O samba da base militar / FOLHA DE SP
É para levar a sério o que fala o presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL)? E a palavra do chanceler, Ernesto Araújo, tem consequências práticas? A julgar pelo episódio da hipotética instalação de uma base militar dos Estados Unidos em território brasileiro, não.
O supremo mandatário, numa entrevista ao SBT, e seu ministro, pouco depois, deram asas à ideia. Mike Pompeo, homólogo de Araújo na administração de Donald Trump, admitiu ao jornal O Estado de S. Paulo o que parecia ser o ensaio de uma oferta.
Tudo não passou, porém, de devaneio de quem se habituou, como deputado ou diplomata periférico, a falar e escrever sem se preocupar com o efeito das frases. Diretamente interessada no tema, a organizada ala militar do governo fulminou a tese estapafúrdia.
Uma consulta breve à Constituição bastaria para notar que a lei fundamental não permite a permanência de forças militares de outros países no Brasil a não ser a título temporário. Mesmo essa hipótese é tratada na Carta com cuidado, associada a situações excepcionais como a guerra.
A cautela legal reflete uma tradição. Da última vez em que se autorizou operação estrangeira no país, há 77 anos, o mundo vivia um conflito armado. Os EUA, interessados em fincar pé no nordeste da América do Sul, puderam instalar-se em Natal —ainda assim, apenas mediante contrapartidas econômicas exigidas pela ditadura Vargas.
Causa espanto o presidente Bolsonaro, egresso da academia militar e sempiterno patrocinador das causas das Forças Armadas, desconhecer a repulsa dessa corporação a qualquer proposta de ceder território a potências externas. Tal ideia não passaria pela cabeça nem sequer de um cadete inexperiente.
Quanto a Ernesto Araújo, o episódio serve de alerta. A sua adesão, ao que parece oportunista, a um ideário exótico e inconsistente, o chamado antiglobalismo, vai colocá-lo em choque não apenas com os protocolos, os costumes e os enquadramentos da longeva organização que chefia.
Em breve, a continuar o chanceler nessa toada de declarações lunáticas e atitudes inconsequentes, estará também desgastado com os setores militar e econômico do governo. Não é preciso doutorado em política para saber que a cabeça do ministro do Itamaraty é a menos cotada nesse pregão.
Não há nada de errado com a propositura de uma gestão conservadora no Brasil, respeitados os ritos legais. A alternância no poder de correntes ideológicas divergentes tende a fortalecer a democracia.
Mas o samba da base americana é daquele tipo de desencontro que põe em xeque a seriedade de qualquer pretensão programática.