A Venezuela é aqui
A venezuelana Mariana tem 14 anos e pesa 14 quilos — o equivalente à média prevista para uma criança de 3 anos. Ela chegou com os pais ao Brasil em fevereiro, fugindo da fome que assola a população de seu país. Quando sua família se recostou à sombra de uma árvore em uma calçada de Boa Vista, a capital de Roraima, seus ossos pontudos apareciam sob a pele ressecada pelo sol e pela desidratação, e as rugas do rosto faziam com que ela parecesse uma senhora já entrada em anos.
Mariana chegou ao Hospital Geral de Roraima com um quadro de desnutrição aguda. Os exames mostraram ainda que ela sofria de tuberculose e que seus intestinos estavam tomados por parasitas. Em uma área de isolamento, Mariana virou uma causa. Médicos, nutricionistas e enfermeiros se revezaram na missão de salvá-la. Em meados de março, ela reagiu. Hoje está com 4 quilos a mais. Se tivesse ficado mais uma semana na Venezuela, teria morrido.
Na franja norte do Brasil, não há uma guerra nem catástrofe ambiental. Mas os efeitos do regime ditatorial iniciado por Hugo Chávez e intensificado por Nicolás Maduro só podem ser comparados aos de países destroçados por conflitos armados. A crise venezuelana levou a população do país a um êxodo com dimensões jamais vistas na região. Em sete anos de guerra civil na Síria, 5 milhões de pessoas foram expulsas de casa e cidades inteiras foram destruídas em meio aos embates entre as tropas leais ao ditador Bashar Assad e fanáticos do grupo terrorista Estado Islâmico. A Venezuela já perdeu 4 milhões de pessoas. O país que mais sofre o impacto da migração em massa é a Colômbia, mas o Brasil vem ganhando importância no mapa de fuga dos venezuelanos. Só nos dois primeiros meses do ano, a Polícia Federal registrou a entrada de 30 000 deles, que atravessaram a fronteira brasileira a pé.
A Praça Simón Bolívar, em Boa Vista, é o retrato dessa tragédia. No local, que leva o nome do maior herói da Venezuela, chegou a haver 1 500 venezuelanos dormindo ao relento e comendo o que a generosidade dos brasileiros lhes provê. Até pouco tempo atrás, Boa Vista desconhecia a mendicância e a prostituição de rua. A chegada de milhares de venezuelanos mudou a paisagem local. Hoje, praticamente em todos os semáforos da cidade veem-se estrangeiros oferecendo-se para limpar para-brisas. Ruas residenciais transformaram-se em ponto de reunião de mulheres que cobram 80 reais por encontro sexual. Por causa do preço-padrão, elas ficaram conhecidas como “as ochenta”. Essas mulheres, em sua maioria estreantes na atividade, valem-se do sexo para juntar os recursos para comprar alimentos que mais tarde levam até a fronteira para seus familiares. VEJA ouviu de algumas delas que esse percurso virou uma operação de risco. Sabendo do trânsito de alimentos brasileiros, militares da Guarda Nacional Bolivariana passaram a interceptar e “depenar” aqueles que chegam à fronteira com suprimentos brasileiros. Para evitarem ser furtadas pelas tropas de Nicolás Maduro, as venezuelanas têm de se sujeitar a pagar um pedágio a criminosos que comandam rotas alternativas pela mata.
A chegada dos venezuelanos a Roraima exauriu a já precária rede pública do estado. O número de atendimentos a esses estrangeiros aumentou 23 vezes desde o início da crise migratória. Segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde, em 2014, quando começaram a chegar os primeiros imigrantes, os hospitais e postos de saúde locais registraram 766 atendimentos. No ano passado, foram mais de 18 000 prontuários. Parte importante desse contingente é formada por crianças, quase todas desnutridas.
Outro efeito do desabastecimento que assola a Venezuela são as gestantes que vêm ao Brasil para poder ter os filhos em condições minimamente seguras. Somente em janeiro, 200 crianças filhas de mulheres venezuelanas nasceram em Roraima. Depois de deixarem a maternidade, esses bebês seguem com a mãe para as barracas armadas na Praça Simón Bolívar. “É tenebroso pensar que o primeiro endereço dessas crianças seja uma barraca de lona no meio da rua”, diz o secretário de Saúde de Roraima, Marcelo Batista. Filhas de mães desnutridas, essas crianças nascem, na maioria das vezes, prematuras e com as mesmas deficiências nutricionais da mãe.
Em 1961, a Venezuela foi o primeiro país a erradicar a malária. Hoje, quase seis décadas depois, vive uma epidemia de dimensões bíblicas. Em 2017, registrou mais de 1 milhão de casos da doença — número que agora transbordou para o Brasil. Além da esperança e da pouca bagagem, os refugiados trouxeram a malária para Roraima. Em Pacaraima, nove em cada dez exames para a detecção do mal tiveram resultado positivo nos três primeiros meses do ano. A análise do genoma do parasita confirmou a importação da doença. O desespero dos venezuelanos é tamanho que os doentes que conseguem receber medicamentos do lado brasileiro da fronteira acabam trocando o kit de tratamento por 1 grama de ouro nos garimpos de seu país. Lá, os cerca de 120 reais que obtêm com a venda do metal no Brasil são suficientes para garantir o sustento da família por mais de um mês. A migração descontrolada fez o Brasil regredir duas décadas também no controle do sarampo. À exceção de um único caso registrado em 2015, o país estava havia dezessete anos livre da doença. Neste ano, 59 ocorrências foram confirmadas e outras 166 estão sob investigação. Seguindo o mapa da migração, a doença já atravessou os limites de Roraima e chegou ao Estado do Amazonas, onde foram confirmados seis casos.
