Programa de Temer para 1ª infância não cumpre meta, mas é bem avaliado
O Programa Criança Feliz, uma das principais bandeiras sociais do governo Michel Temer (MDB), terminou a gestão longe de atingir a meta de 4 milhões de beneficiários, mas bem avaliado por especialistas, que ressaltam retornos elevados de investimentos na primeira infância.
Lançado em outubro de 2016 com um discurso da ex-primeira-dama,Marcela Temer, o projeto de visitação domiciliar cumpriu, dois anos depois, 11% de seu objetivo.
O programa se baseia na orientação de famílias vulneráveis sobre cuidados com saúde, alimentação e estímulos adequados.
São 440,2 mil as crianças de zero a seis anos e gestantes visitados no país como um todo, mas a variação entre os estados é grande. Há desde casos onde a implementação ainda não começou, como no Distrito Federal, a outros em que o objetivo foi ultrapassado, como Bahia e Piauí.
Os atendimentos estaduais atingidos constam de um livro que a Fundação Bernard van Leer, que apoia pesquisas e projetos focados na primeira infância —como o próprio Criança Feliz (PCF)—, acaba de lançar sobre as iniciativas da América Latina.
“A expansão do Criança Feliz foi muito mais devagar do que o esperado, mas, ao mesmo tempo, um recorde mundial. Em nível global, é a mais rápida que eu conheço”, diz o psicólogo venezuelano Leonardo Yánez, representante sênior da fundação na região.
Ele cita como exemplo de crescimento bem mais lento o Early Head Start, implementado em 1994 nos Estados Unidos que, até 2016, havia chegado a 147,5 mil beneficiários, contra um potencial de 2,6 milhões.
Segundo Yánez, a implementação do PCF foi complexa por envolver ações coordenadas nos três níveis de governo, a interação entre diferentes setores —como saúde e assistência social— e a contratação e formação de grandes equipes.
Além disso, dúvidas em relação à capacidade de sobrevivência do projeto com a troca de governo alimentaram resistência, freando um avanço mais rápido do projeto.
“Às vezes, há mudança de governo e um programa acaba. O município está com a equipe contratada, tudo montado e não tem recurso para pagar salário. Isso é muito comum”, diz Ely Harasawa, secretária nacional de Promoção do Desenvolvimento Humano do Ministério da Cidadania.
Ela conta ter recebido, durante a corrida eleitoral do ano passado, ligações de prefeitos perguntando se o programa poderia acabar com a transição política.
Segundo Ely, esse temor ajuda a explicar por que muitos municípios preferiram assumir uma meta menor do que a considerada viável.
No livro da fundação holandesa, o exemplo citado como o mais emblemático é a cidade de São Paulo, que poderia atender 300 mil crianças e gestantes, mas escolheu 5.400 beneficiários como meta inicial.
A expectativa é que, com Osmar Terra (MDB) no Ministério da Cidadania, pasta social de Jair Bolsonaro (PSL), a insegurança dos municípios se reduza. O deputado gaúcho comandou a área no governo Temer, quando idealizou o PCF, mas deixou o cargo para concorrer a uma vaga Câmara Federal.
O Criança Feliz não escapou dos cortes de verba na esteira da severa crise fiscal dos últimos anos. Segundo Ely, os R$ 377 milhões previstos para 2019 são insuficientes para expandir o programa, mas cobrem as parcerias firmadas até agora, já que o repasse aos municípios tem sido inferior ao previsto.
O gasto abaixo da meta se deve à dificuldade de alguns governos locais em cumprir as regras estabelecidas pelo programa, que começaram a ser flexibilizadas agora.
Um exemplo é o número mínimo de quatro visitas mensais que as famílias cadastradas precisam receber.
“Muitas vezes, ocorrem imprevistos que impedem a visita. A família se muda, a criança fica doente e vai ao médico, ocorre uma enchente”, diz Ely.
O PCF é financiado por recursos federais que são repassados aos municípios. Quando as metas são descumpridas, parte da verba não é transferida. Recentemente, o governo publicou uma portaria aliviando algumas restrições.
“Se o município atende duas vezes em vez de quatro, mas tem feito um grande esforço, vai receber um valor proporcional”, diz Ely.
Outra mudança se refere à expansão das metas. As cidades que atingirem 90% do objetivo pactuado poderão até dobrá-la, desde que dentro dos critérios exigidos.
Segundo Ely, 378 dos 1.131 municípios aptos a ampliar a meta solicitaram a expansão. Antes dessa mudança, as prefeituras que quisessem aumentar a cobertura precisavam usar recursos próprios. Agora, conseguirão manter o financiamento federal.
