Bolsonaro: ‘Reconheço a seriedade do momento e o temor dos brasileiros’
Jair Bolsonaro usou as redes sociais neste sábado para dizer aos brasileiros que reconhece “a seriedade do momento e o temor de muitos brasileiros ante à ameaça do coronavírus”. Finalmente.
Com 1.033 casos confirmados e 18 mortes no Brasil, já era tempo. “De todo modo, às famílias que hoje sofrem a perda de seus entes por conta desta epidemia, a minha solidariedade. Essas perdas também são nossas, afinal, somos todos uma grande família. Dou-lhes a certeza de que lutarei com todas as minhas forças para proteger a nossa nação”, diz o presidente.
Bolsonaro muda, assim, o estilo “gripezinha” com que vinha tratando a emergência global. É melhor assim. Errar e reconhecer o erro é sempre melhor. Tomara que seja isso que o presidente esteja querendo fazer.
Falta agora chamar os governadores para uma ampla frente de combate ao vírus, sem disputas políticas laterais nem intrigas menores.
Maioria tem medo de coronavírus e apoia medidas de contenção, diz Datafolha
A chegada da pandemia do novo coronavírus assustou o brasileiro e mudou seu cotidiano.
Medidas recentes adotadas por diferentes governos modificaram a vida nas cidades. Já não se pode circular livremente, e diversos estabelecimentos —públicos e privados— tiveram que fechar suas portas nos últimos dias.
Ainda assim, a maioria dos entrevistados pelo Datafolha diz concordar com esse tipo de ação mais severa.
A percepção foi colhida por pesquisa do Datafolha de quarta (18) a sexta (20), feita por telefone devido à pandemia. Foram ouvidas 1.558 pessoas e a margem de erro é de três pontos percentuais para mais ou menos.
As ações oficiais para tentar conter o vírus têm alta aceitação: 92% concordam com a suspensão de aulas, 94% aprovam a proibição de viagens internacionais e 91% são favoráveis à interrupção nos campeonatos de futebol do país, por exemplo.O fechamento de fronteiras é apoiado por 92%. O encerramento do comércio, em vigor em várias cidades, divide opiniões: 46% são a favor, 33% são contra e 21%, aprovam parcialmente.
A suspensão de celebrações religiosas, ponto contencioso com alguns líderes evangélicos, é aprovada por 82%.
Já a quarentena temporária, ou seja, o isolamento forçado em casa, tem apoio de 73%, ante 24% que a rejeitam e 2% que se dizem indiferentes.
Neste sábado (21), o governo paulista anunciou uma quarentena de 15 dias no estado, a partir da terça (23).
A população tem bastante conhecimento sobre o vírus e teme ser contagiada. Praticamente todos (99%) dizem saber da questão, 72% deles se considerando bem informados. Para 24%, o grau de informação é mediano, e 3% se veem desinformados.
O percentual daqueles que dizem ter adotado o trabalho em casa é mínimo: 1%.
A pandemia é vista com gravidade. Para 88%, trata-se de um problema sério, ante 11% que a relativizam e 1% que não sabem dizer.
E quem vai morrer? O Datafolha mostra que, para o brasileiro, serão os mais velhos (85% acham isso), os mais pobres (50%) e homens (40%, ante 13% de mulheres e 37% que creem em isonomia).
Há bastante homogeneidade nas opiniões segundo os diversos estratos da pesquisa.
No geral, os entrevistados consideram o Brasil um pouco preparado para a crise (54%), enquanto 34% acham que o país não está pronto. Acham que está muito 10%, índices que se assemelham na avaliação do brasileiro em si, do SUS, da rede privada de saúde e de empresas.
INSTITUTO EVITOU PESQUISA NA RUA DEVIDO AO VÍRUS
A pesquisa Datafolha realizada de quarta (18) a sexta-feira (20) utilizou o método telefônico para evitar o contato pessoal entre pesquisadores e entrevistados em meio à pandemia.
Os limites impostos pela técnica não prejudicaram as conclusões devido à amplitude dos resultados apurados e pelos cuidados adotados. A pesquisa procurou representar o total da população adulta do país.
