Decreto 9.412/18 abre porta para fraudes em licitação
Ao fixar a competência privativa da UF para legislar sobre normas gerais afetas ao processo licitatório, a Constituição reservou aos estados e municípios uma espécie de competência suplementar, a fim de adequar as normas gerais já delineadas pela UF às especificidades regionais e locais de cada ente federativo.
Neste sentido, os membros da federação podem editar suas próprias leis regulatórias sobre licitação, especificamente em relação a questões de ordem secundária, como uma exigência local, um prazo não fixado na lei geral, ou até mesmo sobre valores, sempre respeitando as normas gerais já definidas pelo ente constitucionalmente competente (União).
Sendo assim, em linhas gerais, podemos entender que a Lei 8.666/93 é uma lei que contem comandos gerais, que se aplicam de forma indelével a todos os entes da federação (normas nacionais), e comandos específicos, que só vinculam a própria UF (normas federais).
A guisa de ilustração, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar nesse sentido, ao deferir medida cautelar na ADI-MC 927-3 RS, para que os artigos 17, I, b (doação de bem imóvel) e c (permuta de bem imóvel); §1º e 17, II, b (permuta de bem móvel), sejam interpretados conforme a Constituição, com aplicação tão somente reservada a UF (normas específicas).
A maior dificuldade do interprete, e que se arrasta há pelo menos 20 anos, reside exatamente em identificar, na Lei 8.666/93, quais são as regras que devem vincular somente a UF (específicas) e quais vinculam todos os entes (gerais).
Toda reflexão exposta nestas linhas passa necessariamente pela definição da natureza dos artigos 22, 23, 24, 60 parágrafo único e 120 da Lei 8.666/93, tendo em vista sua interligação.
Inicialmente, convém salientar que o artigo 22 é norma geral. Isso porque ele define as modalidades de licitação, sendo vedada a criação de outras modalidades por Estado e Municípios. Portanto, a criação de modalidades é matéria de competência privativa da União, como ocorreu com o Pregão, trazido ao cenário jurídico pela Lei 10.520/02.
Na mesma esteira de entendimento, podemos citar os artigos 24 e 60, paragrafo único. O primeiro, determina de forma taxativa as hipóteses de dispensabilidade do procedimento licitatório. Sempre bom recordar que as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva. Se a regra é a licitação, sua dispensabilidade deve ser vista com muita cautela, a fim de não incorrer em violação aos princípios que norteiam as contratações públicas.
Quanto ao Artigo 60 parágrafo único, que trata de contratos administrativos, percebemos igualmente uma regra geral, na medida em que fixa a regra de nulidade do contrato verbal e cria a exceção, que deve ser interpretada de forma restrita, como nos ensina a boa técnica de hermenêutica. O Artigo 23 determina as modalidades de licitação em função dos limites de valor ali fixados, que levam em consideração o valor da contratação. Existe muita controvérsia quanto a sua natureza, razão pela qual, desde 1998, os valores da Lei de Licitações não são atualizados.
Uns, como o Tribunal de Contas de Mato Grosso, defendem que se trata de uma norma específica, editada pela União com vistas a fixar os valores a que tão somente seus órgãos e entidades se sujeitam para escolha das modalidades licitatórias, sendo juridicamente possível a outros entes da federação, a exemplo dos municípios, estabelecerem novos valores para a definição das modalidades licitatórias previstas na Lei 8.666/93.
A propósito, o Estado do Mato Grosso é um dos únicos estados que possui lei especifica cuidando da atualização dos valores de determinação das modalidades, inclusive fixando valores distintos do utilizados pela UF[1]. Outros professam a ideia de se tratar de uma norma geral, uma vez que a matéria exige uma uniformização nacional quanto ao teto de faixas licitatórias para cada modalidade. Nossa tendência a pensar desta forma.
Em nossa visão, de fato, o Artigo 23 deve ser visto como norma geral, carecedora de revisão por lei, com periodicidade e índices estabelecidos pela UF e de observância obrigatória para os demais entes. A determinação da modalidade pelo critério do valor da contratação não pode ser vista como norma específica, não pode ficar ao talante dos entes federados, sob pena de gerar uma insegurança generalizada para os licitantes.
A Constituição não quis isso, esse não pode ter sido o conteúdo teleológico da norma constitucional, pois entregou à UF a competência privativa para uniformizar o procedimento licitatório, deixando apenas detalhes orçamentários e pontuais para serem regulamentados pelos estados e municípios, em festejo ao princípio da autonomia das coletividades autônomas.
Neste aspecto, nos parece que a competência para determinar as faixas de limites de modalidades licitatórias (tetos) é da UF, bem como determinar a periodicidade e os índices de atualização dos valores, na forma do Artigo 22, VI, da CRFB/88, cabendo aos Estados e Municípios decidir tão somente pela necessidade ou não de atualização dos valores, conforme lei estadual e municipal a ser editada, sempre respeitando os tetos fixados pela União na lei geral de licitação.
