Como os governos Lula, Dilma e Temer torraram R$ 6 bilhões no devaneio de criar a BBC brasileira
Mais de uma década depois, a estatal consumiu R$ 6,37 bilhões dos cofres públicos em valores correntes, segundo levantamento exclusivo de ÉPOCA com base em dados do Ministério do Planejamento. Mesmo com esse aporte, a EBC está sufocada com gastos fixos com pessoal e custeio de seus prédios, sem margem para investimentos. Soma-se a isso uma inexplicada explosão de atestados médicos de funcionários, que somaram 3.061 de janeiro a julho deste ano, sendo que o quadro de servidores é composto de 2.307 pessoas.
Dos presidenciáveis, Geraldo Alckmin (PSDB) se pronunciou favoravelmente ao fechamento da empresa, embora seu governo tenha mantido ilesa a TV Cultura, emissora pública paulista. A mesma ideia volta a ser ventilada dentro do governo federal como solução para a estatal, numa retomada de um plano que chegou a ser discutido no Palácio do Planalto quando Michel Temer assumiu o lugar de Dilma Rousseff após o impeachment. Na ocasião, o principal objetivo era acabar com a TV Brasil, que, pela baixa audiência, logo ficaria conhecida como “TV Traço”.
Na TV Brasil e na Agência Brasil, emissora e agência de notícias vinculadas à estatal, o clima é de conflagração ideológica. Jornalistas afirmam que seus chefes censuram matérias críticas ao governo Temer e perseguem quem não segue uma linha editorial governista, praticando assédio moral. Por outro lado, gestores, sem se identificar, dizem que os repórteres “se comportam como se estivessem vivendo a última fase da revolução cultural de Mao” e se recusam a cobrir fatos negativos ao ex-presidente Lula.
Grande parte da situação atual se explica pelo fato de a EBC ter nascido, nas palavras do ex-presidente Nelson Breve, “sobre os escombros de outras instituições” — especificamente, a Radiobrás e a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que geria a TVE Brasil — e pela relação mal resolvida tanto com o governo petista quanto com o emedebista. Apesar do discurso de que seria uma empresa de comunicação pública, e não estatal, a EBC assumiu desde o princípio a produção da Voz do Brasil e da TV NBR, canais institucionais do governo, e manteve uma relação afinada com o Executivo.
A jornalista Tereza Cruvinel, ex-colunista de política do jornal O Globo, foi sua primeira presidente e criticou a “dualidade de tarefas” de comunicação pública e governamental que a empresa teve de encampar. “É prejudicial à percepção que se tem da EBC. Espero que, no futuro, esses serviços sejam separados”, disse a ÉPOCA. Para manter a isenção, havia duas ferramentas, segundo ela. A primeira era um mandato de quatro anos do diretor-presidente, garantindo que o nome não fosse trocado quando conviesse ao Executivo. A segunda era um conselho curador que definiria as linhas editoriais dos veículos e teria poder de destituir o chefe da estatal se ele se dedicasse mais à propaganda política do que ao serviço público.
O primeiro conselho, porém, foi escolhido pelo próprio governo e incluía ministros de diversas pastas, como Gilberto Gil (Cultura), Fernando Haddad (Educação) e Franklin Martins (Comunicação Social), o último um dos principais idealizadores do projeto da empresa. Havia também nomes ligados à iniciativa privada, como José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (Boni), ex-diretor da TV Globo, e o então professor de Direito Luiz Edson Fachin, depois nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A lei que criou a empresa previa que os nomes posteriores seriam escolhidos por meio de consulta pública. Na prática, contudo, as indicações criaram um feudo do Ministério da Cultura (MinC) e da Secom na empresa, sendo que os diretores e funcionários ligados ao MinC acabaram saindo gradualmente nos dois primeiros anos após a criação da EBC. Alguns pediram demissão. Outros, como Leopoldo Nunes, ex-diretor de programação, foram demitidos.
Com a influência da Secom sedimentada, a TV Brasil logo foi apelidada de “TV do Lula” pela oposição, embora Cruvinel negue que tenha havido apadrinhamento político na emissora. “Os cargos comissionados sempre foram indicados pela diretoria com base em quem fosse um profissional adequado para a área, seja jornalismo ou audiovisual”, afirmou. “Não estou dizendo que todo mundo no governo Lula compreendia a EBC. Havia gente que não compreendia, e tínhamos de explicar que era uma empresa pública, não do governo.” Para Cruvinel, a oposição nunca provou que o órgão era aparelhado ou chapa-branca. “Agora (na gestão Temer) é que é.”
