Franquia do crime: Posto de saúde em Itaguaí foi usado como 'farmácia' de milicianos
Um posto de saúde de Itaguaí, na Baixada Fluminense, foi usado como "farmácia" de integrantes de uma milícia, que tinham direito a atendimento preferencial na retirada de remédios. O município, a 69 km da capital, é um dos principais territórios para onde esses grupos criminosos têm avançado, coagindo a população local a pagar por serviços irregulares.
As circunstâncias desse esquema são apresentadas pelo G1 nesta segunda reportagem da série Franquia do Crime, que detalha a expansão de grupos de milicianos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Os sucessivos desvios no posto médico no bairro Chaperó eram até registrados no livro de ocorrências da unidade, no qual anotações indicam as entregas de medicamentos sem receita feitas a milicianos ou seus parentes. Por causa das irregularidades, no ano passado três pessoas foram denunciadas à Justiça -- entre elas, a coordenadora da Unidade Básica de Saúde (UBS).
"Essa ocorrência do posto de saúde de Chaperó está inserida num contexto de mais de um ano de ação de milicianos em vários bairros de Itaguaí. Eles têm paiois e bases lá. Apareceram pessoas com medo das ameaças que ocorreram", diz o promotor Jorge Furquim, do Grupo de Atuação Especializada e Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do RJ
"A autoridade policial instaurou inquérito e o que se constatou é algo inédito: influência dos milicianos em um serviço municipal de saúde", afirma o promotor, que está à frente da 1ª Promotoria de Justiça Criminal de Itaguaí.
O G1 teve acesso à denúncia na qual o promotor ressalta que a milícia que atua na região "inferniza a comarca" há mais de três anos. Segundo ele, o grupo que domina áreas do município veio de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, e se instalou em junho de 2014. O miliciano Wallace Batista de Oliveira, o "Magnum", é apontado pelo MP como chefe da quadrilha que domina os bairros Chaperó e Ponte Preta.
Para o promotor, Itaguaí vive uma "catástrofe particular" quando se trata do domínio silencioso desses criminosos. Conhecido como cidade dos portos, o município tem pouco mais de 120 mil habitantes e 27 estabelecimentos de saúde, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Um deles é a UBS de Chaperó, onde o atendimento -- que deveria ser exclusivo a pacientes -- foi preferencialmente dado a milicianos durante vários meses em 2017.
Livre acesso
De acordo com o MP, a coordenadora da unidade, Cíntia Pereira Machado, é suspeita de ter determinado a funcionários da farmácia que atendessem "preferencial e extraordinariamente" membros da milícia local. Segundo a denúncia, a relação com milicianos era usada para fazer ameaças à equipe.
"Essa coordenadora fazia ameaças, segundo testemunhas, e causava temor da ligação dela com os milicianos da região. Os milicianos tinham livre acesso à unidade, sem precisar passar pelos exames médicos. Foi perguntado à pessoa que denunciou, e ela disse: tem anotações no livro. Há pelo menos cinco lançamentos de entregas de medicamentos", relata o promotor Furquim.
Após as denúncias anônimas, a investigação conduzida pela polícia levou o Ministério Público a pedir a prisão preventiva de Magnum e acusar de peculato a coordenadora e uma outra funcionária. O MP também pede que a responsável pela unidade perca o cargo público. Cíntia prestou depoimento em novembro de 2017 e negou ter conhecimento sobre as irregularidades.
Essa funcionária que aparece no documento, moradora da comunidade, é apontada como o elo entre Cíntia e Magnum. Segundo o MP, era essa mulher quem passava recados ou articulava novas visitas do miliciano à unidade e também desviava os medicamentos.
Outro trecho da denúncia do MP relata que funcionários da unidade disseram que Magnum esteve no posto de saúde em novembro de 2017. Além disso, os depoimentos indicam que ele era recebido por Cíntia na sala dela. Na 50ª DP (Itaguaí), outros testemunhos citam conversas entre a diretora e a funcionária para que chamassem milicianos para "assustar" uma outra servidora.
Lista de remédios
Entre junho e outubro de 2017, dezenas de remédios foram disponibilizados a milicianos e parentes dos criminosos. De acordo com o MP, a certeza da impunidade era tamanha que os criminosos faziam questão de que a retirada dos insumos ficasse registrada no livro de controle da unidade.
