Estado e como governante, ou deixar de fazer porque pode dar uma conotação eleitoral. Eu particularmente acho que não há dúvida, a gente tem de fazer.
Alguns economistas, quando se fala em investimento público, argumentam que os projetos não são bons, obras ficam pela metade e as escolhas não seguem critérios técnicos. Qual a sua visão sobre isso? Essa também é a minha preocupação. Tanto que nós contratamos o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) para fazer uma redefinição da atuação da carteira do ministério.
Estamos também com uma proposta, que queremos levar em breve ao Parlamento, de redefinição do papel dos nossos fundos de desenvolvimento regionais. Não adianta trazer recursos públicos ou privados para um projeto que não se ponha de pé, que não tenha uma consistência técnica e sustentabilidade.
Temos hoje dois players que fazem estruturação de projetos para o setor público, o BNDES e a Caixa, que não têm pernas para atender à demanda. Queremos permitir que esses recursos que estão empoçados sejas utilizados na estruturação de projetos. São cerca de R$ 5 bilhões dos fundos e mais uma carteira que eu posso securitizar e chegar a R$ 8 bilhões no total.
Não estamos defendendo gasto público de maneira irresponsável. Estamos defendendo políticas emancipatórias e estruturantes para diminuir desigualdades regionais. Levando em consideração, evidentemente, todo esse arcabouço de responsabilidade fiscal que permitiu que o Brasil tivesse hoje um juro de 2% ao ano.
Vocês recebem no ministério representantes da iniciativa privada interessados em investir no Brasil? Estive pessoalmente com representantes de 12 países, tratando com embaixadores e encarregados de negócios, querendo investir no país, principalmente na área de saneamento. Temos uma preocupação de tratar a nossa ação sempre com uma pegada verde, de sustentabilidade, respeito ao meio ambiente, governança.
Assinamos na segunda-feira [31] um termo de cooperação com a CBI [ONG inglesa Climate Bond Initiative]. Até dezembro toda a nossa carteira vai estar certificada e vamos publicar um plano de trabalho.
Nem chegamos na pergunta sobre a questão ambiental, mas o sr. se antecipou. A pressão dos investidores tem sido grande nessa área? Sim, tem sido. E estamos dando as repostas.
Muita gente falou que na redefinição do programa Minha Casa Minha Vida, para Casa Verde e Amarela, só mudou o nome. É uma injustiça com a redefinição do programa? Sim, é. O programa habitacional é uma necessidade. Só que estamos em um momento em que há restrições orçamentárias para se fazer o que foi feito anteriormente, com os resultados que todos nós sabemos: projetos mal feitos, desperdício de recursos, equívocos na localização de conjuntos habitacionais. Você tem 4 milhões de residências edificadas com toda sorte de problemas.
Não podemos ser irresponsáveis em iniciar um programa dessa magnitude sem concluir as obras que estão em carteira do faixa 1. São mais de 200 mil unidades em carteira que deverão ser entregues até o final do mandato [2022]. Temos mais de 100 mil [unidades] que estavam paralisadas e estamos gradativamente dando ordem de retomada, com problemas dos mais variados.
Outra ação que estamos empreendendo. No faixa 1, por vedação legal, não era possível renegociar débitos. Retiramos essa vedação. Estamos falando de 500 mil famílias inadimplentes.
Também renegociamos com a Caixa para diminuir o valor de uma taxa de intermediação que era justificável em função das condições de juros e mercado que havia anteriormente. Isso vai permitir, com menos recursos, fazer mais habitações. A ideia é 350 mil habitações até 2024. E a partir de 2024 pelo menos 100 mil habitações por ano.
Por fim, estamos propondo um grande programa de apoio federal aos municípios que fazem regularização fundiária. Os recursos são do FDS, que é o Fundo de Desenvolvimento Social, que tinha R$ 1 bilhão, constituído pelos bancos. Fui à Febraban (federação dos bancos) negociar e eles anuíram em doar esses recursos ao governo federal. Estamos inicialmente propondo 150 mil famílias, mais 850 mil até 2022 e mais 1 milhão até 2024.