Segundo Eugênio Bucci, professor de jornalismo na Universidade de São Paulo (USP) que presidiu a Radiobrás no primeiro governo Lula, o conselho curador era “meramente decorativo”, já que as decisões orçamentárias sempre foram tomadas pelo conselho de administração, formado por membros dos ministérios. “No Brasil, nunca tivemos nada próximo do que precisa ser a comunicação pública”, afirmou Bucci. “Aqui, todas as emissoras públicas, com algumas exceções, copiam as emissoras comerciais e têm uma orientação de defesa do governo. São governistas. Isso é a antítese da comunicação pública.” No governo Lula, nos programas de entrevista da TV Brasil, ganharam protagonismo — e verba — jornalistas abertamente simpáticos ao governo, como Luis Nassif, e cientistas políticos militantes de esquerda, como Emir Sader.
Entre 2010, último ano de Lula, e 2011, primeiro ano de Dilma, o investimento da estatal chegou a R$ 130 milhões por ano, o maior valor de sua história. O capital foi destinado à compra de equipamentos de produção e transmissão de rádio e TV — grande parte da herança das rádios e TVs regionais da Radiobrás e da Fundação Roquette Pinto estava sucateada. Mas a audiência da TV Brasil nunca decolou, o que lhe rendeu o apelido de “TV Traço” — o termo é usado para se referir ao intervalo entre 0,0 e 0,2 ponto no Ibope. Em janeiro de 2018, essa taxa equivalia a até 49.700 domicílios no Painel Nacional de Televisão (PNT). Na semana passada, a EBC alardeou que a audiência da TV Brasil cresceu 64% nos últimos dois anos. Em julho de 2016, a emissora marcava 0,19 ponto de audiência. Em julho último, registrou 0,31 ponto — acima, portanto, do intervalo considerado como traço de audiência. Passou, assim, para a posição de décima emissora mais vista do país — motivo de comemoração pela direção da empresa.
“Quando viram que não tinha colado chamar a TV Brasil de chapa-branca, começaram a pegar nisso da audiência. Primeiro veio o terror do chapa-branquismo, depois a cobrança por audiência”, afirmou Cruvinel, fazendo uma série de ressalvas à baixa penetração da emissora. “Audiência é importante, sim, até porque tem dinheiro público envolvido. Mas é o objetivo fundamental de uma TV comercial, que vive de publicidade. O objetivo de uma TV pública é oferecer programação complementar, educativa, informativa e formadora da cidadania.” Em 2009, uma pesquisa do Datafolha indicou que só 34% dos brasileiros sabiam o que era a TV Brasil, mas que 80% de seus espectadores qualificavam a programação como boa ou ótima. Em 2010, a TV passou a transmitir a Série C do Brasileirão, o que ajudou a superar o “traço” em algumas ocasiões.
No governo Dilma Rousseff, em outubro de 2011, Cruvinel teve um atrito com o conselho curador por uma questão editorial. A TV Brasil e a Rádio Nacional de Brasília transmitiam missas e cerimônias cristãs, outra herança dos veículos incorporados pela EBC em 2007. Cruvinel acreditava que, por ser pública, a EBC não podia promover uma religião específica. O conselho discordava. O embate chegou à Justiça e ao Senado Federal, e Cruvinel disse que os curadores estavam promovendo uma desqualificação de sua gestão. A defesa dos religiosos acabou prevalecendo, e a missa aos domingos é transmitida até hoje pela TV Brasil.
Cruvinel negou que esse tenha sido o motivo de sua saída, que ocorreu em seguida, no fim de seu mandato de quatro anos. Em seu lugar, entrou Nelson Breve, antes secretário de Imprensa do governo Lula. Ele assumiu com o compromisso de que a TV Brasil deixaria de ser a “TV Traço” — o que foi cumprido com a programação esportiva e a cobertura do Carnaval, por exemplo — e defendeu a programação religiosa na emissora. Em sua gestão, foi realizado um concurso para substituir cerca de 1.500 funcionários dos antigos veículos, que não eram concursados, regularizando a situação da estatal. A maioria dos funcionários que estão na empresa hoje foi contratada nessa leva.
