Estreia aproxima o governo Temer do desastre
As coisas poderiam estar mais tranquilas para Michel Temer, pois Dilma Rousseff foi deposta, Lula enfrenta um surto de morofobia e o PT está tonto. No entanto, depois de usufruir de um ensaio que durou os 111 dias da interinidade, seu governo deu vexame na estreia. Se a gestão efetiva de Temer fosse um filme, as primeiras cenas indicariam que o enredo é sobre uma embarcação temerária, uma tripulação presunçosa e uma pedra de gelo. Tudo muito parecido com Titanic.
Nos dez dias inaugurais da administração seminova, viu-se um comandante deslumbrado, assessorado por contramestres despreparados. O novo elenco parece ter tomado gosto pela vingança, esquecendo-se que tem a obrigação de entregar aos passageiros, sobretudo aos que se encontram no porão, perto da casa de máquinas, três rimas pobres: temperança, segurança e esperança.
As relações com Dilma começaram a azedar quando Temer, preparando-se para desembarcar da função de coordenador político de um governo hemorrágico, declarou que “o país precisa de alguém que tenha a capacidade de reunificar a todos''. Interino, prometera a “pacificação nacional”. Efetivado, destilou raiva na primeira reunião ministerial.
“Quero contestar, a partir de agora, essa coisa de golpista. Golpista é você, que está contra a Constituição. Golpe é qualquer um que proponha ruptura constitucional. Não estamos propondo ruptura constitucional. Agora, nós não vamos levar ofensa para casa. Agora, as coisas se definiram. Golpista é quem derruba a Constituição.”
Dirigindo-se à sua base congressual, Temer passou uma carraspana, não coordenadas. Abespinhado com a adesão do PMDB ao impeachment meia-sola —com deposição, mas sem inabilitação—, engrossou a voz: “Se há gente que não quer governo dando certo, declare-se. Essa divisão na base é inadmissível. Se é governo tem que ser governo.”
Temer disse tudo isso e embarcou para a China, como se não houvesse um Brasil por refazer. Poderia ter incumbido o ministro Henrique Meirelles (Fazenda) de representá-lo na reunião do G-20. Mas trocou a emergência de um país em crise por uma beirada de foto na companhia de chefes de Estado que não estavam nem aí para sua presença.
Na China, Temer desfilou com Renan Calheiros a tiracolo. O mesmo Renan que, horas antes, discursara no Senado para pedir aos colegas que não fossem “maus e desumanos” com Dilma. Não seria razoável, ele dissera, que, além da “queda”, Dilma fosse submetida ao “coice” que a empurraria para fora da vida pública por oito anos. Foi a partir desse lero-lero que a maioria dos senadores escoiceou a Constiuição.
Em três décadas de vida pública, Temer construiu uma imagem de sobriedade. Traz dentro da boca uma fita métrica, não uma língua. Mede cada palavra. Na China, porém, algo lhe subiu à cabeça. E não foi juízo. Instado a comentar o ronco do asfalto, referiu-se aos partidários do ‘Fora Temer’ como “as 40 pessoas que quebram carro?” Ecoando-o, o chanceler José Serra declarou que as manifestações eram “mini, mini, mini, mini…”
Foi como se o governo, contaminado pela atmosfera dos Jogos do Rio, resolvesse disputar consigo mesmo uma subolimpíada de modalidade única: o tiro ao pé. Cutucado, o asfalto rosnou um pouco mais alto. E o governo ensinou que é errando que se aprende… A errar.
No feriado de 7 de Setembro, os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil) e Geddel Vieira Lima (Coordenacão Política), dois diletos amigos do presidente, voltaram a menosprezar as vaias e os gritos de “Fora Temer”. Olharam para a arquibancada montada na Esplanada de Brasília sem se dar conta de que o alarido soava em 25 Estados. As vaias foram a trilha sonora de Temer também na cerimônia de abertura dos Jogos Paralímpicos.
Elsinho Mouco, marqueteiro do PMDB, criou um par de bordões. Contra o ‘Fora Temer’, vieram à luz o ‘Bora Temer’ e o ‘Fora Ladrão’, uma alusão aos escândalos que tisnaram as administrações do PT. Simultaneamente, foi guindada às manchetes a notícia de que Lava Jato mapeia as propinas recebidas na Usina de Belo Monte por pajés do PMDB de Temer. Entre eles, por exemplo, Renan Calheiros, Romero Jucá e Jáder Barbalho. Quer dizer: tomado ao pé da letra, o marqueteiro do PMDB é um feliz adepto do ‘Fora PMDB’.
O governo flertou descaradamente com o desastre desde a aprovação do impeachment. Numa evidência de que foi correspondido, o ministro do Trabalho concedeu uma ruinosa entrevista sobre a reforma trabalhista, fornecendo matéria-prima para que petistas e sindicalistas denunciem a insensibilidade social de Temer. Como confusão pouca é bobagem, o chefão da Casa Civil, Eliseu Padilha, fritou o mandachuva da Advocacia-Geral da União, Fábio Medina Osório.
Bem passado, o doutor levou os lábios ao trombone para denunciar que o Planalto trabalha mesmo para abafar a Lava Jato. Ficou no ar a impressão de que o novo governo, se não mudar urgentemente suas práticas e seu rumo, acabará se autoconvertendo num cadáver da gestão anterior. Olhando-se ao redor, percebe-se que é difícil, muito difícil, enxergar inocentes no convés do neo-Titanic. Avistam-se apenas culpados e cúmplices. Percebe-se, de resto, que faltam botes salva-vidas. JOSIAS DE SOUZA