O desajuste nas contas públicas prejudica os mais pobres
O Orçamento do governo federal para 2016 foi aprovado na quinta-feira (17), sem cortes no Bolsa Família. O relator do Orçamento, deputado Ricardo Barros (PP-PR), integrante da base governista, havia proposto cortar R$ 10 bilhões do programa e tentar compensar a redução de verba com ganhos de eficiência e combate a fraudes. Não obteve apoio de seus colegas aliados do governo nem da oposição, e o Bolsa Família foi preservado. É uma boa notícia no combate à pobreza? Sim – mas tanto quanto a colocação de gaze sobre uma fratura exposta. A economia brasileira estrebucha, com inflação e desemprego em alta, em grande parte por causa das contas públicas em estado caótico. E os pobres serão as maiores vítimas dessa pane. Só será possível consertar a fratura exposta com ajuste fiscal – neste momento, o programa social mais eficiente que o país poderia fazer. É importante que o novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, tenha isso em mente.
Economistas liberais e social-democratas reconhecem a importância do Bolsa Família. Não se trata de minimizar seu impacto social. Mas a desconfiança generalizada de consumidores, investidores e empresários, provocada pela inépcia do governo federal, causará mais estrago social do que um programa consegue compensar. A taxa de desemprego começou 2015 em 7%, chega agora a 10% e deverá atingir 12% no fim de 2016, de acordo com a projeção do Itaú Unibanco. E a renda oriunda do trabalho, que agora falta, foi o maior fator de redução da pobreza no Brasil nos últimos anos, com mais peso que o Bolsa Família, como já demonstrou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um órgão do governo. “A queda do nível da atividade resulta em queda da renda do trabalho e aumento do desemprego. Certamente vamos parar de reduzir a pobreza e ela talvez volte a aumentar”, diz a economista Sonia Rocha, pesquisadora do Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (Iets). “Contemplando o que temos hoje, vamos passar aí oito anos com um PIB per capita quase estagnado”, diz o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central. As perspectivas para 2016 já assustam, e há uma maldadezinha econômica a afetar também os anos posteriores.
O emprego tende a ser o último indicador a piorar numa economia em crise e o último a melhorar numa economia em recuperação. Havia sinais claros de deterioração econômica no Brasil desde 2012, mas as demissões só dispararam no fim de 2014. O fenômeno inverso ocorrerá em algum momento nos anos à frente: a economia talvez volte a crescer em 2017, mas as contratações só voltarão a ocorrer em ritmo mais forte em algum momento posterior. Ainda assim, é difícil imaginar quando o desemprego voltará ao nível baixinho de 6,1% registrado em 2012.
O efeito social do descalabro econômico já é perceptível. Em 2013, pela primeira vez em quase dez anos, a velocidade com que o país reduziu a pobreza caiu. As conquistas sociais do Brasil nos primeiros dez anos do século XXI, como o avanço no nível de escolaridade da população e a redução da pobreza e da desigualdade, foram notáveis. Entretanto, o país tem uma longa jornada pela frente até que esses indicadores alcancem níveis civilizados. Não era o momento certo para interromper o avanço. No pior cenário, isso pode jogar gerações futuras de volta na armadilha da pobreza. “Não vamos retomar o ritmo de melhorias em menos de cinco anos. Numa hipótese ruim, podemos demorar dez anos”, afirma Sonia, do Iets.
Um importante termômetro de avanço e retrocesso social no Brasil é a Região Nordeste, onde há mais pobreza. Até 2013, em ritmos variados, o Nordeste superava a média brasileira em crescimento do PIB e da renda média, e em redução do analfabetismo e da pobreza. Era uma situação benigna, a fim de reduzir a desigualdade geográfica e os bolsões de miséria. Esses avanços não seguirão na mesma velocidade nos próximos anos. Um estudo da consultoria Datamétrica indica que o crescimento anual do PIB per capita no Nordeste ficará em 0,7% ao ano entre 2010 e 2020. O ritmo é muito inferior aos 3,3% da década anterior e muito aquém do necessário para reduzir a miséria. “Será uma década de estagnação, em que haverá pouca redução das disparidades regionais”, diz o economista Alexandre Rands, presidente da Datamétrica. Rands evita classificar o período como uma década perdida, por acreditar que há em curso transformações importantes na região, como melhorias na gestão das empresas e na qualificação dos profissionais. As mudanças, espera ele, deverão permitir crescimento mais forte quando o país sair da crise. “A região não vai regredir ao que era anteriormente, mas vai hibernar. Quando o Brasil voltar a crescer, a região também voltará, sobre outras bases”, diz.
A crise, por mais trágica que seja, permitirá análises úteis para que o país enfrente suas piores chagas. O pesquisador Renato Meirelles, presidente do instituto de pesquisas Data Popular, acredita que parte importante da população mais pobre conseguirá se defender melhor da crise econômica. Isso ocorrerá, na opinião do especialista, por causa do maior nível de educação. Um cidadão escolarizado, ainda que sua situação financeira sofra pioras drásticas, consegue reagir melhor ao novo cenário. É mais difícil que ele caia de volta na pobreza. A educação abre portas para novos empregos e para iniciativas empreendedoras. “O grande desafio para que o Brasil volte a crescer é dar condições para as pessoas de menor renda seguir avançando”, diz Meirelles. “Essa preocupação é encarada com pouca seriedade no debate político. Os políticos deveriam ficar atentos, porque isso os afasta da sociedade”, diz o especialista.
A crise atual não é transitória. Há fatores estruturais a impedir que os brasileiros produzam com eficiência, diante dos padrões globais. Seria ingênuo imaginar que o combate eficiente à pobreza possa ser feito apenas com programas sociais, enquanto o país espera que a crise se vá. Ajustar as contas do governo, conter a inflação e facilitar a realização de negócios devem ser causas de todo cidadão que queira viver num país com mais justiça social. ÉPOCA