“Avaliamos depois que esse concurso não foi feito da melhor forma”, disse Breve. “Estávamos trocando profissionais com muita experiência por profissionais com pouca experiência, e sem uma estrutura dentro da empresa para formar essas pessoas”, afirmou. Um dos problemas apontados é que, no concurso, os jornalistas não foram avaliados pelo currículo, por trabalhos já publicados nem por prova de redação. O jornalista Ricardo Melo, que depois seria presidente da empresa, disse que estranhou o perfil “concurseiro” dos profissionais quando entrou na EBC em 2015. “Não é para reclamar do corpo de funcionários, me dei bem com eles. Mas havia gente que não tinha afinidade com a área de comunicação, queria só ser concursado.” Depois do concurso, a estatal foi de um quadro de 1.476 funcionários para 2.412 em 2013. Era difícil gerir esse contingente, já que a EBC é formada por três canais de TV, nove rádios e uma agência de notícias, a Agência Brasil, cada uma com uma herança administrativa diferente.
A estrutura vagarosa de empresa estatal também prejudicava a cobertura jornalística, relatou Melo. Se acontecesse um desastre em uma cidade afastada, era preciso abrir uma licitação para fazer a viagem, por exemplo. “Quando eu era diretor de jornalismo, tinha um chefe de gabinete, quatro assessores e uma secretária. Não fazia sentido essa rigidez ministerial em uma empresa de notícias”, disse. Cruvinel concordou com a crítica. “Se um diretor de um programa precisa de um vaso de flores, não tem como tirar o dinheiro de uma gaveta para comprar, precisa abrir licitação.” Ela disse que, se soubesse que o modelo de estatal era tão engessado, teria sugerido que a EBC tivesse outro arranjo, como o de organização social.
As despesas com pessoal saltaram de 35% dos gastos da empresa, em 2008, para 54% em 2014. Nos bastidores, a percepção era que a presidente Dilma dava menos importância que Lula à estatal. “Os repasses se mantiveram no mesmo nível, mas houve um crescimento vegetativo do funcionalismo que foi pressionando o orçamento de investimentos”, explicou Breve. O investimento caiu pela metade de 2011 para 2012 e nunca retomou o nível inicial.
Para compensar o aumento de custos fixos, Breve participou de longa batalha para que a empresa pudesse usar os recursos da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, um tributo do setor de telecomunicações criado em 2008 para garantir independência financeira à EBC. As operadoras de telefonia entraram com uma ação em 2009 para não pagar a contribuição e passaram a depositar os valores devidos em juízo. Em 2013, o valor represado que poderia ser usado pela estatal chegava a R$ 1,37 bilhão. Breve conseguiu acesso aos recursos da TIM, o que equivalia a R$ 321 milhões, mas, ao mesmo tempo, a empresa perdeu receita do Tesouro prevista na Lei Orçamentária Anual para 2014 — com isso, a expectativa de aumentar a verba naufragou.
“Foi um cochilo da assessoria da empresa que estava acompanhando isso no Congresso”, disse Breve. Ele chegou a pensar em renunciar, desgastado com a briga para liberar dinheiro para a empresa. “No mundo desenvolvido, a comunicação pública é entendida como uma coisa importante. A BBC funciona porque recebe verba.” A contribuição paga pelos cidadãos britânicos à BBC leva 3,7 bilhões de libras, cerca de R$ 19 bilhões, ao caixa da empresa todo ano. Alguns, como Eugênio Bucci, relativizam esse problema orçamentário. “Não é tão pouco dinheiro assim (da EBC). O problema é a má gestão. Basta comparar com o faturamento da Band ou o do SBT.” Em 2017, foram de, respectivamente, R$ 350 milhões e R$ 800 milhões.
As acusações de que a empresa era aparelhada pelo governo petista não cessaram. Em 2012, a empresa de Mônica Monteiro, namorada de Franklin Martins, venceu um edital de R$ 2,39 milhões para produzir a segunda temporada da série Nova África para a TV Brasil. Era o maior valor contratado pela estatal até então. Na primeira tentativa, o concurso teve de ser cancelado porque o envelope com a proposta da Cine Vídeo já tinha sido aberto antes da sessão de julgamento, o que levantou ainda mais a suspeita de irregularidades. A EBC afirmou, em sua defesa, que uma goteira pingou sobre o envelope da empresa da namorada de Martins, obrigando sua abertura antecipada. Martins, então já ex-ministro, negou que tivesse interferido em favor de Mônica Monteiro. Procurado, ele não quis dar entrevista a ÉPOCA.
