No surrealismo nosso de cada dia, PT oficializa o nome de Haddad como candidato; ex-prefeito passa, agora, a ser também alvo de adversários
Acabou a primeira fase de “Surrealismo Jurídico Brasileiro”. Poderia ser um daqueles seriados da “Amazon Prime Video” ou do Netflix destinados a não acabar nunca, não é?
A cúpula do PT finalmente se reuniu e decidiu que o candidato do partido à Presidência da República é Fernando Haddad. Afinal, como aqui se disse desde que o debate existe, Lula não seria candidato porque inelegível segundo a Lei da Ficha Limpa. O partido ainda entrou com um pedido de medida cautelar no Supremo e com Recurso Extraordinário. O primeiro buscava garantir uma liminar para, quando menos, dilatar até o dia 17 o prazo para substituir o nome. Enquanto escrevo, Celso de Mello ainda não se pronunciou. Vai negar. Já o Recurso Extraordinário contesta a decisão do TSE em favor da inelegibilidade. O julgamento será sobre o nada porque Lula já não é mais candidato.
A coisa é um pastelão meio tragicômico. O PT sempre soube que o Judiciário brasileiro não iria se submeter ao ridículo garantindo a elegibilidade a Lula depois de tê-lo condenado sem provas e de tê-lo encarcerado ao arrepio da Constituição — ele e outros. Mesmo assim resolveu levar a coisa ao limite. Conseguiu parte do queria. Na sua dita “resistência”, o petista chegou a ter perto de 40% dos votos e mais de 50% do eleitorado no segundo turno. Mas esperou até o limite para fazer Haddad candidato. E aqui entra a parte da torta na cara ou do esguicho d’água no rosto típico daquela roupa dos palhaços de picadeiro. Muitos não entenderam essa parte. Fazer o quê? O meu trabalho é explicar e tornar pública a explicação, mesmo para quem faz questão de não entender.
Enquanto não se tem o trânsito em julgado da inelegibilidade declarada pelo TSE, o que só se dará quando o STF julgar o Recurso Extraordinário, a questão estará “sub judice”, e o Artigo 16-A da Lei Eleitoral, a 9.504, é explícito: o candidato tem direito a todos os atos de campanha enquanto se põe um ponto final na história. Lá está escrito:
“Art. 16-A. O candidato cujo registro esteja sub judice poderá efetuar todos os atos relativos à campanha eleitoral, inclusive utilizar o horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão e ter seu nome mantido na urna eletrônica enquanto estiver sob essa condição, ficando a validade dos votos a ele atribuídos condicionada ao deferimento de seu registro por instância superior.”
Para quem não entendeu o explícito: enquanto não se esgotasse a questão no STF, Lula teria direito, inclusive, a ter seu nome registrado na urna eletrônica. Se a inelegibilidade fosse sacramentada mesmo depois da eleição, os votos dados a ele seriam declarados inválidos.
Mas, sob o pretexto de ser durão e dando de ombros para a lei, como de costume, Roberto Barroso decidiu declarar o “trânsito em julgado” da decisão ainda no TSE. Ora, se é assim, por que existe o Recurso Extraordinário à Corte Constitucional? Quer dizer que o STF vai ainda decidir sobre o que já está decidido? O Supremo virou agora um colegiado de despachos inúteis?
O que os bobinhos e as bobinhas não perceberam é que Barroso, ainda que não seja por querer, deu uma ajudazinha ao PT. A sua decisão forçou o partido a antecipar a passagem do bastão para Haddad, que passa a ser, a partir de hoje, o candidato oficial do PT, e livrou o partido do risco de levar adiante uma candidatura que seria, não importa o tempo, declarada inelegível.
A extrema-direita como um todo e os bolsonaristas em particular aplaudiram seu novo ídolo. Não se deram conta de que o melhor para eles é que Barroso simplesmente cumprisse a lei. Se o tivesse feito, haveria forte resistência entre os fanáticos d PT em abrir mão da candidatura de Lula. O risco de levarem a loucura de sua candidatura até o fim seria grande. Quando menos, a substituição tardaria ainda mais, o que seria, obviamente, ruim para o partido.
Ocorre que estamos ficando viciados em desrespeitar a lei. Foi o que Barroso fez mais uma vez. E, desta feita, ajudando o PT e os petistas.
Nem o mundo nem a política são planos. Com alguma frequência, as coisas não são como parecem.
No ato do comando do PT que oficializou a candidatura de Haddad, o novo titular da chapa leu uma carta de Lula. Nela, ele aponta o que considera as injustiças e procedimentos de exceção de que seria vítima. Disse estar indignado, mas afirmou que Haddad agora é o candidato que pode dar continuidade ao projeto. Ainda que pareça incrível, ainda que pareça estupefaciente, algumas alas do partido, como a liderada por Gleisi Hoffmann, ensaiavam alguma resistência.
Ocorre que o ato ilegal proposto por Barroso no TSE e endossado por mais cinco está em plena vigência: se o partido não substituísse até esta terça-feira o seu candidato, ficaria impedido de registrar um novo nome. A menos que outro fosse o entendimento do STF — e, meus caros, podem crer, não seria. A turma de Gleisi, em suma, queria pagar para ver. A consequência provável seria ficar sem candidato.
No horário eleitoral petista, Haddad já não é mais tratado como vice. Mesmo sem essa passagem oficial de bastão, aponta o Datafolha, ele teve um crescimento significativo na pesquisa: há três semanas, tinha 4% das intenções de voto; agora, 9%. Já são 30% os eleitores de Lula que se dizem dispostos a votar nele. O partido dá, assim, início à corrida para operar a transferência em massa de votos antes destinados ao ex-presidente. É uma operação invulgar. Até porque, a partir de agora, Haddad passa a ser alvo dos adversários, inclusive do concorrente à esquerda: Ciro Gomes.
A sorte está lançada. REINALDO AZEVEDO