NOS TRILHOS, UM RETRATO DO DESPERDÍCIO
Com um atraso secular em suas metas de expansão e de investimentos em ferrovias, há mais de dois anos o Brasil se dá ao luxo de simplesmente abrir mão do uso de uma ferrovia pronta e moderna, uma estrutura que já custou mais de R$ 4,2 bilhões aos cofres públicos e que poderia ter iniciado uma revolução no mapa logístico nacional.
A revolução não veio. No lugar dela, o que se vê no trecho de 855 km da Ferrovia Norte-Sul, entre Palmas (TO) e Anápolis (GO) é o retrato do desperdício e da irresponsabilidade com o bem público.
Na manhã de 22 de maio de 2014, a conclusão desse trecho da Norte-Sul foi motivo de comemoração e ato eleitoral. Na ocasião, a presidente afastada Dilma Rousseff esteve em Anápolis, passeou numa locomotiva e inaugurou o eixo central da “coluna vertebral” do Brasil, empreendimento que reduziria os custos de frete em pelo menos 30% e poderia gerar negócios da ordem de US$ 12 bilhões por ano, ao mudar a cara do transporte de carga e impulsionar a arrecadação de impostos.
Desde então, nem meia dúzia de comboios de carga passou pelo trecho. No fim do ano passado, alguns vagões carregados de 21 mil toneladas de farelo de soja subiram por ali. Outras 18 locomotivas da empresa de logística VLI, que pertence à mineradora Vale, usaram o traçado para acessar a parte superior da Norte-Sul onde a VLI já atua há quase dez anos, entre Palmas e Açailândia (MA). Trata-se de um nada, se comparado ao potencial efetivo da malha.
Para se ter uma ideia, só os novos terminais que a VLI acaba de erguer na Norte-Sul, no município de Porto Nacional (TO), têm capacidade de movimentar 2,6 milhões de toneladas por ano. Em Anápolis, um parque logístico já está ocupado por dezenas de grandes empresas que aportaram bilhões de reais no polo, mas ainda espera-se o dia em que a circulação dos trens passará a ser rotina sobre os seis ramais do pátio da Norte-Sul, preparado para o transbordo da carga.
O diretor de Operações da Valec, Marcus Almeida, diz que, gradativamente, o trecho passará a ser utilizado. “Já fizemos algumas viagens no trecho. Entre agosto e setembro, mais 45 mil a 50 mil toneladas de farelo devem passar pela ferrovia.”
Para o diretor de engenharia da Valec, Mário Mondolfo, é preciso considerar que a ferrovia tem “natureza diferente” das rodovias. “Ela precisa maturar. A carga tem de começar a descobrir a ferrovia. Não são seis meses depois que teremos 20 vagões de trens passando por lá”, argumenta.
Estouro. O martírio dos projetos ferroviários não se limita a trechos prontos que seguem subutilizados. Na Norte-Sul e na Ferrovia Oeste-Leste (Fiol), na Bahia, os escândalos financeiros circulam em alta velocidade sobre o traçado de obras sem data para serem entregues.
O Estado teve acesso a um levantamento detalhado de cada contrato e seus respectivos termos aditivos firmados com as empreiteiras que atuam na Norte-Sul – no trecho de 682 km entre Ouro Verde (GO) e Estrela D’Oeste (SP) – e também nos 1.527 km projetados para a Fiol, malha que vai cortar a Bahia de leste a oeste, até chegar a Ilhéus, no litoral.
Um olhar sobre as contas e contratos que forjaram cada metro de trilho lançado nesses dois projetos pela Valec ajuda a enxergar a dimensão do abismo financeiro em que se converteram essas obras. Os dados da Valec, estatal responsável pelas ferrovias, apontam que essas duas obras já acumulam um total de 123 termos aditivos até agora.
Somados, os dois projetos já tiveram seus orçamentos ampliados em mais de R$ 4,8 bilhões, entre reajustes contratuais, correções de projetos de engenharia, constantes paralisações e esquemas de corrupção. É dinheiro mais do que suficiente para construir do zero outro trecho da Norte-Sul.
Na última semana, as duas ferrovias foram alvo da Operação Tabela Periódica, da Polícia Federal. Com apoio de mais de 250 agentes policiais e outros servidores, a operação desbaratou um cartel de empreiteiras que há anos atua nos empreendimentos.
O trecho sul da Norte-Sul, que teve as obras anunciadas em meados de 2007, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), viu seu preço saltar de R$ 2,7 bilhões para R$ 5,1 bilhões, segundo a estimativa mais recente. Previsto para ser entregue em dezembro de 2012, o trecho teve sua conclusão prorrogada novamente, dessa vez para julho de 2017.
Na Fiol, as obras da malha de 1 mil km entre os municípios de Barreiras e Ilhéus, inicialmente avaliadas em R$ 4,2 bilhões, agora chegam em R$ 6,4 bilhões. Ignorada no plano de concessões do governo, a Fiol tem sido encarada como uma “dor de cabeça” quando o assunto é discussão sobre investimentos, apesar de o projeto já ter dragado R$ 3 bilhões em recursos públicos.
Sobre os 500 km restantes que ligariam a ferrovia à Norte-Sul, em Figueirópolis (TO), o que existe até hoje são pilhas de papéis, nada mais.
Reajuste. O rombo financeiro nos projetos não assusta o atual presidente da Valec, Mário Rodrigues Júnior. “Não é valor adicional, é reajuste. Se minha obra demorar cinco anos, ela vai ter cinco reajustes”, justifica Rodrigues. Questionado se um estouro de R$ 4,8 bilhões no orçamento lhe parece razoável, Rodrigues reage com certa naturalidade: “Eu acho que sim”.
Lançada pelo então presidente José Sarney, no anos 80, a Norte-Sul atravessou duas décadas de abandono e passou por dois governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tendo avançado apenas 215 km. Sua retomada ocorreu em 2007, quando Lula reativou a Valec e trouxe para seu comando José Francisco das Neves, mais conhecido como Juquinha. Em 2011, Juquinha chegou a ser preso pela Polícia Federal em decorrência de investigações que apuravam desvio de recursos e superfaturamento nas ferrovias. No mês passado, o Ministério Público Federal (MPF) em Brasília pediu a condenação de Juquinha e de Luiz Raimundo Carneiro de Azevedo, outro ex-presidente da estatal. Mais seis pessoas também foram alvos da denúncia, por causa de desvios de R$ 23,1 milhões dos cofres da empresa. o estado de sp