"Isso mostra que o Wallace, como representante da milícia, tinha ingerência no posto, e tinha contato íntimo com a denunciada Cíntia, a ponto de definirem a forma como a qual a milícia poderia ter livre acesso a medicamentos", dizFurquim.
Entre os remédios entregues aos criminosos e pessoas ligadas a eles estão dezenas de comprimidos de Cefalexina, Ibuprofeno e Sulfadiazina de prata, no dia 24 de junho de 2017; seis tubos de pomada de óxido de zinco em 14 de julho de 2017; e dezenas de comprimidos de omeprazol em 11 de setembro.
Outras dezenas de comprimidos de Ibuprofeno, Dipirona e Captopril foram entregues em 27 de setembro; e mais dezenas de comprimidos de Dipirona no dia 19 de outubro.
- Cefalexina: antibiótico para infecção de garganta, ouvido, infecção urinária, na pele ou nos músculos.
- Ibuprofeno: anti-inflamatório para dor, febre e inflamação
- Sulfadiazina de prata: Creme para queimaduras de 2º e 3º graus
- Óxido de zinco: creme para assaduras (utilizado em recém nascidos)
- Omeprazol: remédio para gastrite e úlceras gástricas
- Dipirona: analgésico utilizado para dores e febre
- Captopril: remédio para combate à hipertensão e insuficiência cardíaca
O G1 teve acesso a um dos livros de controle da farmácia da unidade. Num deles, no dia 27 de setembro, está escrito: "Dispensados 60 comprimidos de dipirona e 60 comprimidos de Ibiprofeno para a milícia. A enfermeira solicitou uma cartela de Captopril 25 mg para a milícia".
Em outra anotação, no dia 19 de outubro, 20 comprimidos de Dipirona foram dados ao pai de um miliciano. Na anotação, o funcionário ressalta que o homem foi "prontamente atendido".
Diretora afastada
De acordo com o Ministério Público, o esquema parou depois de a coordenadora Cíntia ter sido interrogada na 50ª DP. No depoimento, em novembro do ano passado, ela disse que não tem conhecimento de saída de medicamentos para milicianos e negou que tenha sido ameaçada por quem quer que seja para entregar medicamentos.
A diretora disse que, devido à greve de servidores municipais da saúde em Itaguaí, vinha cobrando que funcionárias da farmácia da unidade trabalhassem normalmente. Ao saber por redes sociais que havia uma ocorrência aberta contra ela por ameaça, foi até a delegacia. Lá, ela também afirmou que pede para que todos remédios sejam entregues com prescrição médica, e que possui um livro de ocorrências próprio, ao qual apenas ela e outra funcionária têm acesso.
Os funcionários que denunciaram o esquema conseguiram realocação.
Em nota enviada ao G1, a Secretaria de Saúde de Itaguaí informou que afastou a coordenadora da unidade e instaurou uma sindicância para apurar os fatos.
Atualmente, Magnum responde a ação penal por porte ilegal de arma de fogo e receptação de veículo clonado. Segundo o MP, o criminoso ascendeu na hierarquia do grupo em Itaguaí a partir das prisões de outros chefes da quadrilha.
Rondas armadas
A ocupação dos milicianos não se restringe a Chaperó. Numa foto obtida pelo G1, criminosos aparecem armados, à luz do dia, em frente a outro posto de saúde, em outro bairro de Itaguaí em que exercem influência: Vila Margarida. O registro foi feito em fevereiro de 2018.
Na área onde foi feita a foto, os milicianos ainda não ocupam o bairro todo, mas já praticam cobrança de comerciantes em vários pontos da região. Segundo Furquim, os milicianos se sentem "muito à vontade" no município.
"Eles têm base em Chaperó e Mangueira. Nos outros bairros, eles passam para fazer cobranças, e passam ostensivamente para mostrar poder. Eles variam dias, mas fazem rondas. Aquilo ali é uma ronda. A foto é ali em Vila Margarida", diz o promotor.
O representante do MP diz que houve mudanças no policiamento, mas os bandidos ainda circulam sossegados por vários outros bairros, como Coroa Grande, Piranema e Mangueira.
"As pessoas, por temor, simplesmente já não fazem mais queixas", afirma o promotor.