“A verdade às vezes é absurda. Mas, na sala onde ficavam os envelopes, aqui no Rio de Janeiro, o gesso do teto caiu por causa de uma infiltração e molhou tudo”, afirmou Breve. A licitação cancelada devido aos envelopes molhados aconteceu na gestão de Cruvinel, e a segunda, que aprovou o projeto da Cine Vídeo, na dele. “É absolutamente injusta essa acusação. A Cine Vídeo é uma das maiores produtoras do país e tinha legitimidade para disputar o que fosse dentro da empresa.”
Breve enfrentou, também, uma greve de 15 dias dos funcionários da estatal em novembro de 2013. Os empregados, que não tinham ganhado reajuste até então, fecharam um acordo para receber um aumento salarial de 0,5% acima da inflação no fim daquele ano e 0,75% em novembro de 2014. Ficou combinado também que ganhariam o dobro de auxílio-alimentação em junho e dezembro. Hoje, o tíquete é de R$ 1.057, mais de R$ 40 por dia de trabalho, e dobra, nesses dois meses, para R$ 2.114 (cinco cestas básicas de alimentos, segundo o valor estipulado para o Distrito Federal).
A EBC sentiu os efeitos do sufocamento com seus gastos fixos durante a crise econômica, e o investimento caiu para R$ 9,5 milhões anuais em 2015 e 2016. Em agosto de 2015, Breve deixou a presidência da EBC. Quis voltar ao Rio, onde estava sua família. “É natural que exista rejeição à EBC, porque ela não estava pronta. Eu lamento, mas acho que há esperança. Ainda haverá mudanças, e acho que um dia vai ser compreendida a proposta de comunicação pública.”
Após uma curta gestão de Américo Martins, que trabalhava lado a lado com Edinho Silva, ministro-chefe da Secom de Dilma, veio a disputa ideológica mais acirrada de que a EBC já foi palco. Naquele período, entre fevereiro e maio de 2016, a empresa estava sem presidente, nas mãos de um colegiado. Enquanto tramitava o processo de impeachment contra Dilma Rousseff, Ricardo Melo, então diretor de jornalismo, dedicou boa parte da programação aos protestos favoráveis à permanência da presidente. “Toda a grande mídia foi a favor do impeachment, eu dava voz aos que eram contra”, afirmou a ÉPOCA. No início de maio, poucos dias antes do afastamento da petista, foi nomeado diretor-presidente da empresa. “Eu dei voz aos que não tinham voz. Está tendo manifestação de estudantes no Rio? Vamos pôr no ar. Acampamento dos sem-terra? Coloca no ar. Isso irritou profundamente os caras.”
Irritou tanto que, cinco dias após a presidente Dilma ser afastada, o presidente Michel Temer exonerou Ricardo Melo. Para o lugar dele, nomeou Laerte Rímoli, ex-assessor de imprensa de políticos como Eduardo Cunha e Aécio Neves. Na lei que criou a EBC, porém, havia a garantia de que o diretor-presidente poderia ficar no cargo por quatro anos. Melo entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal pedindo uma liminar para voltar à chefia da empresa, medida concedida pelo ministro Dias Toffoli.
Contra a vontade do governo, Melo retornou à chefia em junho de 2016 e conseguiu irritar até funcionários e sindicalistas com a postura abertamente pró-Dilma. “Nós lutamos pelo caráter público da empresa, e vimos que ele estava usando a estrutura da EBC para fazer uma defesa do antigo governo”, disse Edvaldo Cuaio, representante dos funcionários no conselho de administração da empresa desde 2015. “Fiz um levantamento da programação, na época, e tinha 11 horas a favor da Dilma e uma hora contra.”
Enquanto Ricardo Melo não desgarrava do cargo, Geddel Vieira Lima, então ministro da Secretaria de Governo, defendia que a EBC fosse fechada e dizia que a estatal virara um “foco de militância”. “É um símbolo de um governo ineficiente, do aparelhamento da gestão, de autopromoção”, afirmou ao jornal O Globo em junho de 2016. Dyogo Oliveira, ministro do Planejamento, e Moreira Franco, então secretário executivo do Programa de Parcerias de Investimento (PPI), debateram o possível fechamento da empresa. Alguns integrantes do governo, porém, como Márcio de Freitas, à frente da Secom, julgaram que a ideia não valia o desgaste no Congresso naquele momento.