Esse método não se compara à eficácia das pesquisas presenciais feitas nas ruas ou nos domicílios. É por isso que, apesar de aproximadamente 90% dos brasileiros possuírem acesso pelo menos à telefonia celular, o Datafolha não adota esse tipo de método em pesquisas eleitorais, por exemplo.
O método telefônico exige questionários rápidos, sem utilização de estímulos visuais, como cartão com nomes.
Além disso, torna mais difícil o contato com os que não podem atender ligações durante determinados períodos do dia, especialmente os de estratos de baixa classificação econômica.
Assim, mesmo com a distribuição da amostra seguindo cotas de sexo e de idade dentro de cada macrorregião, e da posterior ponderação dos resultados segundo escolaridade, dados com método telefônico não são comparáveis com os de pesquisa de rua anteriores.
Foram entrevistados 1.558 brasileiros adultos que possuem telefone celular em todas as regiões do país. A margem de erro da pesquisa é de três pontos percentuais, para mais ou para menos.
Os militares e o presidente - Antonio Carlos Will Ludwig, O Estado de S.Paulo
Com a eleição de Bolsonaro, muitos militares passaram a ocupar cargos na administração pública federal. Parece razoável supor que eles os assumiram por determinados motivos, como a afinidade profissional, o desejo de contribuir para o sucesso do governo e a conquista de prestígio pessoal e notoriedade, entre outros. Talvez possa existir um número extremamente reduzido de interessados em apoiar ações contrárias ao adequado funcionamento da democracia.
Provavelmente a atitude antidemocrática não mais exista no interior dos quartéis. Se há alguma, está internalizada na mente de um grupo insignificante. Diversos fatos que afloraram ao longo do tempo agiram no sentido de seu abafamento e superação. Presumivelmente o ponto de partida está no ano de 1964, quando emergiram sérias divergências entre os militares quanto à conveniência da intervenção e ao prazo de entrega do poder aos civis, que mostraram a inexistência da homogeneidade de tal atitude.
As condutas não democráticas que surgiram no decorrer dos 20 anos provocaram manifestações de repúdio no meio civil e a consequente perda de prestígio das Forças Armadas no âmbito social. Isso levou os militares a repensar e modificar seus comportamentos em função do novo cenário político emergente. Nos últimos anos de governança autoritária tiveram de aturar as manifestações pelas Diretas-Já. No final da década de 1990 foi criado o Ministério da Defesa, que pôs as Forças Armadas simbólica e realmente sob o comando de ministros civis. Desde esse período até mais recentemente tiveram de conviver com presidentes e partidos políticos de centro-esquerda. Sofreram, ainda, sérios constrangimentos com revelações que vieram à tona em relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade. Mais importante de tudo é o fato de a sociedade ter elegido as Forças Armadas como a instituição mais confiável do País na atualidade.
Por causa de sua atitude anti-intelectual, é presumível que o presidente da República desconheça as particularidades do perfil dos atuais servidores fardados. Além disso, e por sua predisposição corporativa, ele deve estar interessado em fazer agrados aos militares, particularmente aos oficiais superiores e oficiais-generais, que são os principais responsáveis pelo funcionamento das organizações bélicas. Convites para ocupar postos relevantes no governo, criação de colégios militares, institucionalização das escolas cívico-militares, afã pela aprovação da reestruturação da carreira militar, comparecimento frequente a solenidades em em quartéis, aceitação da greve realizada pelos policiais no Nordeste, destinação de mais de US$ 7 bilhões à Emgepron, envio de US$ 6 bilhões extras para o Ministério da Defesa e o acerto com o governo Trump para fomentar a indústria nacional de armamento autorizam a pensar que ele deve ter também a intenção de afagá-los para consolidar um forte estreitamento de relações, embora haja justificativas para esses atos.
No que diz respeito aos demais setores do Estado, a conduta dele tem sido bem diferente. Com efeito, acumula desavenças com a Câmara dos Deputados, com o Senado, com o partido que o elegeu e não lhe dá mais sustentação e com o Supremo Tribunal Federal. Além disso, maltrata diariamente jornalistas e sempre que tem oportunidade anatematiza os meios de comunicação. Sua mais recente atitude foi convocar o povo para passeata contra os Poderes legalmente constituídos. Tal atitude, ao lado do estímulo concedido às manifestações virtuais e reais solicitadoras da volta dos militares ao poder e vários outros comportamentos já manifestados que se mostram como um atentado à democracia, revela que não tem compromisso algum com o regime democrático.
