Número de presos que excedem capacidade das cadeias é maior que população de quatro capitais
RIO, SÃO PAULO, MANAUS E ALTAMIRA — As cenas de barbárie que foi obrigado a testemunhar passam agora como filme na cabeça de João, preso do Centro de Recuperação Regional de Altamira, no interior do Pará, onde 57 internos foram executados em julho passado. Assim que os gritos de “a cadeia estourou” ecoaram pelas galerias, o que se viu foram homens armados com facões alcançando os internos de outra facção, cortando gargantas e arrancando cabeças em meio ao terror que se instalou. “Quem não morreu na faca, morreu no fogo”, diz.
A guerra diária que João enfrenta é encontrar um pedaço de chão para dormir, comida não estragada e até água para beber. Até explodir a rebelião de Altamira, em 29 de julho, 343 presos brigavam entre si pelo espaço construído para receber só 163. Não eram os únicos nessa situação. No Brasil, 408.153 presos excedem a capacidade física e estrutural das cerca de 2.608 unidades prisionais, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. O número é maior do que somadas as populações das capitais dos estados do Acre, Espírito Santo, Amapá e Tocantins.
Trata-se de uma questão de matemática básica. Terceiro país que mais encarcera no mundo, o Brasil prende muito mais do que constrói presídios.
Os dados mais recentes mostram que 831 mil presos disputam entre si as 423 mil vagas existentes em cadeias e presídios de todo o país. Significa que, no espaço físico que deveria ser ocupado por um, há quase dois detentos sobrepostos. E a previsão é só piorar: a cada hora, outros 18 novos detentos ingressam no sistema. A superlotação, a precariedade e a falta de controle do estado sobre facções criminosas transformam os presídios brasileiros em caldeirões fervendo, perto de estourar.
“A gente não tem nem a prisão perpétua, nem a pena de morte, então a gente sabe que um dia o preso retorna ao convívio social. E de que maneira nós queremos que ele retorne ao nosso convívio?”
Para o defensor-público geral do Estado do Amazonas, Rafael Barbosa, a falta de condições mínimas de higiene, alimentação e saúde resultam num processo de desumanização dos detentos. Barbosa viu de perto o problema: em maio, rebeliões em presídios de Manau deixaram 55 mortos:
— A superlotação gera, querendo ou não, uma espécie de sentimento animalesco. Você perde sua dignidade, você se vê ali como uma coisa, mais que coisificado, às vezes até transformado em um bicho. Isso obviamente te tira o padrão de moralidade. Então o preso faz coisas que uma pessoa que está aqui fora acha repugnante. Mas, para quem vive a situação dele, quem come comida estragada, quem tem que ter rodízio para dormir porque na cela você não consegue espaço para dormir, os padrões passam a ser outros. A barbárie desses massacres acabam se justificam por esses motivos — diz Barbosa.
Nos presídios superlotados, atividades básicas do dia a dia — como tomar banho, escovar os dentes, lavar roupas, dormir, relacionar-se com os cônjuges e até alongar partes do corpo — ganham complexidade extra.
—Lembro de dormir em pé, porque não tinha jeito, ou então pendurado na grade. No momento de dormir, você revezava, deixando um em pé e o outro deitado. Um dormia pro lado e o outro pro outro. Se você saísse daquela posição, quando você levantava os corpos fechavam aquele espaço ali, e você não tinha mais como voltar — recorda o ex-detento Christiano Silva, que cumpriu pena em unidades do Complexo de Gericinó, no Rio de Janeiro, estado onde há hoje 53 mil presos para 28 mil vagas.
— A mente humana pensa que não vair dar conta de suportar. Onde havia cem pessoas, a capacidade era para 20, no máximo 25 — testemunha o ex-detento João Luís Silva, fundador da ONG Eu sou Eu – O Reflexo da Vida na Prisão.
No Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, onde em maio 15 morreram numa rebelião, não há uma sala reservada e própria para a visita íntima. Ana, mulher de um dos detentos de lá, conta que a visita, um direito previsto na Lei de Execução Penal, ocorre dentro das próprias celas e com vários casais ao menos tempo.
— Meu marido fica feliz quando vou, a gente tira nossa íntima ... Não é do jeito da nossa casa. É meio tímida, meio constrangedor. Acontece dentro das celas. Quem não tem visita, vai para a quadra. Quem tem, fica com a mulher na sua jega , que é como se fosse beliche. Eles passam um pano para fechar, como se fosse uma cortininha separando. Todo mundo faz a visita ao mesmo tempo — diz Ana.