Temer se voltou contra a gestão de Melo em setembro, com uma Medida Provisória que acabou com o mandato de quatro anos do presidente e com o conselho curador da EBC. Com a mudança, a liminar que mantinha Melo no cargo foi derrubada pelo Supremo, e Rímoli pôde voltar à chefia poucos dias depois. Em seguida foram rescindidos os contratos da estatal com sete jornalistas alinhados à antiga gestão, cujos contratos somavam R$ 2,8 milhões por ano — Sidney Rezende, Lúcia Scarano de Mendonça, Emir Sader, Luis Nassif, Paulo Markun, Tereza Cruvinel e Paulo Moreira Leite. Nassif ganhava R$ 760 mil por ano, e Markun R$ 585 mil.
Uma das primeiras medidas de Rímoli foi nomear Christiane Samarco, ex-jornalista de O Estado de S. Paulo e assessora do MDB, como diretora-geral — seu salário, de R$ 27 mil, está hoje entre os mais altos da estatal. Quando a Medida Provisória que alterou a lei da EBC foi aprovada pelo Senado, em março de 2017, foi incluída a criação de um Comitê Editorial e de Programação com 11 integrantes de diversos setores da sociedade, espécie de substituto do conselho curador, mas Temer vetou trechos da lei que permitiam ao comitê decidir sobre a linha editorial da estatal. O Comitê Editorial não foi criado até hoje.
Em 2017, com um controle de gastos mais rígido, o investimento na estatal foi o mais baixo de sua história, totalizando R$ 7,7 milhões. Rímoli implementou o ponto eletrônico, economizando R$ 1,2 milhão por ano com horas extras, segundo a direção, e cortou oito contratos de produção de conteúdo para a TV Brasil, que representavam R$ 3,96 milhões anuais. Na intenção de enxugar o quadro de funcionários, foi lançado um Programa de Demissão Voluntária, em vigor de outubro de 2017 até março deste ano. A empresa apontou que 554 empregados eram elegíveis, mas só 96 aderiram ao plano, gerando uma economia de R$ 23 milhões anuais na folha de pagamentos. O controle com as finanças não foi tão rigoroso nos salários dos dirigentes, que tiveram um aumento de mais de 30%, aprovado pelo conselho de administração em março de 2017. No mesmo período, Rímoli também contratou a jornalista Roseann Kennedy para apresentar um telejornal, por um salário de R$ 21.400.
“Até somos a favor do enxugamento (de pessoal), mas tem de se debater onde seriam feitos os cortes”, disse Edvaldo Cuaio. “É para acabar com programas de televisão, que é a estrutura-fim, ou para diminuir a estrutura-meio?” Hoje, pouco mais de 50% dos funcionários da EBC fazem parte dessa “estrutura-meio”, ou seja, não são jornalistas nem produzem conteúdo, ou pelo menos não foram contratados formalmente para isso. “Há muito desvio de função na empresa”, disse Gésio Passos, jornalista da EBC e coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal. “O iluminador faz câmera, o câmera faz iluminação, e isso vai gerando esse passivo trabalhista muito grande. A geração que entrou no concurso de 2012 sabe de seus direitos e briga por eles na Justiça.” O passivo trabalhista da EBC chegou a R$ 7,7 milhões no fim do ano passado, o que inclui pessoal a pagar e encargos sociais. Com os processos trabalhistas em andamento, o valor pode chegar a R$ 100 milhões, segundo a Secom. Há, hoje, 77 funcionários com uma remuneração bruta de mais de R$ 20 mil e 739 que ganham menos de R$ 5 mil. A média de salário da empresa é R$ 8.300, e a dos jornalistas R$ 10.200.
