Escolas e creches inacabadas custaram ao menos R$ 840 milhões em recursos públicos
BRASÍLIA - Quando as primeiras caçambas chegaram ao lote vazio, em frente à casa onde mora, Jhonata Corte tinha certeza que o filho, à época um bebê de colo, estudaria a poucos passos do portão. As paredes erguidas ainda estão lá, mas hoje rodeadas de mato e cobertas por pichações. Ficou para trás o sonho de matricular Igor, que já completou 6 anos de idade, na creche que nunca saiu do papel, no centro de Santo Antônio do Descoberto, município de Goiás.
O esqueleto da construção no meio da cidade goiana é apenas um exemplo das 1.832 obras na área de educação — como escolas, quadras de esporte e reformas — que consumiram ao menos R$ 840 milhões do governo federal e hoje estão abandonadas, segundo mapeamento feito pelo GLOBO a partir dos dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia ligada ao Ministério da Educação.
INFOGRÁFICO: Números do descaso
Em muitas situações, os recursos federais foram repassados mesmo sem o avanço do serviço. Oitenta projetos com 10% ou menos de execução, por exemplo, tiveram mais de 50% do valor do contrato pago pela União, que transfere o dinheiro aos estados e municípios, responsáveis por licitar, gerenciar e pagar às empresas pelas obras realizadas.
Em sete casos, os serviços estão em 0% (ou seja, nada foi feito), mas houve liberação de 99% do dinheiro. O tamanho do desperdício não pode ser rastreado na totalidade porque faltam dados de desembolsos para cerca de 250 obras firmadas por meio de convênios antigos, que abrangem diversas contratações mas não individualizam os repasses.
Mesmo sem saber que a obra da creche onde sonhou que o filho estudaria já consumiu R$ 835,5 mil, Jhonata revolta-se com a situação de abandono do local. O jeito é separar parte do salário que recebe como frentista para pagar uma van que leva e busca Igor na escola. O local, segundo o rapaz de 27 anos, virou ponto de consumo de drogas. De tempos em tempos, a vizinhança entra na área para colher o lixo que se acumula nos arredores.
— Aquilo que imaginamos como um benefício para a população virou um problema, trazendo criminalidade, lixo e dengue — reclama Jhonata.
A frustração com as obras emperradas também é grande na vizinhança do bairro Jardim Paiva, no Novo Gama, em Goiás. A estrutura abandonada impressiona pelo tamanho. Seria uma escola de ensino fundamental (anos finais) e ensino médio. Menos de 25% do projeto foi erguido, embora o governo federal tenha liberado R$ 1,7 milhão, que corresponde a 50% do valor total do contrato.
— Meu filho tem que andar 20 minutos para chegar ao colégio. Entra para a aula todo suado, amarrotado, empoeirado. Se essa escola funcionasse, nossa vida ia melhorar muito — diz a dona de casa Michele Rodrigues, mãe de Juan, de 13 anos.
Entre as 1.832 obras travadas, 1.197 estão paralisadas, quando ainda podem ser retomadas caso os problemas se resolvam, e 635 foram classificadas pelo governo como inacabadas, situação em que se esgotaram as chances de continuidade dentro da parceria com a União.
Do total, 40,9% dos projetos são para construção de creches e pré-escolas, 22,2% para quadras de esporte, 19,3% destinam-se a espaços educacionais específicos, 8,4% referem-se a cobertura de quadras, 4,5% a ampliações e 3,5% para criação de colégios de ensino fundamental e médio. Reformas e outros serviços correspondem a pouco mais de 1% das obras com problemas.
Nenhum estado escapa ao fracasso dos projetos. Na lista dos 1.197 paralisados, chamam atenção a situação do Pará (137), Bahia (131) e Ceará (98). Já no caso dos empreendimentos abandonados, Maranhão (72) e Amazonas (69) estão com o maior estoque de canteiros emperrados. No Rio de Janeiro, há 29 obras travadas, com destaque para Campo dos Goytacazes e Cabo Frio.
Abandono pela empresa é o motivo de 51,2% das obras paralisadas. Em segundo lugar, estão problemas técnicos, apontados em 38% dos casos, que incluem falhas na execução do serviço e embargos da construção, ente outros. Depois vêm as medidas de controle administrativo, tais como falta de alvarás e determinações dos órgãos de controle, em 9,3% dos projetos. Por fim, aparecem as questões ambientais, atribuídas a 1,5% dos empreendimentos. O GLOBO
SERVIÇOS SEM CONTINUIDADE
Os empresários reclamam de problemas que vão desde a falta de adequação dos terrenos indicados pelas prefeituras ao não pagamento do serviço realizado. Marcus Vinícius Paranhos, dono da Viva Engenharia, responsável por duas creches paradas em Santo Antônio do Descoberto (GO), diz que o serviço de terraplanagem deveria ter sido feito pela prefeitura. A empresa dele assumiu a tarefa para começar a construção, mas nunca recebeu, segundo o empresário.
— Estou esperando a prefeitura me pagar o que deve. Quando pagar, eu reiniciarei. Entregamos mais de 30 obras desse tipo, apesar dos problemas, mas nesses dois casos não deu para continuar — defende-se.
A Secretaria Municipal de Obras de Santo Antônio do Descoberto, por sua vez, afirma que só parou de pagar a empresa porque não houve continuidade do serviço e que já levou o caso à Justiça. É frequente a diferença de versões sobre a razão do abandono das obras entre os envolvidos. O empresário Juarez Wieck, de uma construtora que pegou serviços financiados pelo FNDE no Sul do país, diz que tem uma “meia dúzia” de obras paradas há anos porque o governo federal teria deixado de repassar recursos para que as prefeituras efetuassem o pagamento.
O diretor de Gestão, Articulação e Projetos Educacionais do FNDE, Leandro Damy, garante que, mesmo diante de um contexto de crise econômica, as transferências para as obras apoiadas vêm sendo feitas a contento. Ele esclareceu que o recurso é repassado diretamente ao estado ou município responsável pela parceria com o governo federal. Nunca para a empresa, que recebe da prefeitura ou do estado que a contratou.
Sobre desembolsos maiores que o serviço executado, Damy afirma que a situação é, de fato, verificável em obras mais antigas, quando as regras de repasse permitiam que 50% do valor fosse liberado logo após a assinatura do convênio. Desde 2015, segundo ele, um critério mais rígido foi adotado para que os recursos sejam transferidos aos poucos e somente após medições periódicas feitas pelo estado ou município para comprovar o término das etapas.
— O mecanismo de liberação vem sendo aperfeiçoado ao longo dos anos. No atual sistema, fazemos um acompanhamento próximo, só destinando os recursos quando as etapas são vencidas. Nosso objetivo é ver as obras andando.
O FNDE informou que está implantando um sistema de ordem bancária nominal, em parceria com o Banco do Brasil, para que a prefeitura ou o estado só possa transferir o recurso recebido para a conta da empresa que venceu a licitação — e, assim, evitar desvios. Caso tente mandar para outro destinatário ou sacar, haverá uma trava.