Consequentemente, nada impede de supor que ele tenda a acreditar que essas ações favoráveis aos militares, ao lado da ausência de discordâncias e críticas dos que o cercam quanto às suas investidas antidemocráticas, reverterão em apoio não só destes, mas também dos demais integrantes das Forças Armadas, em termos da concretização de atos destinados a protegê-lo de qualquer tentativa de isolamento ou de possível afastamento do cargo e dotá-lo de superpoderes para governar o País. Felizmente, não há nenhuma garantia de que isso possa vir a acontecer. Parece inexistir dúvida, então, de que a melhor e talvez a única maneira de torná-lo um incondicional respeitador da democracia consiste em alijá-lo desse seu suposto e mais relevante apoio.
Assim, ela requer a progressiva e discreta saída dos militares que ocupam os postos mais relevantes no governo e a não substituição deles por outros dotados de qualificação semelhante e que nutrem o desejo de ocupá-los. O outro apoio que ainda deve ter, ou seja, o minoritário porcentual de votos obtidos na eleição, não se revela capaz de lhe prestar o socorro necessário para salvar os intentos que desde há bom tempo vem acalentando, haja vista a manifestação bastante acanhada de 15/3, mesmo levando em conta a ameaça do novo coronavírus. Ressalte-se que essa solução tende a ser a mais conveniente e eficaz para enquadrá-lo nas exigências da vida política democrática.
PROFESSOR APOSENTADO DA ACADEMIA DA FORÇA AÉREA, É AUTOR DE ‘DEMOCRACIA E ENSINO MILITAR’ (CORTEZ) E ‘A REFORMA DO ENSINO MÉDIO E A FORMAÇÃO PARA A CIDADANIA’ (PONTES)
Momento exige forte abordagem multissetorial
21 de março de 2020 | 03h00
À medida que a América Latina (AL) começa a lidar com o aumento dos casos de covid-19, há um fato marcante que vale a pena considerar. Embora não tenhamos sido capazes de prever detalhes exatos desta pandemia, sabemos há anos que os riscos de uma pandemia global vêm aumentando, com potencial para grandes repercussões em toda a economia global.
Então, por que parece que esta crise surgiu do nada?
A resposta é que os indivíduos geralmente identificam riscos facilmente perceptíveis – seja por exposição pessoal, pela cobertura da mídia, ou ambos – como os mais ameaçadores. Já os riscos que não estão diretamente à nossa frente tendem a passar despercebidos. E por muitos anos o risco de uma pandemia não foi o principal na lembrança dos indivíduos.
Dados da Pesquisa de Percepção Global de Riscos, do Fórum Econômico Mundial, com cerca de participantes, demonstraram isso. Na última década as doenças infecciosas classificaram-se entre os cinco principais riscos percebidos apenas uma vez, em 2015, logo após a epidemia de ebola, quando ficou em segundo lugar, considerando seu impacto. Embora a pesquisa solicite aos participantes que levem em consideração os últimos dez anos, no ano seguinte as doenças infecciosas não aparecem mais entre os principais riscos. Em vez disso, o que nossa pesquisa mostrou foi que, a partir de 2016, questões relacionadas ao clima começaram a dominar a percepção de riscos de nossos entrevistados. Não por acaso esse ano foi o mais quente já registrado.
O mesmo fenômeno pode ser visto em pesquisa separada realizada pelo Fórum em 2019 com líderes empresariais. Nela os entrevistados na AL classificaram a propagação de doenças infecciosas como risco menor que o de fazer negócios na região. O único país do mundo a considerar as doenças infecciosas em primeiro lugar foi a Guiné, que passara pela crise do ebola alguns anos antes. Mas os líderes empresariais na AL estavam mais preocupados com os desafios de governança, sociais e econômicos – o que não surpreende, dados os eventos recentes, incluída a onda de protestos que ocorriam então.
De fato, é da natureza humana sentir-se mais ameaçado pelo que parece mais próximo. Mas um perigo em potencial é que, quando um risco é excluído de nossas linhas de visão coletivas, ele pode não ser corrigido e podemos estar mal preparados para lidar com isso quando se manifestar.
