Jornalismo, importância do factual
31 de maio de 2021 | 03h00
Jornalismo é a busca do essencial, sem adereços, adjetivos ou adornos. O jornalismo transformador é substantivo. Sua força não está na militância, mas no vigor persuasivo da verdade factual e na integridade e no equilíbrio da sua opinião. A credibilidade não é fruto de um momento. É o somatório de uma longa e transparente coerência.
A sociedade está cansada do clima de radicalização que tomou conta da agenda pública. Sobra opinião e falta informação. Os leitores estão perdidos num cipoal de afirmações categóricas e pouco fundamentadas, declarações de “especialistas” e uma overdose de colunismo militante. Um denominador comum marca o achismo que invadiu o espaço outrora destinado à informação qualificada: a politização.
Em tempos de ansiedade digital, a reinvenção do jornalismo reclama revisitar alguns valores essenciais: amor à verdade, paixão pela liberdade e imensa capacidade de sonhar e de inovar. Eles resumem boa parte da nossa missão e do fascínio do nosso ofício. Hoje, mais que nunca, numa sociedade polarizada e intolerante, precisam ser resgatados e promovidos.
A democracia reclama um jornalismo vigoroso e independente. Comprometido com a verdade possível. O jornalismo de qualidade exige cobrir os fatos. Não as nossas percepções subjetivas. Analisar e explicar a realidade. Não as nossas preferências, as simpatias que absolvem ou as antipatias que condenam. Isso faz toda a diferença e é serviço à sociedade.
O grande equívoco da imprensa é deixar de lado a informação e assumir, mesmo com a melhor das intenções, certa politização das coberturas. Os desvios não se combatem com o enviesamento informativo, mas com a força objetiva dos fatos e de uma apuração bem conduzida.
As redes sociais e o jornalismo cidadão têm contribuído de forma singular para o processo comunicativo e propiciado novas formas de participação, de construção da esfera pública, de mobilização da sociedade. Suscitam debates, criam polêmicas (algumas com forte radicalização) e exercem pressão. Mas as notícias que realmente importam, isto é, as que são capazes de alterar os rumos de um país, são fruto não de boatos ou meias-verdades disseminadas de forma irresponsável ou ingênua, mas resultam de um trabalho investigativo feito dentro de padrões de qualidade, algo que deve estar na essência dos bons jornais.
Sem jornais a democracia não funciona. O jornalismo não é antinada. Mas também não é neutro. É um espaço de contraponto. Seu compromisso não está vinculado aos ventos passageiros da política e dos partidarismos. Sua agenda é, ou deveria ser, determinada por valores perenes: liberdade, dignidade humana, respeito às minorias, promoção da livre-iniciativa, abertura ao contraditório. O jornalismo sustenta a democracia não com engajamentos espúrios, mas com a força informativa da reportagem e com o farol de uma opinião firme, mas equilibrada e magnânima. A reportagem é, sem dúvida, o coração da mídia.
Jornalismo independente reclama liberdade. Não temos dono. Nosso compromisso é com a verdade e com o leitor. Mas a reinvenção do jornalismo passa por uma imensa capacidade de sonhar. É preciso vencer comportamentos burocráticos, reconhecer a nossa crise e tratar de virar o jogo. O fenômeno da desintermediação dos meios tradicionais teve precedentes que poderiam ter sido evitados, não fosse o distanciamento da imprensa dos seus leitores, sua dificuldade de entender o alcance das novas formas de consumo digital da informação e, em alguns casos, sua falta de isenção informativa e certa dose de intolerância.
Os leitores, com razão, manifestam cansaço com o tom sombrio das nossas coberturas. É possível denunciar mazelas com um olhar propositivo. Em vez de ficarmos reféns do diz que diz, do blablablá inconsistente do teatro político, das intrigas e da espuma que brota nos corredores de Brasília, que não são rigorosamente notícia, mergulhemos de cabeça em pautas que, de fato, ajudem a construir um País que não pode continuar olhando pelo retrovisor.
Não podemos viver de costas para a sociedade real. Isso não significa ficar refém do pensamento da maioria. Mas o jornalismo, observador atento do cotidiano, não pode desconhecer e, mais que isso, confrontar permanentemente o sentir das suas audiências. A verdade, limpa e pura, é que frequentemente a população tem valores diferentes dos nossos.