No entanto, o atual sistema estabelecido pela Lei 8.666/93 e suas alterações, ao atrelar os limites de modalidades (convite) aos valores de dispensa de licitação e de contrato formal, abriu uma preocupante porta para as mais diversas fraudes em licitação, além de se demonstrar inconstitucional. De fato, ao elevar as faixas de valores para modalidades (que é norma geral), automaticamente se elevam as possibilidades de contratar sem licitação e de dispensar o contrato formal (igualmente normas gerais), como se nota nos incisos I e II do artigo 24 e seu parágrafo primeiro, e no parágrafo único do artigo 60.
Assim, se entendermos que o artigo 23 é norma específica, ao se permitir que estados e municípios alterem os valores de determinação de modalidades, estes entes também estariam alterando valores de dispensa de licitação, de forma inconstitucional, abrindo mais possiblidades de contratações diretas e invadindo competências próprias da UF, porquanto consideramos que os artigos 24 e 60 são normas gerais.
Ainda assim, se levarmos em consideração que municípios pequenos fazem contratações bem mais modestas que entes estaduais, estaríamos subvertendo o sistema de licitação, fazendo com que a regra se tornasse exceção, pois os valores de dispensa estariam tão elevados ao ponto de sempre dispensarem o procedimento licitatório.
Tomemos o exemplo da Lei do Estado do Mato Grosso. O artigo 1º fixou em até R$ 644 mil o limite da modalidade convite para obras e serviços de engenharia (praticamente o dobro do valor estabelecido pelo Decreto federal 9.412/18). Ao aplicarmos a regra do artigo 24, I da Lei n. 8.666/93, estariam dispensadas as licitações para obras de até R$ 64 mil. Estes valores até podem ser razoáveis se levarmos em consideração o ente estatal. No entanto, com relação a municípios de 2 mil habitantes, por exemplo, possivelmente não teríamos mais licitações para obras e serviços de engenharia. E ainda, pequenas compras de pronto pagamento de até R$ 17 mil nem precisariam de contrato formal, à luz do parágrafo único do artigo 60.
Como se nota, a inconstitucionalidade não está no caráter de generalidade do artigo 23. Não há violação ao princípio da autonomia e independência dos entes federados em matéria administrativa, porquanto tais entes teriam a liberdade de complementar a norma geral definindo pela aplicação ou não de novos índices, considerando realidades orçamentárias e mercadológicas específicas.
Para os fins do que está sendo aqui examinado, o maior problema do sistema atual de licitações está na alteração automática que os novos tetos de modalidades de licitação (convite) impingem aos valores dos artigos 24 e 60, que são normas gerais, como exemplificado acima. Cada vez que se alterar o teto da modalidade convite, se eleva as faixas de dispensa de licitação, que possuem caráter excepcional, diga-se de passagem. E se for entendido que o Artigo 23 é norma específica, a situação se agrava!
Convém salientar que no antigo regime de licitações, ainda sob a égide do DL 2.300/86, os valores de dispensa de licitação eram fixos, não variavam nem dependiam dos limites de modalidades, como se nota no artigo 22, I e II, daquele diploma revogado. O que se propõe é exatamente desatrelar os artigos e definir valores de dispensa de licitação e de contrato formal fixos e uniformes para todos os entes da federação.
Quer nos parecer que a fixação por lei de valores de dispensa de licitação, além de ser uma medida moralizadora e garantidora da aplicação dos princípios constitucionais, já é uma tendência que o legislador vem observando como, por exemplo, a recente lei das estatais, que em seu Artigo 29 estabelece o teto de 100 mil reais para dispensa relativa a obras e serviços de engenharia e de 50 mil reais para os outros serviços e compras.
Desta forma, andou muito mal a lei atual de licitações em relação as vinculações dos artigos. É preciso rever o sistema e, a despeito de toda a fragilidade do antigo regime licitatório (DL 2.300/86), não há como ignorar que neste aspecto em particular, atendia muito mais ao interesse público.
Por último, e talvez o que desperta maiores debates jurídicos, seja a natureza do artigo 120 da Lei 8.666/93. A redação foi dada pela Lei n. 9.648, de 1998. De lá para cá, ou seja, por vinte anos, não houve qualquer alteração ou atualização destes valores. Somente em junho de 2018 foi editado o Decreto 9.412, atualizando os valores do artigo 23 e, via de consequência, os do artigo 24 e 60.