Dizem que o senhor quer ser governador do Rio Grande do Norte. É verdade? Não. Eu quero ser um bom ministro, continuar a fazer as entregas e desempenhar bem a missão que me foi dada pelo presidente [Jair] Bolsonaro, de abraçar o Nordeste, a região Norte e combater as desigualdades regionais e ter uma política pública consistente, eficaz e que tenha sustentabilidade na área de recursos hídricos, de habitação, de mobilidade urbana.
Raio-X
Rogério Marinho, 56 anos
Natural de Natal (RN) e formado em economia, é neto do ex-deputado federal Djalma Marinho e tem uma longa trajetória política. Foi vereador, secretário municipal de Planejamento e secretário de Desenvolvimento Econômico do estado, antes dos três mandatos como deputado federal, quando atuou como relator da reforma trabalhista e articulou a aprovação da reforma da Previdência. No atual governo, foi secretário especial de Previdência antes de assumir, em fevereiro deste ano, o posto de ministro do Desenvolvimento Regional
Bolsonaro chama governadores e prefeitos de ‘projetos de ditadores nanicos’
O presidente Jair Bolsonaro voltou a minimizar, neste sábado, 5, os efeitos da pandemia do novo coronavírus, mas admitiu que a volta à normalidade no Brasil deve demorar. Em viagem a São Paulo, ele chamou prefeitos e governadores que impuseram medidas de isolamento social de “projetos de ditadores nanicos”.
“O pessoal não tem que ter medo da realidade, eu falei lá atrás que ia pegar uma grande quantidade de gente, vamos tomar cuidado dos mais idosos, os que possuem comorbidades e vamos enfrentar”, disse o presidente durante visita às obras de recuperação da pista principal do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Atualmente, o Brasil possui mais de 125 mil mortos pela covid-19.
Bolsonaro afirmou que a retomada do País não será rápida, mas que espera que o processo não seja “tão demorado assim”. “Esperamos que volte à normalidade o País… Eu digo o mais rápido porque não vai ter como ser rápido, mas não tão demorado também.”
Ele afirmou, ainda, que nos últimos meses apareceram “projetos de ditadores nanicos” em Estados e Municípios em referência a medidas de isolamento. “Alguns governadores, quero deixar claro, queriam proibir pousos. Alguns governadores fecharam rodovias federais, como o Pará, por exemplo, e tiraram o poder de resolver as questões como eu achava que devia resolver. Como alguns me acusam de ditador, os projetos de ditadores nanicos que apareceram no Brasil afora, não só em áreas estaduais, mas municipais também. Fica de ensinamento essa pandemia aí.”
Na agenda, Bolsonaro estava acompanhado do ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e do ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça. Após o compromisso, ele retorna para Brasília, onde passará o restante do final de semana.ISTOÉ
Desinteresse manifesto - O ESTADO DE SP
No dia em que a proposta do governo para a reforma administrativa foi finalmente encaminhada ao Congresso, o presidente Jair Bolsonaro estava no interior de São Paulo fazendo comício e prometendo construir pontes. Em seus discursos, falou de tudo um pouco, menos desta ou de qualquer outra reforma. O ministro da Economia, Paulo Guedes, tampouco compareceu à cerimônia de entrega no Salão Negro da Câmara.
Em política, gestos muitas vezes dizem mais que palavras. A ausência do presidente da República e de seu “superministro” da Economia no ato de encaminhamento de uma reforma crucial para o País é indicativo de que a proposta talvez não seja para valer.
Não é segredo para ninguém que o presidente Bolsonaro não desejava uma reforma que afinal acabasse com os inúmeros privilégios do serviço público, muitos dos quais beneficiam diretamente sua tradicional base eleitoral. Tanto é assim que Bolsonaro havia dito, reiteradas vezes, que não encaminharia a reforma administrativa neste ano, e quando o fizesse seria numa versão branda.
Mas o engessamento de um Orçamento que é consumido em grande parte pela folha de pagamentos do funcionalismo ameaça inviabilizar não somente os planos de Bolsonaro de instituir um programa de transferência de renda mais generoso que o Bolsa Família - sua grande aposta eleitoral -, mas também o próprio funcionamento da máquina do Estado. Por essa razão, e sob pressão do ministro Paulo Guedes e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o presidente enfim aceitou que se enviasse uma proposta de reforma administrativa.
