Recessão joga 3.905 municípios em buraco fiscal
RIO - A crise fiscal por que passa o país atingiu em cheio os municípios brasileiros. Um total de 3.905 cidades ou 86% das prefeituras que declararam suas contas em 2016 estão em situação fiscal difícil ou crítica. Com a queda na arrecadação e nas transferências e sem margem para cortes de despesas, devido às amarras no orçamento, os investimentos acabaram sendo penalizados: apenas 6,8% da receita dos municípios brasileiros foram destinados aos investimentos ano passado, segundo o Índice Firjan de Gestão Fiscal (IFGF). É o menor patamar da série, iniciada em 2006.
Menos investimento público municipal significa menos seringas nos postos de saúde, menos giz nas escolas, ruas menos iluminadas e pavimentadas. Segundo cálculos da Firjan, em 2016 houve queda real (já descontada a inflação) de R$ 7,5 bilhões nos investimentos públicos municipais na comparação com o ano anterior. Chama atenção o fato de esse tombo ter ocorrido no último ano de mandato dos prefeitos, quando os recursos investidos costumam superar em 20% os alocados nos três anos anteriores.
— A crise inverteu essa lógica. E essa realidade vai perdurar por alguns anos ainda, pois problemas de gestão fiscal não são resolvidos da noite para o dia — afirmou o economista-chefe da Firjan e responsável pelo IFGF, Guilherme Mercês.
O Índice Firjan de Gestão Fiscal avalia cinco indicadores: receita própria (capacidade de arrecadação), gastos com pessoal, investimentos, liquidez (comprometimento do orçamento com dívidas acumuladas no ano anterior, os chamados restos a pagar) e custo da dívida. Em cada um deles, é atribuída uma pontuação de zero a um e, quanto mais próximo de um, melhor.
De acordo com seu desempenho, os municípios ganham conceitos de A a D. A nota A é o carimbo de gestão de excelência (0,8 a 1). Ganham B as cidades cuja gestão foi avaliada como boa (0,6 a 0,8). Os conceitos C (0,4 e 0,6) e D (zero a 0,4) correspondem às avaliações de gestão fiscal difícil e crítica, respectivamente. Na edição de 2016, foram avaliados 4.544 municípios, onde vivem 88% da população, ou 177 milhões de habitantes. O restante não declarou os dados ao Tesouro Nacional ou as informações eram inconsistentes.
Além do recorde negativo da fatia da receita corrente líquida (RCL, arrecadação com tributos e repasses, menos deduções previstas em lei, como transferências constitucionais) destinada aos investimentos, o número de municípios que tiraram nota D neste quesito, ou seja, reservaram menos de 8% da RCL para os investimentos também foi recorde: 2.701 prefeituras. Apenas 430 cidades canalizaram mais de 20% da receita para investimentos e, assim, conseguiram nota A neste indicador.
— Estranho seria se o investimento fosse alto, afinal, (2016) foi o auge da recessão, que derrubou desde repasses do Fundo de Participação dos Municípios e do ICMS até a receita própria, com tributos como ISS. Uma vez que não se pode reduzir salários e muito do custeio é obrigatório (há previsões constitucionais para gastos como educação e saúde), acaba sendo inevitável diminuir obras. O cenário segue dramático com a queda drástica da inflação em 2017 e sem recuperação da economia — avalia José Roberto Afonso, pesquisador do IBRE/FGV e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Dos 4.544 municípios avaliados pela Firjan, 13,8% apresentaram boa gestão (conceito B) e apenas 0,3% ou 13 cidades foram classificadas com gestão de excelência (nota A), o menor percentual da série. Quem lidera o ranking nacional é Gavião Peixoto, no interior de São Paulo, que abriga uma unidade da Embraer. Segundo a companhia, é lá que a empresa concentra suas atividades de ensaios em voo, faz a montagem final da aeronave de defesa A-29 Super Tucano e possui uma linha de montagem do cargueiro KC-390, cujos protótipos estão em processo de certificação. Como a unidade passou por adequações nos últimos anos para poder produzir o KC-390, Mercês avalia que os investimentos explicam o salto do município na lista do IFGF. Em 2015, Gavião Peixoto estava em 410 lugar.
Fenômeno semelhante ocorreu em 2015, quando a desconhecida Ortigueira foi alçada à primeira colocação, fato relacionado aos investimentos da fabricante de papel e celulose Klabin na cidade. Em 2016, Ortigueira caiu à 23ª posição. Na lista dos dez mais de 2016 estão outros municípios que vêm recebendo volumosos investimentos, como São Gonçalo do Amarante (CE), que manteve o segundo lugar, e cidades turísticas, que costumam gerar muito ISS, uma das principais fontes de receita própria dos municípios. São os casos de São Pedro (SP), que ficou na 4ª posição, Balneário Camboriú (SC), na quinta colocação, e Ilhabela (SP), na décima. Em último lugar, aparece Riachão do Bacamarte (PB).
Um dos desafios dos gestores municipais é justamente o de gerar receitas próprias. Como os tributos municipais (ISS, IPTU e ITBI) são urbanos e 4.300 dos 5.570 municípios existentes são de predominância agrícola, segundo levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), há uma dependência crônica das transferências, sejam as transferências da União, via Fundo de Participação de Municípios, sejam as transferências estaduais, ou seja, a parcela do ICMS arrecadado pelos estados que cabe às prefeituras.
82% DOS MUNICÍPIOS NÃO GERAM SEQUER 20% DA RECEITA
Nos cálculos da Firjan, 3.714 dos municípios brasileiros, ou 82% dos avaliados pela federação, não geraram sequer 20% de suas receitas. Foram classificados com nota D no quesito receita própria e apontados como insustentáveis. Segundo Mercês, esse percentual vem caindo muito lentamente. Em 2006, primeiro ano da série, eles correspondiam a 85,7% do total. O economista chama atenção para o fato de a média de habitantes dos municípios que tiraram nota D ser de 9 mil, enquanto a média dos que tiraram a nota mais elevada ser de 130 mil.
— Toda vez que é criado um município, há uma estrutura mínima da máquina pública que deve ser montada (ao menos oito secretarias e Câmara de Vereadores com nove representantes). Mas o que os dados mostram é que a maior partes deles é insustentável, pois não consegue gerar receitas próprias — avalia Mercês.
O presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski, pondera que os dois tributos federais que são a base de arrecadação do Fundo de Participação dos Municípios, o IR e o IPI, incidem sobre atividades que se desenvolvem nas cidades, sejam elas urbanas ou rurais. No caso do IR, o tributo também incide sobre a renda de cidadãos que moram no campo em em núcelos urbanos. Por isso, diz, é assegurado na Constituição que parte do que é arrecadado com esses tributos deve ser distribuído aos governos municipais.
— O que tem movido a economia brasileira é o agronegócio. Isso gera renda e imposto. Portanto, nada mais justo que as prefeituras localizadas no campo fiquem com uma parcela do que é arrecadado com essa atividade e que vai direto para a União — afirma Ziulkoski.
Na sua opinião, o grande número de municípios não é o problema, pois a multiplicação de cidades aproximou os serviços públicos dos cidadãos, ao descentralizá-los. Tampouco o número mínimo de vereadores, uma vez que quanto maior esse número maior a representação da população na Câmara, diz. O presidente do CNM avalia que os limites de gastos para despesas com o Legislativo e mesmo com o Executivo na esfera municipal é o que deveria estar em discussão. O GLOBO