A conta da prestidigitação fiscal
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
O mais recente artifício a que o governo recorreu para preservar a meta fiscal foi a exclusão dos gastos relacionados ao plano de socorro para exportadores afetados pelo tarifaço imposto pelos Estados Unidos, estimado em R$ 9,5 bilhões. Há que reconhecer que o estrago ficou até relativamente contido, tendo em vista o histórico desse tipo de pacote e as relações de proximidade que os setores atingidos mantêm com o Executivo federal, mas a manobra é apenas mais uma a engrossar uma longa lista de despesas contabilizadas fora da meta fiscal ao longo do governo Lula da Silva.
Reportagem publicada pelo Estadão mostra que essa conta está cada vez mais próxima dos R$ 400 bilhões. Cálculos da XP Investimentos apontam que as despesas fora da meta devem alcançar ao menos R$ 387,8 bilhões até o fim de 2026, enquanto o BTG Pactual estima que elas chegarão a R$ 389,7 bilhões. São números impressionantes, sobretudo quando se considera que a meta para este ano é de déficit zero e que a margem de tolerância é de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB), o que equivaleria a R$ 31 bilhões.
A equipe econômica tem resposta pronta para o rombo – e a culpa, como sempre, é de Jair Bolsonaro. Para o Ministério da Fazenda, políticas adotadas pelo ex-presidente seriam responsáveis por 87% desse número. De fato, não se deve esquecer que o calote nos precatórios institucionalizado pelo governo anterior contribui com boa parte dessa cifra – R$ 92,38 bilhões em 2023, R$ 45,30 bilhões neste ano e R$ 55,10 bilhões no próximo. Mas os valores não chegam ao porcentual supracitado, tampouco são a única razão a explicar a conta.
Parte relevante desse rombo se deve aos gastos relacionados à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, aprovada e promulgada pelo Congresso no fim de 2022 com o apoio explícito de Lula da Silva. Bem se sabe que era preciso recompor o Orçamento e retomar políticas públicas destruídas pelos anos de bolsonarismo, mas parlamentares e integrantes do governo recém-eleito aproveitaram o ensejo para se refestelar, o que fez com que os gastos fora da meta atingissem R$ 145 bilhões.
A derrubada do antigo teto de gastos e sua substituição pelo arcabouço ressuscitaram os pisos constitucionais de saúde e educação e sua vinculação à arrecadação. Ademais, o governo, com o aval do Congresso, ainda estabeleceu uma nova política que garantiu aumento real para o salário mínimo, piso que é referência para aposentadorias, pensões e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), entre outros benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
A dificuldade do governo Lula em colocar as contas em ordem é consequência dessa decisão. Ao aumentar as despesas obrigatórias já de saída em um nível muito acima da inflação e garantir reajustes próprios para boa parte delas, o governo tornou impossível a tarefa de limitá-las a um porcentual das receitas, como determina o arcabouço fiscal.
O resultado era previsível. Assim como o teto, o arcabouço passou a comprimir cada vez mais o já reduzido espaço das despesas discricionárias, entre elas investimentos e emendas parlamentares. Assim, em vez de mirar o centro da meta, o governo passou a buscar seu limite inferior, não deixando gordura alguma para lidar com acontecimentos imprevisíveis.
E eles foram muitos: as calamidades causadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul e pelas queimadas no Norte e Centro-Oeste, a fraude dos descontos indevidos nos benefícios do INSS e as sequelas da agressiva política comercial conduzida por Donald Trump, entre outros. Com a proximidade das eleições presidenciais, não é preciso ser um profeta para prever que a conta das despesas fora da meta fiscal aumentará até o fim de 2026.
A recorrência com que o Executivo apela a artimanhas para não ter de admitir a necessidade de mudar a meta só desmoraliza a âncora fiscal. Enquanto o governo apregoa que alcançará o déficit zero como se esse objetivo fosse um fim em si mesmo, a dívida pública avança na proporção do PIB, exige juros cada vez maiores para ser financiada e escancara a incapacidade do arcabouço de reequilibrar as contas públicas.