A violência, a corrupção, a incompetência e a mentira estão aí. E devem ser denunciadas. Não se trata, por óbvio, de esconder a realidade. Mas também é preciso dar o outro lado, o lado do bem. A boa notícia também é informação. A análise objetiva e profunda, sem viés ideológico, é uma demanda dos leitores.
A internet, o Facebook, o Twitter e todas as ferramentas que as tecnologias digitais despejam a cada momento sobre o universo das comunicações transformaram a política e mudaram o jornalismo. Queiramos ou não. Precisamos fazer a autocrítica sobre o nosso modo de operar. Não bastam medidas paliativas. É hora de dinamitar antigos processos e modelos mentais. A crise é grave. Mas a oportunidade pode ser imensa.
JORNALISTA. E-MAIL: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
Guedes diz a presidente do Congresso que Bolsonaro não quer a reforma administrativa
31 de maio de 2021 | 17h03
Atualizado 31 de maio de 2021 | 19h11
BRASÍLIA - Apesar de, publicamente, estar em “campanha” pela aprovação da reforma administrativa, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que o presidente Jair Bolsonaro não quer a aprovação da proposta da reforma administrativa, que muda as regras para o funcionalismo público brasileiro, e não trabalhará por ela.
Segundo apurou o Estadão/Broadcast, Guedes confidenciou a contrariedade de Bolsonaro a Pacheco em encontro na semana passada, o que motivou o presidente do Senado a questionar ontem, publicamente, o comprometimento do governo com a reforma.
O texto é uma das principais “reformas estruturantes” defendidas por Guedes – que criou polêmica no início do ano passado ao comparar servidores públicos a “parasitas”. Também é acompanhada com lupa pelo mercado, que vê nas mudanças uma importante forma de reduzir o tamanho do Estado e o impacto do funcionalismo nas contas públicas.
Após o Broadcast – serviço em tempo real do Grupo Estado – publicar a conversa reservada entre Guedes e Pacheco nesta segunda-feira, os contratos baseados em juros futuros subiram, o que mostra a expectativa de piora no cenário geral pelo mercado.
A avaliação entre lideranças políticas é de que, um ano antes das eleições presidenciais, a defesa da reforma administrativa por Bolsonaro ficará “só no discurso” e que, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva crescendo nas pesquisas eleitorais, “já estamos no segundo turno” das eleições presidenciais de 2022.
Em evento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) nesta segunda-feira, 31, Pacheco disse que “há compromisso absoluto” do Legislativo com o andamento da proposta, porém demonstrou preocupação com a possibilidade de esvaziamento do texto. Pacheco reclamou especificamente do Palácio do Planalto, e deixando a Economia de fora.
“Há o compromisso do Poder Executivo com a Reforma Administrativa? Esse é um questionamento que precisamos fazer e ter clareza nessa discussão junto à Casa Civil, à Secretaria de Governo e à própria Presidência da República: Se há vontade de fazer uma reforma administrativa em um ano pré-eleitoral ou não”, afirmou. “Para que não tenhamos uma concentração de energia que será esvaziada em razão de uma iniciativa do governo para não votar. Quero crer que isso não acontecerá, mas é um diálogo que precisamos ter com o governo federal”, destacou Pacheco.
A reforma administrativa enviada pelo governo ao Congresso traz mudanças importantes para novos servidores públicos, como o fim da estabilidade para a maioria das carreiras e a criação de diferentes tipos de contrato de trabalho. O texto enfrenta grande resistência entre o funcionalismo que tem se organizado e atuado no Legislativo contra a proposta.
O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados na semana passada e aguarda a criação de uma comissão especial na Casa para continuar a tramitação.
Entre parlamentares, porém, a visão é de que se trata de mais uma situação em que o presidente Bolsonaro faz Guedes acreditar que tem seu apoio, mas trabalha nos bastidores contra o que o ministro defende.
Foi o que ocorreu na reforma da Previdência, quando Bolsonaro autorizou aliados a votar contra pontos da proposta. Mais recentemente, o presidente também liderou um movimento para desidratar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do auxílio emergencial e retirar policiais do congelamento de salários previsto. Contra a equipe econômica, Bolsonaro também patrocinou a tentativa de retirada do Bolsa Família do teto de gastos, mas recuou diante da reação negativa do mercado.
