Busque abaixo o que você precisa!

A política do Brasil para as crianças de até 3 anos é um deserto de estímulos

FLÁVIA YURI OSHIMA, DO CEARÁ* (TEXTO), E IGOR DE MELO (FOTOS)
01/12/2017 - 20h10 - Atualizado 01/12/2017 20h23
 
A área rural da cidade cearense de Boa Viagem é um bom retrato do sertão do Ceará. Longas extensões de terra batida, galhos secos e ocasionais cactos das famílias mandacaru e coroa-de-frade evocam as histórias do cangaço. Salvo o intermitente verde dessas plantas espinhosas, a região é um deserto de cores e estímulos. Os campos da pequena Boa Viagem fazem parte da macrorregião de Quixeramobim que, com 75 mil habitantes, é o centro comercial da área.
 
No sobe e desce da estrada que corta o sertão, os seres vivos mais comuns são urubus. A aparição de um jegue, uma cabra ou um porco anuncia a aproximação de um lugar habitado por gente. Entre uma casa e outra há espaço suficiente para acreditar que a área habitada chegou ao fim. A criançada pode brincar e correr sem se preocupar com o barulho.
 
É tanto espaço que os três filhos mais velhos de Francisco Djalma do Nascimento Araújo, de 37 anos, e Maria Gonçalves do Nascimento Araújo, de 35, chegam a estranhar. Criados num barraco na cidade de Ceilândia, no Distrito Federal, Gabriel, de 15 anos, Maria Claudia, de 12, e Camila, de 8, quando não estão na escola, ficam dentro de casa – mesmo tendo agora todo o espaço que quiserem para correr. “Meus meninos mais velhos nunca foram de bagunça. Quando pequeninos, sempre ficavam sentadinhos, quietinhos”, diz o pai.
 

A exceção é a caçula, Gabriela, de 1 ano e 9 meses. “É agoniada”, diz Maria. “Antes era brava e nervosa. Agora é bagunceira.” O antes a que a mãe se refere é o tempo em que Gabriela ainda não andava nem engatinhava. Naquela fase, que durou até um ano e meio de vida, Gabi ficava entre a rede, o único sofá que ocupa a sala da família e o colo dos pais e dos irmãos mais velhos. “Era nervosa, gritava, se empertigava no colo da gente”, diz o pai.

>> Os frutos do ensino à distância

Depois de três filhos, Djalma e Maria achavam que sabiam alguma coisa sobre criar crianças. Por isso, quando Maria Cleomar Nunes Rodrigues, de 45 anos, conhecida por eles como a enfermeira do posto de saúde, bateu na porta da família para mostrar umas atividades criadas para crianças da idade de Gabriela, eles estranharam. Que tipo de atividade? A gente sabe cuidar de crianças pequenas, foi o que pensaram. Cleomar insistiu. Explicou que aquele era um programa de visitações criado pelo governo do Ceará para ajudar crianças que não tinham acesso à creche, como Gabriela, a se desenvolver, e que as atividades lhe fariam bem.

As primeiras visitas de Cleomar deixaram a pequena Gabriela ressabiada. Grudada no pescoço da mãe, olhava de soslaio para os brinquedos coloridos no chão da casa e para a moça sorridente que a chamava para brincar. Ao preencher o formulário de inscrição no programa, Cleomar questionou os pais sobre a saúde da pequena Gabriela. O acompanhamento feito pelo pediatra do município não mostrara nada que levantasse nenhuma suspeita sobre o desenvolvimento físico da menina. Mas, por alguma razão, Gabriela não andava.

>> O custo do analfabetismo para a vida do indivíduo

No curso que fez para se tornar uma agente do programa de desenvolvimento infantil, Cleomar aprendeu que o aprendizado de certas habilidades ocorrem dentro de uma janela de tempo. Os primeiros passos de uma criança, ela sabia, são dados entre 10 e 13 meses de idade. Gabriela já tinha 16 meses e não se locomovia de forma alguma, nem engatinhando.

 (Foto:  )

O plano de ação de Cleomar foi conquistar a confiança de Gabriela e observar sua desenvoltura antes de encaminhá-la para o atendimento especializado. Não foi preciso ir muito longe com as visitas para que a agente percebesse que, antes de investigar se havia qualquer impedimento neurológico ou motor, ela precisava lidar com outro impedimento comum ao desenvolvimento infantil: a falta de estímulo.

Na quarta visita, Cleomar percebeu que os pais não queriam colocar a criança no chão por medo de ela se machucar. Diferentemente do barraco de chão lisinho em que a família morou por 12 anos em Brasília, a casa em que moram agora no Ceará tem chão de cimento bruto, áspero e cheio de irregularidades. “A menina vai se ralar toda”, disse o pai diante da proposta de Cleomar de deixar a criança solta.

A solução para dar a liberdade de que a criança precisava e acalmar os temores dos pais foi criar um esquema de trilha de cadeiras para colocar Gabriela em pé entre elas e estimulá-la a tentar se locomover de uma para a outra. Funcionou. Em pouco mais de um mês, Gabriela adquiriu firmeza nas pernas e equilíbrio suficiente para cambalear entre as cadeiras sem cair. Em menos de três meses estava andando sem suporte e sem a necessidade de nenhum tipo de fisioterapia ou intervenção médica. Hoje,  Gabriela corre para todo canto, dentro e fora da casa, e não tem mais crises nervosas. “Só fica brava quando os irmãos mais velhos começam a brigar. Manda todo mundo ficar quieto”, diz a mãe, Maria, rindo.

Cleomar é agente de um programa-piloto no estado do Ceará que tenta tirar o atraso do Brasil numa política social vital para o desenvolvimento de qualquer país: os cuidados com crianças de 0 a 3 anos de idade, a fase conhecida como primeira infância. Pesquisas dos mais importantes centros de estudos do mundo mostram que as vivências do bebê nessa faixa etária influenciarão seu desenvolvimento ao longo de toda a vida. Mais do que isso, em nenhum outro estágio da vida investimentos produzem efeitos econômicos tão positivos quanto aqueles feitos nos primeiros três anos da criança.

Compartilhar Conteúdo

444