O que podemos fazer para nos prepararmos melhor para os riscos no futuro?
Para começar, devemos estar cientes de nossos pontos cegos. Ainda que, com razão, tenha havido um aumento da preocupação com a mudança climática em muitos países nos últimos anos, não devemos deixar de considerar que outros riscos ainda persistem. Da mesma forma, à medida que a atenção do mundo agora se volta para o surto de covid-19, a comunidade global não pode deixar de lutar por ações mais ambiciosas quanto às mudanças climáticas, ou por soluções para os desafios de segurança cibernética e segurança internacional.
Com a pandemia do coronavírus, já vimos importantes cúpulas climáticas canceladas, como a Cúpula Mundial dos Oceanos, no Japão, e dificuldade em reagendar a Convenção sobre Diversidade Biológica. Embora precisemos dar conta de novos perigos e enfrentar a pandemia, é importante que não paremos o importante trabalho de organizar a comunidade global para aumentar a ambição relativa à ação climática.
Simultaneamente, devemos adotar medidas que tornem menos provável a ocorrência de pontos cegos coletivos. Nesse aspecto, é fundamental uma forte estrutura global multissetorial – uma em que governos, empresas e organizações internacionais cooperem, visto que diversos atores têm perspectivas diversas e tendem a ter pontos de contato diversos nas sociedades. Garantir que uma variedade de atores nas regiões e indústrias estejam em contínua comunicação oferece maior possibilidade de que os riscos que se distanciaram das linhas de visão diretas de uma parte ainda sejam contabilizados coletivamente.
Mas, sejamos claros, é impossível prever e ter uma vigilância constante relativamente a todos os riscos potenciais ao nosso redor.
Portanto, devemo-nos posicionar para estar prontos para lidar com os riscos que se materializam. Mais uma vez, relativamente a esse aspecto, é fundamental uma estrutura multissetorial. Basta olhar para 2009 para perceber a importância que teve uma estrutura multilateral pronta para encaminhar a economia global no sentido da recuperação. O G-20, por exemplo, por estar em posição de reunir rapidamente os governos, conseguiu lançar o Quadro para um Crescimento Forte, Sustentável e Equilibrado, que ajudou a evitar uma recessão mundial.
No momento em que o coronavírus está dominando a nossa atenção, é fundamental uma forte abordagem multissetorial – por meio de organizações internacionais e iniciativas globais – com vista à criação da resiliência e à preparação para futuras consequências econômicas, políticas e sociais. Mas, talvez tão importante quanto isso, também é fundamental para garantir que estejamos em posição resiliente relativamente aos riscos que não estão diretamente à nossa frente neste momento.
PRESIDENTE DO FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL
Um governo bifronte - Bolívar Lamounier, O Estado de S.Paulo
A verdade é que temos dois governos. Um no rumo certo, sério e competente, personificado pelos ministros da Economia e da Saúde, principalmente. Outro, populista e irresponsável, personificado pelo presidente Jair Bolsonaro, vez por outra coadjuvado pelos ministros da Educação e das Relações Exteriores.
De fato, 15 meses não foram suficientes para Jair Bolsonaro nos tranquilizar quanto à sua compreensão dos requisitos básicos do cargo para o qual foi eleito e da crítica situação que estamos vivendo. Sua subestimação da seriedade da pandemia de covid-19 volta e meia nos traz à memória um fato de dez anos atrás: a hilária referência de Lula à crise financeira que se avizinhava. Da subestimação decorreu a convocação de manifestações de apoio à sua pessoa e de pressão sobre o Legislativo e o Judiciário. Há quem afirme que ele não fez tal convocação, que elas teriam sido espontâneas, ou, então, que ele as convocou e depois desconvocou. Acontece que em política é possível dizer algo sem dizer nada, ou até dizendo o contrário do que se pretende. Para mim, ele as convocou na base do “bem me quer, mal me quer”, deixando espaço para recuar quando isso lhe parecesse taticamente conveniente.