A senadora Kátia Abreu, vice-presidente da Frente Parlamentar pela Reforma Administrativa, também disse ontem que "alguns setores do governo estão contra a reforma administrativa" e, diferentemente de Pacheco, reclamou de Guedes.
“Vejo Paulo Guedes, que deveria ser maior interessado, lutando muito pouco por essa reforma. Talvez o presidente (Jair Bolsonaro) esteja preocupado em desagradar esse setor”, afirmou a senadora, durante audiência pública da comissão da covid-19 no Senado.
Em público, Guedes continua em defesa das mudanças. Ainda ontem, em evento com investidores internacionais, o ministro disse que a reforma administrativa, assim como a tributária, deve avançar neste ano. “Vamos surpreender o mundo mais uma vez, pois o Congresso brasileiro é reformista”, disse.
Coube ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), colocar panos quentes na situação. “Acredito na reforma administrativa e acredito no apoio do governo à reforma administrativa. Foi oriunda dele. Essa versão, veiculada por alguns meios, de que o governo federal e o poder Executivo não apoiarão a reforma administrativa é um contrassenso", afirmou, no evento da CNI.
Procurado, Pacheco não comentou a conversa reservada com Guedes. O ministério da Economia não respondeu os questionamentos da reportagem sobre o assunto.
Proposta
A reforma administrativa propõe uma série de mudanças nas regras do funcionalismo público dos três Poderes, nas esferas federal, estadual e municipal. Entre outros pontos, o projeto acaba com a estabilidade de parte dos futuros servidores - ela passará a ser garantida somente para os servidores das chamadas carreiras típicas de Estado, como diplomatas e auditores da Receita Federal.
Após oito meses da sua chegada ao Congresso, a proposta de reforma administrativa foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, na última terça-feira, 25, por 39 votos favoráveis e 26 contrários. Entre parlamentares, porém, a visão é a de que se trata de mais uma daquelas situações em que o presidente Bolsonaro faz Guedes acreditar que tem seu apoio, mas trabalha nos bastidores contra o que Guedes defende.
Na votação, o texto sofreu três mudanças. O relator, Darci de Matos (PSD-SC), excluiu alguns conceitos sobre princípios da administração pública, como subsidiariedade; barrou a extinção de autarquias por decreto e liberou ocupantes de cargos típicos do Estado a terem outras atividades remuneradas.
Essa foi a primeira fase de um longo caminho que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Executivo ainda terá de percorrer antes de se tornar lei. O texto segue agora para uma comissão especial, ainda a ser criada, que terá o prazo de 40 sessões para a análise. O presidente desse colegiado deve ser o deputado Fernando Monteiro (PP-PE) e o relator, Arthur Maia (DEM-BA).
Depois, precisa ser aprovada em dois turnos pelo plenário da Casa, antes de ir ao Senado. Como se trata de uma alteração na Constituição, o texto precisa do voto favorável de, pelo menos, três quintos dos parlamentares de cada Casa, isto é, 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores, em dois turnos de votação. / Colaboraram Idiana Tomazelli e Célia Froufe
Chuva no Ceará fica mais de 10% abaixo da média na quadra chuvosa; nível dos açudes é de alerta
A quadra chuvosa deste ano – período correspondido entre os meses de fevereiro a maio – teve precipitações abaixo da média, no Ceará. Segundo dados da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), choveu o acumulado de 533.7 milímetros. Os dados são parciais e podem sofrer atualização. O volume é 11,2% menor que a normal climatológica para o período (600.7 mm).
Nesta última década, apenas em três anos a quadra chuvosa teve pluviometria acima da média: 2020 (728.6 mm), 2019 (671.9 mm) e 2011 (652.5 mm). Neste intervalo, o ano com menor volume de chuva, ainda conforme a Funceme, foi 2016 (317 mm).
Apesar de o volume de chuva ser inferior à normal climatológica para o quadrimestre (600.7 mm), o acumulado está na margem que a Funceme considera ser "em torno da média". Segundo o órgão, volumes superiores a 695.8 milímetros são considerados “acima da média”.