O primeiro enfrentamento é quanto a natureza do aludido artigo. Trata-se de norma geral ou específica? Não há dúvidas, em nosso entender, quanto a natureza especifica do comando legal. Trata-se de uma possibilidade dada ao ente federal para atualizar os valores da lei de licitações, de forma anual e com a condição de observar como limite máximo a variação geral dos preços do mercado. Como se nota, o verbo “poderá” confere a ideia de discricionariedade/liberdade quanto a atualização anual.
Nesta linha, compete a UF atualizar os valores da lei de licitação, conforme periodicidade nunca inferior a um ano e índices previamente definidos. Soa como logico que os valores mencionados no artigo dizem respeito ao Artigo 23, como limites de definição de modalidades.
No entanto, o artigo 23 é norma geral, só podendo ser alterado pelo ente competente constitucionalmente para este fim. Sendo assim, qualquer lei estadual ou municipal que atualiza os valores do Artigo 23 da Lei 8.666/93 para além dos limites fixados pela UF, será inconstitucional por violar a competência Federal. É o caso da Lei do Estado do Mato Grosso.
E mais, se os índices de atualização são determinados pela UF, conforme sua competência para legislar privativamente sobre o sistema financeiro nacional (artigo 22, VI), ao aplicar tais índices, os estados e municípios devem chegar aos valores limites encontrados pela própria União, jamais superiores a estes.
O segundo enfrentamento diz respeito a forma pela qual a União deve promover as atualizações, por lei ou por ato próprio (decreto)? O Artigo 120 faz menção ao Poder Executivo Federal, mas não estabelece o instrumento de atualização. Fazendo uma interpretação sistemática e conforme a Constituição, o único entendimento possível é pela natureza legal da alteração.
Com efeito, levando em consideração a natureza geral do Artigo 23, somente um ato legal poderia alterar as faixas de valores de determinação de modalidades licitatórias, como feito pela própria Lei 9.648 em 1998, jamais um ato administrativo. Neste sentido, cabe ao Poder Executivo Federal a competência para deflagrar o processo legislativo de alteração dos valores da Lei 8.666/93, e fazê-lo publicar em Diário Oficial, como determina o Artigo 120.
Entender de forma diversa seria violar o principio da autonomia das coletividades, impondo aos estados e municípios alterações promovidas por decreto federal. Além disso, como o Artigo 23 determina valores de modalidades, não pode um decreto alterar a lei. Soa no mínimo injurídica essa possibilidade.
De forma surpreendente, a Administração Pública Federal fez publicar o Decreto n. 9.412, em junho de 2018, reacendendo de vez a discussão quanto a natureza dos artigos da lei de licitações e causando verdadeiro alvoroço na comunidade jurídica e na gestão pública.
E agora, após a vacatio do artigo 2º, as administrações deverão se valer dos novos valores? Este decreto pode alterar os valores da Lei 8.666/93. Pois bem, o decreto é um ato administrativo regulamentar, de caráter subsidiário a lei e de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo de cada ente federado autônomo. Constitui expressão da função administrativa, que é subjacente a função legislativa do estado.
De acordo com o Artigo 18 da Carta Magna, a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos da Constituição. De forma simétrica, compete ao Chefe do Executivo exercer a direção superior de toda a Administração Pública e organizá-la por decreto, desde que não haja aumento de despesa[2].
Sendo assim, em respeito a autonomia de cada ente federativo, um ato administrativo editado pela UF não tem o condão de vincular os demais entes da federação, mas tão somente a própria estrutura federativa.
A despeito da duvidosa constitucionalidade quanto a forma de atualização dos valores do Artigo 23, o Decreto 9.412/98 deverá vincular de forma imediata (após a vacatio) somente os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta, sem, contudo, impor observância aos estados e municípios, em virtude da autonomia administrativa dos entes federados.
Em relação a estes últimos (estados e municípios), na hipótese de vislumbrar a possibilidade de utilização dos novos valores de modalidades, deverão editar seus próprios atos normativos (leis), aplicando os índices previstos pela UF e respeitando os limites estabelecidos pelo ato regulamentar federal.
Segundo o exposto neste trabalho, o sistema licitatório inaugurado pela Lei 8.666/93 é falho e deve ser revisto com urgência, principalmente em relação a uniformização das regras gerais, como o Artigo 23.
Tal sistema, se não for alterado, poderá subverter o procedimento licitatório pois ao se alterar os valores da modalidade convite, sob a roupagem de atualização anual, automaticamente se majorará os limites de dispensa pelo valor, podendo conduzir a um grande número de contratações sem licitação, tornando inviável qualquer espécie de controle estatal e social das contratações.
[1] Lei n. 10.534, de 13 de abril de 2017.
[2] Artigo 84, II e VI da CRFB
Gladstone Felippo é professor de Direito Administrativo e sou assessor jurídico Autarquico (Previ-Rio).
Pollyana Dieine é advogada e professora.
Revista Consultor Jurídico, 8 de agosto de 2018, 7h26