Com pouco dinheiro para custeio e manutenção nos últimos anos, funcionários se queixam do sucateamento da infraestrutura das sedes no Rio de Janeiro e em São Luís, Maranhão. Os prédios, da extinta TVE, já eram antigos quando a EBC foi criada. Em 2014, uma inspeção na sede do Maranhão encontrou partes do piso, teto e paredes caindo aos pedaços, além de infiltrações, infestação de fungos, madeira corroída por cupins e instalações elétricas expostas. Apontou-se que o risco de contaminações, incêndios e desabamentos era alto. O prédio chegou a funcionar recentemente com um “gato” de água, sem encanamento regular. A direção afirmou que os problemas foram corrigidos, mas funcionários relataram que a situação do edifício ainda é precária.
No prédio da TV Brasil na Avenida Gomes Freire, no centro do Rio, o teto de uma sala desabou em fevereiro deste ano devido a uma infiltração que ainda não foi contida. O ar-condicionado funciona parcialmente e, por isso, só uma das salas de edição está operante — em um dia em que o resfriamento dessa sala também falhou, em junho, o programa Repórter Brasil, o principal jornal da TV Brasil, até deixou de ir ao ar. Em nota, a EBC afirma que o sistema de ar-condicionado tem mais de 40 anos, “o que torna difícil identificar no mercado empresas que se interessem pelo serviço de manutenção, em decorrência da falta de peças de reposição”.
A Rádio Nacional da Amazônia, um dos braços mais importantes de inclusão social promovidos pela empresa, ficou mais de sete meses fora do ar em 2017 devido à demora para consertar uma estação de energia atingida por um raio. Algumas comunidades ribeirinhas têm, na rádio, sua única fonte de informação e comunicação com familiares, e ouvintes escreveram cartas se queixando do blecaute na emissora. O transmissor principal ainda está queimado, e a empresa iniciou um processo de licitação para substituí-lo. Enquanto isso, a rádio funciona com um gerador realocado de forma emergencial, que permite transmitir só 12 horas por dia.
Em novembro de 2017, os servidores fizeram greve reivindicando reajuste salarial — que eles não têm desde 2016 — e a saída de Rímoli. No acordo para acabar com a paralisação, os trabalhadores preferiram manter os dois tíquetes-refeição extras que recebem por ano a ter um reajuste de salário pela inflação, de acordo com o Tribunal Superior do Trabalho (TST). De lá para cá, o clima na empresa vai de mal a pior. Os funcionários alegam que o governo Temer passou a interferir muito no direcionamento das reportagens, gerando um ambiente de desmotivação e enfrentamento político. Quando a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) foi assassinada, em março, um gerente da Agência Brasil pediu para diminuir a cobertura da repercussão de sua morte, já que o PSOL estaria “tirando proveito”, o que irritou os jornalistas. “Já havia interferência antes, mas agora não é nem disfarçada. Se sai uma pesquisa do IBGE desfavorável ao governo, o título da notícia vira um detalhe da pesquisa que não é tão ruim assim”, disse uma funcionária da TV Brasil que não quis se identificar.
Em uma reunião em abril deste ano, Rímoli sugeriu oficializar em um documento que houvesse uma “adaptação processual e de plataforma para que a Agência Brasil passe a comunicar apenas notícias de Estado”. Após a intervenção de Cuaio, a redação foi alterada para “que a Agência Brasil aprimore a comunicação das notícias de Estado e da sociedade”, mas o episódio ouriçou ainda mais os funcionários contra a direção.
Rímoli deixou a empresa no início de maio e se mudou para os Estados Unidos. Procurado, não quis dar entrevista. Foi sucedido por Alexandre Parola, diplomata de carreira e ex-porta-voz de Michel Temer, para um “mandato-tampão”, já que, em janeiro, Parola começará a trabalhar em Genebra, na Suíça, como representante do Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC). Conhecido por seu comedimento ao dar declarações, tem um perfil conciliador. Ao contrário de Rímoli, que chamava a EBC de “mastodonte”, é cauteloso ao falar de corte de custos. “A gestão do presidente Temer não quer acabar com a EBC, e sim tem a intenção de fazer uma empresa pública trabalhar com eficiência e com respeito ao dinheiro que a financia, que é o do imposto do contribuinte”, disse a ÉPOCA.
Na última segunda-feira, Parola nomeou como assessora Luisa Farani de Azevêdo, filha do embaixador Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC. É o órgão no qual Parola vai representar o Brasil no início do ano que vem. Publicitária, Farani já trabalhou como estilista e fez vestidos para Letícia Sabatella, Anitta e Marcela Temer. Seu posto será na área de parcerias internacionais da empresa. Procurado, Parola disse que Farani tem qualificação para o cargo, fala quatro línguas, mandou currículo e foi entrevistada. “Porque ela é filha do Roberto Azevêdo não vai poder trabalhar em canto nenhum agora?”, questionou. O salário será de cerca de R$ 15 mil. Farani não respondeu ao contato da reportagem.