Já quando o acumulado pluviométrico fica entre 505.6 mm e 695.8 mm, o quadrimestre pode ser analisado como “em torno da média”. Quando o observado é menor que 505.6 mm, considera-se que a quadra chuvosa foi “abaixo da média”. Diário do Nordeste entrou em contato com a Funceme para esclarecer a diferença entre média absoluta (600.7) e intervalo (505.6 mm a 695.8 mm) da quadra chuvosa, no entanto, o órgão disse que essa e outras questões serão abordadas na coletiva de imprensa a ser realizada na próxima quarta-feira (2).
Novidade nas ruas - FOLHA DE SP
Os protestos contra o presidente Jair Bolsonaro neste sábado (29) são uma bem-vinda lufada de ar na atmosfera política brasileira.
Após quase um ano de domínio exclusivo das ruas por alguns parcos, mas barulhentos, manifestantes bolsonaristas, milhares de opositores se aventuraram no asfalto de diversas capitais.
Havia uma clara preocupação dos organizadores de diferenciação, com o estímulo ao distanciamento social possível e ao uso de máscaras —em contraste com as irresponsáveis aglomerações estimuladas pelo presidente.
Isso dito, houve cenas condenáveis do ponto de vista sanitário, além dos deploráveis confrontos envolvendo forças policiais, como o ocorrido em Recife.
Ao mesmo tempo em que se mostram como novidade no panorama, contudo, os atos não encobrem as limitações da agenda da esquerda que se rearranja após ter sido trucidada nas urnas a partir de 2016.
Animado com o reaparecimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na liderança de pesquisas eleitorais, o campo tem desafios mais complexos à frente.
Se a rejeição ao petista aferida pelo Datafolha não é tão grande quanto a do atual presidente (36% ante 54%), é importante entender as circunstâncias da fotografia.
Bolsonaro está no seu pior momento, com a CPI da Covid recontando a tragédia criminosa de sua gestão, efeitos sociais das fragilidades econômicas em curso e até uma ameaça de crise energética.
Mas o que a esquerda, a começar pelo PT, oferece além da adversativa? Se o que Lula tem a ofertar se reflete na embolorada crítica às privatizações, como fez no caso da Eletrobras, as perspectivas de um eventual novo governo petista são decepcionantes.
A crítica nas ruas do sábado a Bolsonaro é justa e até tardia. Porém seu potencial de mobilização, até pelos sentimentos contraditórios despertados em pessoas que se preocupam com os protocolos sanitários, ainda não é claro.
Além disso, convém lembrar que o antipetismo segue sendo uma força orgânica em centros urbanos, o que delimita o escopo das bandeiras que se veem agitadas.
Furar essa bolha, para usar um clichê, é a tarefa colocada à esquerda. Apresentar propostas concretas e viáveis, que vão além do embate ideológico, é um imperativo para qualquer força política que queira fazer frente a Bolsonaro em 2022.
Seja nas ruas, seja na arena parlamentar, a oposição à esquerda ainda carece de consistência programática. Mas será erro descartar esse movimento inicial como algo sem potencial de frutificar, dada a anomia em que estamos inseridos.
O 29M foi grande e importante: e agora, o que esperar?
Muitas dúvidas, de diversas naturezas, cercaram a organização dos atos deste 29 de maio, convocados por múltiplas organizações, diversos partidos e diferentes correntes políticas, pelo impeachment de Jair Bolsonaro e exigindo responsabilização do presidente e de seu governo pela decisão de não comprar vacinas contra o novo coronavírus, o que agravou a pandemia de covid-19 no Brasil.
Já na segunda-feira passada escrevi a esse respeito, apresentando os dilemas colocados para os cientistas, para os políticos que até então vinham apontando o negacionismo de Bolsonaro e as aglomerações por ele incentivadas, e para a imprensa. Mas a oposição acabou levando adiante a organização dos atos, fazendo questão de marcar importantes distinções com os eventos bolsonaristas, principalmente no incentivo ao uso de máscaras de alta proteção, como as PFF2, e a distribuição gratuita das mesmas em todas as cidades onde as manifestações ocorreram.