A promotora Christianne Corrêa, da Vara de Execuções Penais do Amazonas, explica que outro efeito da superpopulação das cadeias é o empoderamento de alguns presos diante da massa. Na esteira da ausência do Estado, nascem as lideranças e, por consequencia, as facções criminosas que controlam os presídios.
— Por mais que o Estado determine o que pode ter nas celas, por mais que dite regras, num ambiente em que se tem quatro camas você não vai conseguir colocar 12 colchões. Alguém vai dormir no colchão do outro. Alguém vai dormir mal acomodado. E nunca vai ser aquele que exerce posição de liderança. Essa é uma das mazelas da superpopulação, talvez a mais sentida, com reflexos mais negativos. Que gera temor em relação aos outros, de serem subjugados — diz Christianne Corrêa.
Bastidores: Um trabalho de três meses sobre os presídios brasileiros
Para a sociedade, o resultado das cadeias superlotadas é que esses presos dificilmente retornarão ao convívio social ressocializados. Autoridades e especialistas alertam para o risco de recrudescimento da violência. E advertem: o que acontece nas cadeias reflete fora delas.
— A superlotação não permite que o estado trate do cumprimento da pena do preso de uma maneira individualizada, fazendo com que haja um acompanhamento psicológico na pena dele, que haja um acompanhamento de um assistente social, para que se tente resgatar laços familiares, incrementar nele laços religiosos. Isso ajuda muito também na recuperação do ser humano — explica o juiz Rafael Estrela, da VEP do Rio de Janeiro.
Segundo o magistrado, o que acontece no sistema prisional hoje tem efeito colateral contrário à ressocialização prevista na lei:
— A gente não tem nem a prisão perpétua, nem a pena de morte, então a gente sabe que um dia o preso retorna ao convívio social. E de que maneira nós queremos que ele retorne ao nosso convívio? Se é de uma maneira mais violenta do que ele entrou, a gente está no caminho certo — afirma Estrela.
Para o subcoordenador criminal da Defensoria Pública do Rio, Ricardo André Souza, a superpopulação transformou os presídios e cadeias do país em espaço "permanente de ilegalidade":
— A lei de execuções penais, por exemplo, não diz que se deva fazer distinção dos presos por facção ou por alguma coisa nesse sentido. A lei diz que os presos têm que ser divididos de acordo com o seu perfil que pode ser vetorizado pelo tipo de delito que ele cometeu, que está sendo acusado, se é preso provisório, se é preso condenado definitivamente. Mas essa é a primeira lei a ser descumprida quando a pessoa entra no sistema carcerário.
São múltiplas as causas que levaram o Brasil ao superencarceramento e à superlotação das cadeias. Uma delas, dizem especialistas no tema, é a falta de uma política social consistente, que prioriza educação e saúde de qualidade e combate à desigualdade. Outra é a adoção de uma política de guerra às drogas que, em geral, prende o pequeno traficante e deixa solto o dono do ilícito.
— A maior parte das nossas prisões hoje, em torno de 70%, é por entorpecente. Você sobrecarrega demais o sistema com um crime que, em tese, não é violento. Ao chegarem lá, essas pessoas vão ser cooptadas por facções criminosas. Precisamos investir em saúde pública e enfrentar o problema da droga com outros olhos — diz Ronnie Frank Stone, juiz da Vara de Execuções Penais (VEP) do Amazonas.
A Justiça também já não consegue responder ao aumento da demanda de processos criminais com réus presos, que veio a reboque da política de encarceramento. O contingente de 338.723 presos provisórios em 2019 — 47,5% do total de presos — é maior do que a população de 98,5% dos municípios do país (5.490 municípios). Em 11 estados, mais da metade dos presos são provisórios. Sergipe lidera esse ranking (71,2%), o Rio de Janeira fica em segundo (67,1%). O Amazonas é o sétimo da lista (52%). Lembrando: a média brasileira é de 47,5%.
— O sistema penitenciário no Brasil é um grande funil que tem uma entrada gigantesca e uma saída diminuta. Nós prendemos uma quantidade enorme de pessoas que, ao fim do processo, vão ser julgadas inocentes, ou vão receber uma pena diferente da pena de prisão, então você tem milhares de pessoas que estão presas injustamente — avalia a socióloga Julita Lemgruber.
Já o secretário de Administração Penitenciária de São Paulo, estado com a maior taxa de prisões do país — são 530 por 100 mil habitantes, enquanto a média nacional é de 330 por 100 mil habitantes —, o coronel da PM Nivaldo Cesar Restivo discorda:
— Discordo de quem afirma que São Paulo ou o Brasil prende mal. O Brasil prende quem comete crime. Praticou um fato atípico, antijurídico, culpável está sujeito a ser sancionado pelo poder Judiciário. Aí ele vai para uma unidade prisional.