Com casa, mas sem transporte e infraestrutura
RIO, BRASÍLIA E SALVADOR - “Daqui não saio, daqui ninguém me tira”. A remoção de favelas já foi marchinha de carnaval nos anos 1950. Mas continua atual. O Minha Casa Minha Vida (MCMV), criado em 2009, deu acesso à moradia, mas, muitas vezes, repetiu a fórmula de construção de conjuntos habitacionais em locais distantes e sem infraestrutura, alertam especialistas. Como os imóveis destinados à população mais pobre são construídos em terrenos doados pelas prefeituras, o destino, em geral, são os limites do município, áreas muitas vezes sem uma rede de transporte adequada. Para a secretária nacional de Habitação do Ministério das Cidades, Inês Magalhães, o desenho é o melhor, a solução possível, dado que é preciso celeridade para socorrer as famílias em locais de risco. Ela argumenta que houve avanços, mas admite que é preciso exigir mais dos municípios em questão de urbanismo, geração de emprego, saúde e educação. E prevê que esses problemas podem ser diluídos com o desenvolvimento das cidades no futuro:
— São questões que, daqui a dois anos, podem ser solucionadas.
A coordenadora de projetos de construção do Ibre/FGV, Ana Maria Castelo, pondera que o programa tem tido papel importante para aumentar o acesso à moradia, mas reconhece que “sozinho não dá conta de tudo”:
— A grande questão é que o custo do terreno é muito alto nos centros urbanos, justamente onde mais falta moradia. O Minha Casa Minha Vida tem sido fundamental para aumentar a habitação, mas realmente precisa ser aperfeiçoado. As parcerias com estados e municípios são muito importantes principalmente para pensar a oferta de infraestrutura. Junto com moradia, é preciso ter infraestrutura de saneamento e energia, mas também de escolas, hospitais e transportes.
SOLUÇÃO DE HOJE É PROBLEMA DE AMANHÃ
Já o professor da PUC-Rio Rafael Soares Gonçalves, historiador e advogado especialista em legislação urbanística, diz que o governo federal tem se concentrado em áreas muito distantes do centro das cidades, com pouca ou nenhuma infraestrutura.
— É verdade que o Minha Casa Minha Vida traz uma escala pouco antes vista na produção habitacional, mas acho que a solução de hoje é o problema de amanhã. Os moradores têm acesso à moradia, mas não à cidade — observa.
O Rio já viveu isso com a remoção de favelas décadas atrás, quando surgiriam os conjuntos habitacionais. Enéas Cerqueira da Silva passou 40 de seus 45 anos na Cidade de Deus. E lembra do isolamento nos primeiros anos:
— Muita gente penou, quem tinha criação de porco no morro deixou pra trás. A gente ficou um tempão comendo banana, jamelão e chá de capim-limão, que dava por todo o lado.
A distância e a falta de infraestrutura são as principais justificativas de quem opta por ficar em favelas ou áreas de risco. Em Salvador, capital com o maior número de favelas do país, cresce a resistência a programas habitacionais. Na antiga área do porto, em frente à Praça Castro Alves, empreendimentos sofisticados dividem a paisagem com casarões coloniais invadidos por sem-teto. E parte não quer sair dali para projetos do MCMV.
SEM ESCOLA PERTO E COM SAUDADE DO ALUGUEL
Quando foi contemplada com um imóvel do MCMV, Naiara Santos só pensava que finalmente deixaria de pagar os R$ 300 de aluguel e teria uma casa própria. Abandonou Salvador e mudou-se com o marido e a filha de dois anos para um condomínio do programa na vizinha Lauro de Freitas. Hoje, tem saudade dos tempos do aluguel. Afinal, tinha escola perto, o hospital era bom e era mais rápido chegar ao trabalho. Desde a mudança, não conseguiu arrumar emprego. Vive de bicos. Atualmente, faz sacolas de papelão artesanais:
— A gente é discriminado na hora de contratar quando fala onde mora. O patrão já sabe que vai ter de pagar duas passagens para ir e mais duas para voltar.
UMA HORA DE BICICLETA PARA O TRABALHO
“Aqui, no início não era ruim, era horrível”, diz Fernando Luzia Pereira, o Nando, de 70 anos, removido da favela Macedo Sobrinho, do Humaitá, em 1969. Faltava tudo na Cidade de Deus: escola, posto de saúde, transporte e emprego. “Tinha tanto mosquito aqui que a gente passava querosene nas crianças”, lembra. A única linha de ônibus era o 731:
— Trabalhava na rua Mem de Sá e ia de bicicleta. Era uma hora de viagem.Outro drama: o apartamento de um quarto era inviável. Ele, que chegou no local com um filho, teve mais quatro. A solução foi expandir, tijolo a tijolo. Hoje, sua casa tem três quartos luxuosos, ar-condicionado em todos os cômodos, móveis novos e revestimento de primeira linha.
por Gabriela Valente / Henrique Gomes Batista / Lucianne Carneiro / O GLOBO