Mas isso é o de menos. Fato é que, sendo ele o presidente da República, a atitude correta seria alertar a sociedade para o risco de aglomerações, alerta feito por seu ministro da Saúde; e fazê-lo, não em frases soltas ao vento, mas com solenidade e firmeza, em cadeia nacional de rádio e televisão. Alertar também, no que toca ao Legislativo e ao Judiciário, que a Constituição veda expressamente quaisquer ações que dificultem o adequado funcionamento dos Poderes do Estado. Não menos importante, afirmar, em alto e bom senso, como supremo magistrado, que ele não compactua com a grita de setores “sinceros, mas radicais” que exigem a derrubada das instituições representativas, qualquer que seja a avaliação de cada um sobre o presente desempenho delas.
Acrescente-se – e este é o ponto mais grave, que não deixa dúvida sobre as diferentes interpretações que se têm dado aos fatos acima mencionados – que Jair Bolsonaro não se contentou em saber pela imprensa ou pela internet que uma parcela da sociedade parecia (ou parece) aderir ao seu não convocado “queremismo”. Não. Cedendo ao cerne populista que informa seu modo de sentir a política, ele desceu a rampa a fim de cumprimentar um grupo de manifestantes, trocar apertos de mão e tirar algumas selfies, descumprindo de modo flagrante as recomendações de todas as organizações nacionais e internacionais e de seu próprio ministro da Saúde, que ora, angustiadamente, se empenham no combate ao coronavírus.
A bem da justiça devo repetir que a outra metade de seu governo tem demonstrado seriedade e competência, mas em relação a ele, Jair Bolsonaro, sou forçado a reiterar o que afirmei no início: até o momento, ele tem se comportado como um político populista e irresponsável. E a reiterar também minha dúvida sobre sua compreensão dos requisitos básicos da posição que ocupa e dos dramáticos desafios que ora ameaçam nossa existência como povo.
Não voltarei ao coronavírus, voltarei à estúpida polarização que se configurou desde a eleição de 2018. O famigerado recurso ao “nós contra eles” cultivado por Lula e pelo PT metamorfoseou-se em coisa pior: o bolsonarismo acima de tudo e contra todos os outros. Ou seja, uma divisão vertical sem precedentes no País, como se fôssemos dois povos, contrapostos e antagônicos. Cada um com seus slogans, sua raiva e seus panelaços. Quem não apoia o “mito” é comunista, é de esquerda, é tucano, ou tudo isso ao mesmo tempo, ou coisa pior. É liberal, outro grave xingamento, não obstante o ministro da Economia se identificar como tal e estar tentando implementar reformas sabidamente indispensáveis, e inequivocamente liberais. Orientado, ao que tudo indica, pelo sábio da Virgínia, o clã Bolsonaro vê-se como um Dom Quixote de lança em punho, pronto para extirpar uma imaginária hegemonia de esquerda que se teria instalado entre nós desde a Contrarreforma e no bojo do patrimonialismo português, perdurando e se fortalecendo mesmo durante os 21 anos de governos militares.
Tivesse ele uma compreensão mais adequada de sua posição como supremo magistrado, Jair Bolsonaro já teria entendido que não foi eleito por uma seita, mas pela maioria do eleitorado; e que a função presidencial não se restringe a um grupo de seguidores, a um partido ou seita eleitoral, mas à totalidade do povo brasileiro. O palanque teve seu momento, mas não foi e não pode ser levado para dentro do Palácio do Planalto. O verbo agressivo, não raro insultuoso, tem de ceder lugar a uma fala formal, impessoal e comedida. O que temos visto, infelizmente, é o oposto. Jair Bolsonaro parece entender que seu papel é o de dividir ainda mais o País, nem que o preço seja se misturar infantilmente com a multidão, pondo em risco um número não desprezível de cidadãos.
SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
A calamidade pública número um não é o coronavírus
22 de março de 2020 | 03h00
Conseguiram humilhar o coronavírus. Depois de matar milhares de pessoas em mais de cem países, forçar milhões ao isolamento, arrasar mercados e levar o mundo à beira de uma recessão brutal, o serial killer foi rebaixado no Brasil à condição de segunda maior calamidade. A número um, a maior e mais perigosa, assola o País há mais de um ano, pondo em risco a economia, a cultura, a gramática, as instituições, a natureza, o decoro e a saúde pública. O Congresso cuidou só do problema número dois, portanto, ao aprovar uma declaração de calamidade pública. Levam-se em conta nessa decisão os danos causados pela pandemia do vírus causador da doença conhecida como covid-19. Ao reconhecer uma situação excepcionalmente grave, o Legislativo abriu caminho para ações também extraordinárias. Com isso o governo poderá incorrer num déficit primário superior a R$ 124,1 bilhões, limite previsto no Orçamento. Haverá condições, enfim, para toda a ação necessária contra os males associados à pandemia?