Isso não resolve, no entanto, todos os problemas. Há casos de municípios que se queixam que o valor do financiamento é baixo e insuficiente. Outros reclamam de não poderem incluir famílias vulneráveis que estejam fora do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada, exigência do programa.
“Há situações de duas casas vizinhas em que uma recebe o Bolsa Família ou o BPC e a outra não, às vezes por uma diferença de R$ 1”, diz Ely.
Um pedido recente do ministério para flexibilização dessa regra foi negado pelo Conselho Nacional de Assistência Social.
Pelos cálculos da pasta, a mudança tornaria elegíveis 333 cidades hoje excluídas do PCF, que cobre 2.663 dos 5.570 municípios do país.
INVESTIMENTO NA PRIMEIRA INFÂNCIA É ARMA CONTRA POBREZA
Pesquisas realizadas nos últimos anos indicam que iniciativas centradas na primeira infância —que vai de zero a seis anos— estão entre as armas mais eficazes contra a perpetuação da pobreza e da desigualdade de renda.
Em paralelo, cresce entre pesquisadores o consenso sobre o limite de ações como o Bolsa Família no combate ao problema. Esses são alguns dos pontos levantados por especialistas no livro “Da Ciência à Prática: Os programas de apoio ao desenvolvimento infantil na América Latina”.
Os projetos de transferência de renda, cuja condicionalidade é a frequência escolar, ainda são considerados cruciais para aliviar a miséria, mas nem sempre conseguem atacar suas causas estruturais.
A inclusão educacional não garante que as crianças atingirão níveis adequados de aprendizagem e desenvolverão habilidades socioemocionais, como autoestima e persistência, hoje consideradas fundamentais para o sucesso futuro no trabalho e na vida social.
Além de possíveis falhas na qualidade do ensino, isso ocorre porque os alunos carentes costumam iniciar a vida escolar já com grande defasagem em seu desenvolvimento cognitivo e emocional.
“Muitas famílias pobres não têm o conceito básico de que você precisa conversar com a criança, brincar, fazer jogos educativos. E esse se tornou um tipo de conduta comum entre as famílias da classe média”, diz o acadêmico brasileiro Rodrigo Pinto, professor da Universidade da Califórnia (Los Angeles).
O acadêmico brasileiro é coautor do americano James Heckman, ganhador do Nobel de Economia, em diversos trabalhos pioneiros sobre os ganhos de investimentos na primeira infância.
Esses estudos mostram que a forma mais eficaz de reduzir a desigualdade de oportunidades é atacá-la desde cedo, já na gestação. Durante os primeiros mil dias de vida, contados a partir da concepção, ocorre o período chamado de “máxima plasticidade cerebral”, quando os neurônios podem formar até 1 milhão de novas conexões por segundo.
Um cálculo de Heckman e sua equipe indica que cada US$ 1 investido no desenvolvimento infantil traz, no futuro, um retorno anual (descontada a inflação) de 8% a 10%, superior aos ganhos médios de 5% das aplicações no mercado de capitais.
A conta se baseia no acompanhamento de indivíduos de famílias pobres que participaram de programas específicos na infância e de outros, com características semelhantes, que ficaram de fora dos mesmos. Na vida adulta, os beneficiados recebem salários mais altos, se envolvem menos com crimes e dependem pouco de assistência social.
É com base em evidências desse tipo que o número de programas voltados para orientações a gestantes e demais cuidadores sobre alimentação, saúde e formas de estimular os bebês têm se expandido. Na América Latina, além do Criança Feliz, surgiram ações similares no Chile, em 2007, e na Colômbia, em 2016, indica o livro da fundação holandesa Bernard van Leer.
“O que funciona é fortalecer o cuidador e instruir a comunidade onde a criança cresce. Além disso, a visitação domiciliar torna as famílias mais vulneráveis visíveis à política pública”, diz Leonardo Yánez.
Pinto ressalta que, no Brasil, é comum a adoção de políticas que obtiveram bons resultados nos Estados Unidos, mas que nem sempre isso funciona, porque alguns desses projetos têm custos inviáveis para um país de renda média. É o caso, diz ele, de garantir creches de altíssima qualidade para todas as crianças.
“Programas como o Criança Feliz e o Primeira Infância Melhor [PIM, do Rio Grande do Sul] têm sido muito bons para o Brasil porque são viáveis e usam estratégias que têm se mostrado eficazes”.