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Em política, jogador que está no banco não pode receber cartão vermelho

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Em tempos turbulentos, como os vividos atualmente no Brasil, quaisquer ideias correm o risco de prosperar, por mais desarrazoadas que possam ou devessem parecer. Uma das mais recentes, que há de merecer o pronto repúdio da comunidade jurídica, é a apresentação na Câmara dos Deputados de pedido de impeachment contra o Vice-Presidente da República. Segundo matéria jornalística[1] a acusação seria similar à que paira sobre a atual Presidente da República, ao menos no que toca à assinatura de decretos abrindo suplementação de verba, sem que houvesse amparo financeiro para tanto na então vigente lei orçamentária, popularmente conhecido como ‘pedaladas fiscais’. O argumento, tão simples quanto equivocado, é o de que se a Titular do Mandato cometera crime de responsabilidade ao agir desta forma, o Vice seguiu seus passos.

Não se pretende, nestas breves reflexões, adentrar o mérito da questão relativa aos decretos em si, mormente em razão da ulterior aprovação da revisão da meta fiscal, que teria o condão de afastar a eventual ilicitude da autorização daquelas despesas. Ao contrário, busca-se apenas tratar da impossibilidade jurídica do pedido de impeachment de Vice-Presidente, ante a mais absoluta ausência de previsão constitucional e legal.

Nesse sentido é a doutrina do ilustre Professor José Afonso da Silva[2]: “A Constituição não prevê crimes de responsabilidade para o Vice-Presidente, enquanto tal; [que] só será submetido ao julgamento do Senado quando assumir a Presidência, e aí incorrer no crime (arts. 52, parágrafo único, e 86)”

Uma leitura açodada das regras dos artigos 51, I[3], e 52, I[4], da Constituição Federal de 1988 (CF/88) pode transmitir a ideia de seria possível a instauração de processo pela Câmara dos Deputados e o julgamento pelo Senado Federal do Vice-Presidente, enquanto ainda ostenta essa condição.

Por óbvio, contudo, que o ordenamento jurídico não se interpreta em retalhos, que mesmo para que formem uma colcha devem ser cosidos. Afinal, na mesma CF/88 se verifica, mais adiante, que responsabilização política ocorre tão somente em relação ao Presidente da República[5], contra o qual pode a Câmara dos Deputados autorizar a instauração de processo e o Senado Federal promover o julgamento[6].

Nesta mesma linha é o texto da Lei nº 1.079/50, que tipifica os crimes de responsabilidade, estabelecendo seus respectivos ritos, em relação ao presidente da República, ministros de Estado, ministros do Supremo Tribunal Federal, procurador-geral da República, governadores e secretários de estado.

A própria norma que confere aos cidadãos o poder de buscar a responsabilização dos mandatários pela violação das mais relevantes regras de conduta da nação não poderia ser mais clara ao lhes permitir “denunciar o presidente da República ou ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados[7].

Não se descura que o vice-presidente, quando assume o múnus presidencial, ainda que temporariamente, está sujeito ao cometimento daquelas mesmas infrações delimitadas no artigo 85 da CF/88 e detalhadas nos artigos 5º a 12 da Lei 1.079/50. No entanto, para que sua persecução tome a forma do processo de impeachment, exige-se que o acusado ostente, já no momento de sua instauração, a condição a Presidente da República. Duas são as razões aqui lembradas para que seja assim, dentre tantas outras que podem ser suscitadas.

Em primeiro lugar, como já sugerido, pela ausência de previsão constitucional e legal para que o Congresso Nacional atue com função jurisdicional em relação ao vice-presidente. A razão por trás deste argumento é a excepcionalidade desta situação, cuja justificação há de encontrar firme amparo no tecido constitucional.

Em outras palavras, a regra geral é a de que todos nós, cidadãos brasileiros, respondemos por eventuais atos ilícitos praticados perante o Poder Judiciário. Apenas ao juiz, strictu sensu, compete a missão de dizer a lei no caso concreto, afirmando que alguém é culpado pela prática de um delito.

Há exceções, contudo, mas todas elas com expressa previsão normativa. Uma delas, a imunidade presidencial[8] e a regra de que o seu julgamento se dará, exclusivamente, perante o Senado, quando cometer crime de responsabilidade, ou diante do Supremo Tribunal Federal, se acusado de crime comum relacionado ao exercício do mandato.

Com isso se quer afirmar que em relação ao vice-presidente vige a regra geral, aquela válida para todo cidadão, estipulando que eventuais atos ilícitos por si praticados sejam objeto de análise e julgamento pelo Poder Judiciário, no âmbito do juiz singular de primeira instância; uma vez que nem mesmo se cogita de foro por prerrogativa de função.

Importante esclarecer que não se sustenta aqui que o vice-presidente estaria imune a qualquer responsabilização, mas o exato oposto. Descabe a propositura de pedido de impeachment em relação a ele pois, caso tenha cometido algum delito, é ao Ministério Público e ao Juiz de Direito a quem se deve buscar.