Leia também: Dilema na oposição: como reagir a atos de Bolsonaro sem agravar a pandemia?
Os debates acerca da oportunidade de realização de grandes atos, mesmo com esses cuidados, quando se avizinha uma terceira onda, vão continuar ao longo dos próximos dias. Jornalisticamente, há muitos enfoques a adotar nessa cobertura, que precisa ser feita.
Mas não é possível ignorar que as manifestações ocorreram e, ao menos na praça mais emblemática de atos políticos nas últimas décadas, a avenida Paulista, no coração de São Paulo, ela foi robusta, não ficou restrita aos partidos de esquerda e mostrou a existência de uma oposição vigorosa, disposta a desafiar até as recomendações sanitárias que continuam em vigor, para expressar sua indignação e o sentimento de que uma boa parcela da sociedade não aceitará mais que o presidente siga tentando ocupar sozinho o espaço público, quase sempre zombando da pandemia, negando sua gravidade, ignorando o sofrimento das famílias enlutadas, promovendo desinformação a respeito da propagação da covid-19 e fazendo ameaças golpistas contra adversários e aqueles que não são seus seguidores.
As ruas mostraram, pela primeira vez desde que a pandemia começou, o que as pesquisas de opinião já mostravam sem fotos: que aqueles que rechaçam Bolsonaro e sua política negacionista são em maior número que aqueles que o apoiam. A pé, os oposicionistas foram às ruas em maior número que os motorizados e barulhentos motociclistas de Bolsonaro, um fim de semana antes.
E agora, o que esperar?
A forma acabrunhada com que os bolsonaristas reagiram, nas redes sociais, aos atos do 29M mostra que sentiram o golpe. Resta saber se vão dobrar a aposta, promovendo outras manifestações para tentar medir forças com os oposicionistas nas próximas semanas.
Isso nos leva ao dilema que havia antes dos atos deste sábado: por mais que se tomem cuidados como o uso de boas máscaras, manifestações desse tipo promovem aglomerações difíceis de controlar (dicas como "fique com os que moram com você" soam entre ingênuas e inócuas, se não forem apenas para inglês ver, mesmo).
A terceira onda de contágio da pandemia é uma realidade: como se portarão cientistas que até aqui têm defendido que a vida é mais importante que a política (e é, mesmo)? E os políticos que têm apontado negacionismo de Bolsonaro, mas neste fim de semana entoaram clichês negacionistas como "o governo mata mais que o vírus"? Vale o mesmo para nós, jornalistas, para artistas e todos os que até aqui se posicionaram do lado da Ciência. Esse compromisso não pode mudar em nome de um duelo infantil que, no fim, vai resultar no aumento de casos e, consequentemente, de mortes. Dos dois lados.
A resposta mais robusta precisa vir das instituições. O fato de as ruas antibolsonaristas terem falado em voz alta, desafiando a pandemia, serve de alerta para os mercados, que vinham numa euforia histérica, e para o Centrão, que fecha os olhos a tudo em nome de polpudas verbas de emendas, abertas ou secretas: não será possível esquecer só à base de 4% do PIB a escalada de morte, fome, miséria, retrocesso educacional e de liberdades e chegar a 2022 com o discurso irresponsável de que a economia terá voltado a crescer.
Além de tudo porque nada indica que esse crescimento será vertiginoso como cantam as patativas do mercado. Basta ver a crise de fornecimento de energia elétrica que começamos a observar, isso com a economia girando bem devagar.
Quanto tempo o Centrão ficará com o governo, agora que está evidente que ele é repudiado por grandes parcelas da sociedade, gente de toda cor partidária, gente que votou em Bolsonaro em 2018, gente que perdeu parentes e não aceita a falta de respeito e de providências diante da tragédia?
Saber se vai começar o desembarque dos políticos é o passo mais decisivo para concluir se o 29M terá consequências. E se existe alguma chance de impeachment, hipótese hoje bastante remota, para não dizer praticamente impossível.
É preciso inteligência e responsabilidade da parte dos opositores do presidente. O silêncio de Lula diante dos atos de sábado não é à toa: ele ao mesmo tempo evitou a armadilha de ajudar a carimbar as manifestações como exclusivamente petistas, como se preservou para não ser acusado de negacionista.