Na fronteira entre a brasileira Pacaraima e a venezuelana Santa Elena de Uairén, as autoridades brasileiras instalaram um posto de vacinação. Mas ninguém que entra é obrigado a ser imunizado contra o sarampo e outras doenças. Questionados, os funcionários da Organização Pan-Americana de Saúde que visitavam o local afirmaram à reportagem de VEJA que “tomar vacina é um ato voluntário”. Mas o princípio não funciona na mão oposta. Para ingressar na falida Venezuela, os militares no posto de fronteira exigem dos brasileiros a apresentação do certificado internacional de vacinação contra a febre amarela — um cuidado básico para evitar que o vírus chegue lá.
Na capital do Amazonas, onde a falta de barreiras sanitárias permitiu a volta do sarampo, índios venezuelanos da etnia warao perambulam pelas ruas do centro pedindo alimentos. O cacique Orlando Martinez perdeu recentemente uma filha recém-nascida, vítima de catapora. “Não há mais como viver no meu país”, afirma.
O medo das epidemias tem levado moradores locais a tratar com animosidade os estrangeiros. Na última semana de março, as manifestações de xenofobia atingiram níveis alarmantes. Brasileiros invadiram um abrigo na cidade de Mucajaí, no sul de Roraima, onde estava um trio de venezuelanos acusados de ter matado um brasileiro a pauladas. Os refugiados foram expulsos do local e as instalações, destruídas. O número de crimes atribuídos a venezuelanos tem crescido e inflamado o sentimento de que, além de “invasores”, os estrangeiros são perigosos.
As prisões de Roraima já abrigam cerca de meia centena de venezuelanos. Segundo fontes da administração penitenciária local, a maioria deles já foi recrutada pelo PCC. A facção paulista que tem hegemonia nos presídios roraimenses viu na “internacionalização” de seus filiados uma boa oportunidade de negócios. Com a promessa de sustentarem seus familiares na falida Venezuela, os novos membros do PCC estimulam parentes e amigos a incorporar-se à rede do tráfico — transformam-se em mão de obra barata para o crime organizado do lado de cá da fronteira.
Mas o interesse do PCC nos venezuelanos não tem a ver com cocaína — o carro-chefe da organização criminosa. Na última década, pelo menos 50 000 fuzis Kalashnikov foram parar nas mãos de milicianos por iniciativa de Hugo Chávez, morto em 2013. Sob o pretexto de armar a população civil para defender a nação de uma suposta invasão iminente dos Estados Unidos, o líder venezuelano transformou o país em um ativo provedor no mercado negro. No Brasil, um fuzil vale entre 50 000 e 60 000 reais.
Sob o chavismo, a Venezuela também se transformou na maior fábrica de identidades falsas do planeta. Segundo denúncias apresentadas por ex-oficiais venezuelanos, fazia parte da política de Estado oferecer documentos falsos a aliados estratégicos do chavismo. Extremistas islâmicos foram registrados às centenas. Em 2016, o jornal espanhol ABC publicou uma reportagem na qual revelava que autoridades dos Estados Unidos investigavam a suspeita de que, entre os refugiados que estavam sendo recebidos por países da América Latina — sobretudo Colômbia, Peru e Brasil —, se encontravam membros do grupo extremista Hezbollah.
Essa não é a primeira onda migratória que o Brasil enfrentou nas últimas duas décadas. Em 2010, teve início o êxodo haitiano. Nos dois anos seguintes ao terremoto que varreu o Haiti, mais de 60 000 pessoas chegaram pelas mãos de coiotes — criminosos que movimentam as redes de tráfico de pessoas. Vieram sobretudo pelo Acre, estado que faz fronteira com o Peru e a Bolívia. Com os refugiados em petição de miséria, instalados em ginásios insalubres, a pequena Brasileia (AC) esteve à beira de uma tragédia sanitária. Naquele episódio, autoridades tomaram a decisão de “espalhar” os refugiados pelo país. Apesar da falta de coordenação com os estados receptores, o governo da então presidente Dilma Rousseff acertou em reduzir a pressão sobre o Acre e as cidades fronteiriças. Hoje, o atual governo ensaia repetir a iniciativa. Mas, diferentemente dos haitianos, muitos venezuelanos relutam em deixar a fronteira por causa da proximidade com os parentes.
Enviar alimentos aos familiares que ficaram para trás é a principal preocupação de muitos dos venezuelanos que chegam ao Brasil. O ex-funcionário público Armando Astudillo abandonou o emprego em uma repartição do seu país depois que a filha de 14 anos morreu, vítima de leucemia. Traumatizado pela experiência de ver a menina agonizar sem ter acesso sequer a morfina, Astudillo deixou a Venezuela para realizar pequenos trabalhos no Brasil. Todo o dinheiro que recebe ele usa para comprar alimentos, os quais são levados a um intermediário na fronteira, a fim de que cheguem às mãos de sua família, que vive a mais de 1 000 quilômetros de distância, no litoral. Astudillo perde parte importante do pouco que consegue arrecadar contratando os serviços de atravessadores que pagam pedágio a militares.
Tanto no caso dos haitianos quanto na recente onda migratória dos venezuelanos, as “portas de entrada” do Brasil estiveram abertas. A fragilidade e a insuficiência da infraestrutura para acolher essas populações, contudo, apenas transferiram de lugar as tragédias humanitárias que se desenrolam nas franjas do país. Sem perspectivas de melhoria da situação na Venezuela, a onda migratória deve aumentar.
Segundo a Superintendência da Polícia Federal em Roraima, nas últimas semanas, cerca de 700 estrangeiros passaram a entrar diariamente no Brasil. A crise venezuelana já ultrapassou a fronteira.
Publicado em VEJA de 18 de abril de 2018, edição nº 2578