Em 13 de julho, o diplomata acabou com a Gratificação de Desempenho de Atividade de Comunicação (GDAC), instituída em 2016. Segundo o Sindicato dos Jornalistas, a gratificação era usada como uma forma de pressão da chefia sobre os funcionários, já que podia ser retirada a qualquer momento. A recomendação do Ministério Público do Trabalho afirmava que a gratificação feria “os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência” da administração pública, por ser “concedida sem critérios objetivos e dando margem a favorecimentos e retaliações”. Em nota, a empresa disse que a extinção do benefício prejudica “sobretudo os empregados merecedores da gratificação e que se encontram nas faixas salariais mais baixas da empresa”.
Segundo Edvaldo Cuaio, Parola tem se mostrado mais sensível aos problemas da empresa do que Rímoli. Parola disse ter ficado surpreso quando, no fim de junho, a Folha de S.Paulo divulgou que funcionários da empresa apresentaram 310 atestados médicos em apenas uma semana. Foi aberta uma licitação para contratar uma perícia médica e apurar o que causou a explosão de incidentes médicos. “Estamos apurando. Antes do resultado da perícia, qualquer comentário seria ou leviano ou injusto”, afirmou Parola.
O Ministério Público do Trabalho do Distrito Federal, no início de agosto, entrou com uma ação civil pública acusando a direção da EBC de assédio moral e desrespeito aos direitos humanos pela forma com que trata os trabalhadores. “Existem práticas muito agressivas na empresa”, disse a procuradora Renata Coelho, responsável pelo inquérito. “Inclusive perseguição ideológica, de tentar interferir no conteúdo do que é escrito. Ou dizer ‘não, não relate tal coisa’. Em profissões de trabalho eminentemente intelectual, como jornalista, redator, radialista, essas são, na verdade, medidas muito agressivas.” No dia 13, a Justiça determinou que o assédio moral parasse, sob pena de até R$ 50 mil para cada irregularidade denunciada na empresa daqui em diante.
A Comissão de Empregados da EBC atribuiu o surto de atestados ao “crescimento dos casos de assédio moral, perseguições, excesso de trabalho motivado por falta de pessoal, censura e insegurança quanto ao futuro da EBC”. “O número de afastamentos por doença mental aumentou por causa da pressão que os jornalistas vêm sofrendo dentro da própria empresa”, disse Gésio Passos, do Sindicato dos Jornalistas do DF. Em 2017, foram 4.586 atestados, aumento de 57% sobre os 2.905 de 2016. No primeiro semestre deste ano, com 2.859 atestados de janeiro a junho, o aumento em relação à média de 2017 foi de 20%.
“Temos relatos de que muitos dos funcionários que apresentaram atestados postaram fotos em redes sociais em comemorações, aniversários, casamentos. É uma coisa que está errada”, disse Márcio de Freitas, da Secom. Para ele, a cobertura da Presidência de Temer foi feita de forma crítica pela EBC. “Não há direcionamento político. Antes, na gestão anterior, é que tinha.”
Segundo Freitas, o “enxugamento da EBC é pacífico”. Ele diz não ser favorável a sua extinção, como especulam funcionários, e sim a sua adaptação, para que possa dar lucro. “Como foi criada, a empresa não pode receber recursos publicitários de nenhuma forma, inviabilizando patrocínios, parcerias. A empresa pode ter uma função, mas teríamos de mudar a lei para que ela tivesse um sentido mais mercadológico”, disse.
O Ministério do Planejamento publicou, em julho, uma portaria que permite o remanejamento compulsório de funcionários na administração federal e elimina o poder de veto dos órgãos de origem — como a EBC —, o que facilitaria esse “enxugamento”. Em reunião no Planalto, no início de agosto, a Secom defendeu mais um Programa de Demissão Voluntária, um novo plano de carreira e a construção de uma sede própria, já que a estatal paga mais de R$ 1 milhão por mês de aluguel em Brasília. Um integrante do Planejamento fez menção à proposta de extinção da estatal, mas foi prontamente censurado.