No entanto, o projeto encaminhado é claramente incompleto e insuficiente. Parece ter sido desidratado já em sua origem, sob o argumento de que só assim seria, nas palavras do ministro Paulo Guedes, “politicamente viável”. Ora, só é possível saber da viabilidade política de um projeto quando o governo o submete ao Congresso, não antes. É no debate parlamentar que o governo tem a oportunidade de defender a reforma que julga adequada, negociando eventuais mudanças e concessões.
A questão, a esta altura clara, é que o governo não quer a reforma, ao menos não uma que faça realmente a diferença não apenas no que diz respeito ao equilíbrio das contas públicas, mas também ao próprio desenho de funções e do alcance da burocracia estatal. Uma reforma administrativa digna desse nome não pode se esgotar na redução de privilégios de alguns servidores daqui a décadas, pois esse problema, embora grave, nem de longe é o único num Estado que não consegue servir o público na proporção do que arrecada em impostos.
A reforma que o governo está propondo limita-se ao chamado “RH do Estado”, e não valerá para os atuais funcionários. Ou seja, só produzirá algum efeito no equilíbrio fiscal em uma ou duas décadas, isso se não for questionada judicialmente no meio do caminho, e manterá inalterada a essência da estrutura estatal atual, evidentemente disfuncional.
Ademais, a proposta encaminhada pelo governo é apenas a primeira de esperadas três fases, e não há notícia de que a segunda e a terceira - que definirão quais carreiras manterão estabilidade e como funcionará o sistema de gratificações, entre outras pendências - estejam sequer esboçadas. Levando-se em conta o histórico de um governo que promete muito e entrega quase nada, pode-se presumir que o restante da reforma administrativa tem chance razoável de ficar para as calendas - como, aliás, querem Bolsonaro e seus novos amigos do Centrão, conhecidos advogados de servidores públicos.
“Reforma para futuros funcionários a gente poderia ter feito há 20 anos, quando esse modelo começou a dar sinais de que estava se exaurindo”, argumentou, com razão, o ex-governador Paulo Hartung. “Agora exauriu. Não tem mais como fazer uma coisa hoje para colher resultados em dez anos.”
Registre-se que uma parte dos líderes do Congresso tem demonstrado vivo interesse numa ampla reforma administrativa. Essa oportunidade de ouro poderia ser aproveitada pelo governo. Mas aparentemente, se depender de Bolsonaro, ainda não será desta vez.
Heleno diz que Cármen Lúcia não deve questionar atuação de militares na Amazônia
Julia Lindner, O Estado de S.Paulo
O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, questionou a determinação da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), para que o governo preste esclarecimentos sobre o uso das Forças Armadas na região da Amazônia Legal. Pelo Twitter, neste sábado, 5, Heleno afirmou que, ao invés de pedir informações sobre a atuação de militares na Operação Verde Brasil 2, Cármen Lúcia deveria questionar "o que seria da Amazônia sem as Forças Armadas?". Este ano, a Amazônia voltou a registrar recorde nos índices de desmatamento e queimadas.
"A Ministra Carmen Lúcia, do STF, acolheu ação de um partido político e determinou que Presidente da República e Ministro da Defesa expliquem o uso das Forças Armadas, na Amazônia. Perdão, cara Ministra, se a Sra conhecesse essa área, sabe qual seria sua pergunta: “O que seria da Amazônia sem as Forças Armadas?”, escreveu Heleno.
A decisão da ministra é desdobramento de uma ação do Partido Verde para anular o decreto presidencial e a portaria do Ministério da Defesa, que autorizou, em maio, as Forças Armadas a atuarem “em defesa da lei e da ordem, em ações preventivas e repressivas contra delitos ambientais e combate a focos de incêndio”.
Para o partido, o decreto e a portaria que autorizaram o emprego das Forças Armadas em ações contra o desmatamento e queimadas entre maio e novembro deste ano promovem ‘verdadeira militarização da política ambiental brasileira, em flagrante confronto aos ditames constitucionais e usurpando competências dos órgãos de proteção ambiental, especialmente o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)’.
Conforme mostrou o Estadão, o Brasil encerrou o mês de agosto com o segundo pior resultado de queimadas na Amazônia dos últimos dez anos. Os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que foram registrados 29.307 focos de calor no mês passado, volume acima da média histórica de 26 mil focos para este mês e 5% inferior aos 30.900 registrados no mesmo mês de 2019.