Pensar o oposto seria permitir a violação do princípio do juiz natural e a admissão de um verdadeiro tribunal de exceção, uma vez que o Congresso Nacional estaria a julgar um cidadão que, ao menos naquele momento, não ocuparia o pináculo do serviço público civil e, portanto, restaria fora do alcance da excepcional função judicante do Poder Legislativo.

A segunda razão pela qual não há sentido no pedido de impeachment do vice-presidente é o fato de que ele não ocupa a titularidade do cargo, não sendo possível, portanto, apeá-lo do mesmo.

O cargo de Vice-Presidente possui funções próprias, definidas constitucionalmente, e as funções impróprias que “são explicitadas como sendo as missões especiais designadas pelo Presidente da República no artigo 79, parágrafo único, da CF/88 ao vice-presidente.”[9] Dentre as funções próprias inerentes ao cargo estão a de substituir ou suceder o titular do Mandato, ou seja, cabendo ao vice tão somente assumir o mandato em caráter precário, não sendo detentor de sua titularidade.

O tema já foi objeto de diversas discussões tanto no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral[10] quanto do Supremo Tribunal Federal, dentre eles destaca-se o ‘Caso Alckmin’[11] que, muito embora discutisse a questão sob o ângulo da inelegibilidade constitucional para um terceiro mandato consecutivo, assentou que cargo de titular e de vice são distintos.

Assim, na linha da jurisprudência da Suprema Corte, como o exercício da titularidade do cargo dá-se apenas mediante eleição ou por sucessão, in casu, não há falar em titularidade do mandato de Presidente pelo Vice, em razão de ter tão somente substituído a titular em situações excepcionais no curso do presente mandato.

Ademais, a fim de demonstrar a precariedade com a qual exerce a titularidade do mandato presidencial, a Magna Carta lista as 27 atribuições do presidente da República[12]e, em relação ao vice, diz apenas que “substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga”[13].

Se é consectário necessário da condenação a perda do mandato presidencial, é preciso que este exista previamente, como se lê no próprio artigo 34 da Lei 1.079/50, quando diz que “proferida a sentença condenatória, o acusado estará, ipso facto destituído do cargo”.

Assim, percebe-se que para que seja possível a veiculação do pedido de impeachment são requisitos essenciais, cumulativamente, que os fatos imputados tenham sido praticados no exercício da Presidência da República e que o acusado seja, ao momento da apresentação da acusação, titular do mandato de Presidente da República.

Ao contrário do futebol, em que o jogador que aguarda no banco pode receber o cartão vermelho[14], na política a cassação do mandato exige, por força constitucional, que o vice-presidente tenha assumido de forma definitiva a Presidência da República para ser submetido a um processo de impeachment.


[1] Por todos: http://www.valor.com.br/politica/4351548/deputado-protocola-pedido-de-impeachment-de-michel-temer>. Acesso em 10/12/2015.

[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. v. 1. Pág. 547

[3] CF/88, art. 51, inc. I - autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado;

[4] CF/88, art. 52, inc. I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;

[5] CF/88, art. 85 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária;  VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

[6]CF/88, art. 86 - Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.

[7] Lei nº 1.079/50, Art. 14 - É permitido a qualquer cidadão denunciar o Presidente da República ou Ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados.

[8] CF/88, Art. 86, § 4º - O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

[9] FERNANDES, B. G. A.; Curso de Direito Constitucional 7ª Edição. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1. Pág. 932

[10] TSE, AgR RESPE nº 37442, Acórdão de 17/10/2013, Rel. Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, Publicação: DJE -Tomo 231, Data 04/12/2013, Página 89

[11] STF, RE 366488, Rel.  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 04/10/2005, DJ 28-10-2005 PP-00061 EMENT VOL-02211-03 PP-00440 LEXSTF v. 27, n. 324, 2005, p. 237-245 RB v. 18, n. 506, 2006, p. 51

[12] CF/88, art. 84 - Compete privativamente ao Presidente da República: incisos I a XXVII.

[13]CF/88, art. 79 - Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente. Parágrafo único. O Vice-Presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o Presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais.

[14] Conforme consta da Regra 12 das Regras do Jogo: “The red card is used to communicate that a player, substitute or substituted player has been sent off. Only a player, substitute or substituted player may be shown the red or yellow card”. Disponível aqui.

 é advogada eleitoralista, pós-graduanda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (Uniceub), membro do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade) e membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep)

Fernando Neisser é advogado eleitoralista, mestre e doutorando pela Faculdade de Direito da USP, diretor de Relações Institucionais do Iasp e membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e do Instituto Paulista de Direito Eleitoral (Ipade).

Revista Consultor Jurídico, 11 de dezembro de 2015

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