Isso dependerá, em boa parte, de como se comporte a calamidade pública número um. As ações preventivas e compensatórias anunciadas pelo Executivo federal, até agora, foram tomadas contra as convicções demonstradas por sua excelência, a calamidade número um. Mesmo a reação da equipe econômica foi muito lenta. Há pouco mais de uma semana o ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda cobrava do Congresso a aprovação de reformas como resposta aos novos desafios.
Uma boa reforma tributária será, sem dúvida, importante para a retomada de um crescimento seguro e duradouro, mas os novos problemas da economia requerem respostas imediatas. Além disso, o Executivo nem sequer havia apresentado ao Legislativo suas ideias para a reconstrução dos impostos e contribuições. O projeto de reforma administrativa, prometido para logo depois do carnaval, continua em alguma gaveta.
A equipe econômica só apresentou uma coleção razoavelmente ampla de medidas na última segunda-feira, depois de desafiada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A grande novidade do pacote foi a atenção, inédita ou quase inédita no atual governo, aos desempregados e aos mais pobres. O anúncio das iniciativas teve como contraponto comentários de sua excelência, a calamidade maior. Os comentários mais uma vez puseram em dúvida a gravidade da crise e atribuíram exageros aos meios de comunicação.
Segundo sua excelência, tem havido histeria na reação à crise. O Brasil, afirmou, já enfrentou desafios mais graves. Não os mencionou, no entanto. A primeira-ministra alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Emmanuel Macron, compararam a emergência de hoje com a 2.ª Guerra Mundial. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, definiu-se como “um presidente de tempos de guerra”. Recordando o conflito da Coreia, ele indicou a intenção de invocar a Lei de Produção de Defesa, de 1950, para ampliar a fabricação de máscaras, luvas e equipamentos hospitalares. No Reino Unido, a Ford se prontificou a produzir respiradores para hospitais. Na França, indústrias de perfumes participam do esforço para aumentar a oferta de álcool gel. Pelos critérios de sua excelência, a calamidade número um, devem ser um bando de histéricos.
Se esse for o caso, a mesma histeria tem dominado, no Brasil, governadores e prefeitos, dispostos a restringir as aglomerações para conter – ou pelo menos tornar mais lenta – a difusão do novo coronavírus. As limitações afetam o funcionamento do comércio e dos serviços. Dirigentes de empresas privadas já haviam avançado nessa direção, mandando para casa os trabalhadores mais velhos, organizando sistemas de home office e alterando os horários de trabalho. Aparentemente sem perceber ou entender esse amplo movimento, sua excelência mais de uma vez acusou governadores de impedir o bom funcionamento da economia.
Se sua excelência tiver razão, esses governadores, assim como os prefeitos, devem estar dispostos, por mera incompetência ou por demagogia autodestrutiva, a perder receita de impostos num ano já difícil desde o começo. À sombra da calamidade maior, a economia já foi mal no ano passado. Quanto aos dirigentes de empresas, só podem ser, por esse critério, um bando de cretinos. A prova disso é a disposição de complicar o funcionamento de suas companhias – atitude agravada pela aceitação pacífica das medidas de prevenção sanitária ditadas pelo poder público.
Sua excelência tem alternado o discurso contrário à prevenção com declarações bem comportadas a favor dessa mesma política. De vez em quando, no entanto, suas convicções e preocupações mais fortes irrompem de forma descontrolada. Isso ocorreu, por exemplo, quando a ilustre figura se declarou disposta a entrar em barcas e metrôs para se juntar ao povo. Já havia feito algo do gênero, violando recomendação médica, ao participar de manifestação em Brasília. Nessa manifestação houve cartazes contra os Poderes Legislativo e Judiciário – contra a ordem institucional democrática, portanto. Alguma surpresa quanto ao entusiasmo de sua excelência?
JORNALISTA