O número de alertas de desmatamento na Amazônia em 2020, por sua vez, foi 34% maior do que em 2019. O dado oficial, a ser divulgado nos próximos meses, deverá indicar um desmatamento efetivo maior que 12 mil quilômetros quadrados, três vezes mais do que a meta da Política Nacional de Mudança do Clima para 2020.
Os militares estão na Amazônia desde 11 de maio, quando foi iniciada a Operação Verde Brasil 2, justamente com a missão de combater os crimes na floresta. Para Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, os números mostram que o resultado foi inócuo. Entre maio e agosto, período de presença do Exército na Amazônia, o número de queimadas foi de 39.187, basicamente o mesmo de 2019 (38.952).
Celular
Esta não é a primeira vez que Heleno critica um mero despacho do Supremo. Em maio, o ministro reagiu em tom de ameaça à decisão do decano do STF, Celso de Mello, de encaminhar para análise da Procuradoria-Geral da República (PGR) pedido de apreensão dos celulares de Bolsonaro e seu filho, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).
O ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), assinou uma nota afirmando que se o pedido “inconcebível e inacreditável” for aceito poderá ter “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.
O pedido de apreensão dos celulares acabou rejeitado por Celso de Mello, em uma decisão repleta de duros recados para o governo. “Descumprir ordem judicial implica transgredir a própria Constituição”, escreveu o decano.
O Estadão procurou a ministra, que ainda não se manifestou.
Após PEC da reeleição de Alcolumbre, Rose de Freitas é afastada do Podemos
05 de setembro de 2020 | 18h09
O Podemos decidiu neste sábado (5) afastar a senadora Rose de Freitas (ES) por apresentar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que permite a reeleição do atual presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). A suspensão da filiação partidária é por 60 dias em caráter cautelar, prazo em que a análise do procedimento ético-disciplinar deve ser concluída.
Segundo o comunicado oficial do partido, o afastamento acontece após a Comissão Executiva Nacional acolher parecer do Conselho de Ética e Disciplina. O documento é assinado pela presidente nacional da sigla, Renata Abreu. A senadora terá o prazo de cinco dias, a partir do recebimento da notificação, para apresentar defesa por escrito ou indicar advogado para acompanhar o procedimento, se quiser.
Rose de Freitas apresentou nesta semana uma PEC para permitir a recondução dos membros da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados e do Senado. Na prática, o texto também dá aval para a reeleição do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A posição da parlamentar, no entanto, é contrária à defendida pelo partido.
Atualmente, a Constituição proíbe a recondução de um parlamentar para o mesmo cargo da Mesa Diretora da Câmara e do Senado na mesma legislatura. O tema é alvo de uma ação apresentada pelo PTB ao Supremo Tribunal Federal (STF), que discute a possibilidade de reeleição de Maia e Alcolumbre.
Conforme informou o Estadão, Maia e Alcolumbre têm mantido conversas reservadas com ministros do STF sobre a possibilidade de concorrerem à reeleição, em fevereiro de 2021. Embora Alcolumbre já atue abertamente pela recondução, Maia tem dito que não pretende concorrer, mesmo que autorizado pelo Supremo.
De acordo com interlocutores, o presidente da Câmara admite disputar o quarto mandato apenas se for aclamado por líderes de partidos e tiver apoio, ainda que informal, do governo. Embora tenha um histórico de desentendimentos com Bolsonaro, Maia se relaciona bem com ministros como Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Fábio Faria, das Comunicações.
Recondução. A PEC apresentada pela senadora permite apenas uma recondução consecutiva, mesmo entre uma legislatura e outra. A estratégia de Alcolumbre e aliados é afastar críticas de que a medida abriria margem para um presidente se "eternizar" no poder do Legislativo. Na justificativa, a parlamentar afirma que a reeleição por um período subsequente é permitida para chefes do Executivo e que a mudança é uma forma de "harmonizar o texto constitucional".
Durante a semana, o Podemos já havia divulgado uma nota contrária à PEC. O texto afirmava que "a alteração das regras do jogo, assim como a sua casuística reinterpretação, para o favorecimento de quem está no poder é medida que se dissocia do espírito republicano que deve nortear a nossa política, com medidas como essas não podemos concordar."