A mesma discrição foi vista por opositores que também são governantes, e sabem que amanhã podem ter de adotar novas medidas restritivas de atividades econômicas, e não querem correr o risco de serem acusados de hipócritas ou incoerentes.
Não é simples guiar esse barco num mar que inclui icebergs e nevoeiro para todos os lados. Mas Bolsonaro está cada vez mais acuado pela CPI e, agora, pelas ruas.
Nesse sentido, o recado do 29M foi bem dado. E histórico. VERA MAGALHÃES DA FOLHA DE SP
Origem do coronavírus em laboratório não pode ser descartada, mas fonte natural é mais provável
Ao longo das últimas semanas, o debate sobre a origem do Sars-CoV-2, vírus causador da Covid-19, adquiriu uma urgência que não era vista desde o início da presente pandemia. Uma carta publicada por pesquisadores no prestigioso periódico especializado Science, bem como investigações sob os auspícios do governo americano, colocam em questão a possibilidade de que o vírus poderia ter vindo de um laboratório de Wuhan, na China, e não diretamente de um hospedeiro animal na natureza.
É óbvio que esse tipo de debate é um prato cheio para a desinformação. Escrevi esta coluna, portanto, como um pequeno guia para os perplexos, ponto a ponto. Vamos a eles.
1) Ainda não há evidências diretas de vazamento laboratorial, nem propriamente dados novos. Esse me parece um elemento muito importante e pouco mencionado. A discussão sobre o tema não se reacendeu por causa de evidências "positivas" —ou seja, dados diretos indicando o vazamento do Sars-CoV-2 do laboratório chinês. Tais dados, por ora, não existem.
As evidências são, na verdade, "negativas". Isso significa que ainda não foi encontrado um vírus idêntico ao que afeta humanos em hospedeiros animais (selvagens ou domésticos), o que impede a reconstrução completa da trajetória evolutiva do Sars-CoV-2, ou o momento e local aproximados em que ele teria feito o salto de bichos para humanos. É esse ponto que mantém aberta a possibilidade do espalhamento em laboratório.
2) Vazar de um laboratório não é a mesma coisa que ser arma biológica criada propositalmente. A "hipótese laboratorial" na verdade é uma família de hipóteses. O vírus, por exemplo, pode ter sido coletado por pesquisadores em animais, sendo estudado por eles, até que vazou acidentalmente e desencadeou a pandemia.
Também pode ser que um vírus de origem natural tenha sido modificado em experimentos cujo objetivo era entender como esses patógenos adquirem propriedades perigosas para seres humanos. Depois, essa forma alterada teria escapado por acidente.
Por fim, haveria a modificação deliberada para uso como arma biológica. É quase impossível achar um cientista sério que ache que a terceira possibilidade deste item 2 seja mais provável que a primeira e a segunda.
3) É preciso cuidado antes de achar que o Sars-CoV-2 é "engenheirado". Este ponto é um pouco mais complexo de explicar. Alguns defensores da hipótese laboratorial têm dado muito destaque ao fato de que a combinação exata de estruturas moleculares que permitem que o vírus se acople com eficiência às células humanas, por não ter sido identificada ainda em parentes dele na natureza, seria tão incomum que só poderia ter surgido a partir de manipulação genética. Também chamam atenção para o fato de que o coronavírus de morcegos que é o parente mais próximo do Sars-CoV-2 foi identificado muito longe de Wuhan (e, claro, não contém a combinação de moléculas "pronta para atacar humanos").
Por enquanto, parece mais seguro afirmar que essas ideias são, no máximo, meias-verdades. O motivo é simples: só conhecemos a pontinha do iceberg da diversidade viral carregada por animais selvagens, e o esforço de pesquisa de alguns meses depois da pandemia, por mais que tenha examinado dezenas de milhares de bichos e pessoas, está muito longe de esgotar os potenciais reservatórios de vírus.
De mais a mais, não custa ressaltar que nenhum patógeno emergente até hoje veio originalmente de um laboratório "“e a grande maioria surgiu na fauna selvagem. Sempre pode haver uma primeira vez, é claro, mas precisamos de evidências muito sólidas para apostar em hipóteses extraordinárias. FOLHA DE SP